domingo, 5 de agosto de 2018

O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA EM PSICOPATOLOGIA

                                                                                       
1-A  base  dualista
                           O  conceito  de  consciência  está  presente, de  modo explícito  ou  não, na  clínica psicopatológica desde os  seus primórdios. Pode-se dizer que  é  impossível  realizar  o exame  do  paciente  sem pôr  a questão: “ele  está consciente”? Trata-se  do conceito  clínico de  grau  (ou  nível) da  consciência. Da  vigília (a  normalidade)  ao coma, desenha-se  um espectro  de  graus de consciência   (torpor, turvação, obnubilação, etc) em que  as estruturas  neurocerebrais estão comprometidas.  A equação consciência=mente=cérebro é  adotada  como resposta  teórica à  clínica  dos  transtornos  mentais  de  origem  orgânica. Quanto mais  alguém está consciente, melhor  estará  funcionando o seu  cérebro  e por  extensão  a  mente.  Contudo,  o exame  pode  ser  esmiuçado:  “o indivíduo  sabe o que  faz”?  Ou  “ele  tem noção (=consciência) dos seus atos”? Um sentido  moral se  insinua,  ficando  encoberto pelo  sistema fechado  “cérebro/mente”.
                           Entretanto, é  com Karl  Jaspers que  o conceito  de  consciência adentra ao  universo  psicopatológico  não  médico.  Sob a influência  da fenomenologia, ele  trabalha  elementos  conceituais para  ser  posssível pensar  uma  “outra”  consciência  não  redutível às  estruturas  neurocerebrais.  É  a consciência  intencional.  Ela  constitui a  “essência” da  vida psíquica.   Divide-se  em consciência do  eu e consciência  do  objeto. Desse  modo, Jaspers usa  o conceito  de  eu  (e  por  extensão  o de  objeto) atrelado ao conceito de consciência.  Quando  fala  em consciência, a  intencionalidade  torna-se a expressão  do  eu  no mundo. O mundo  é  o objeto, já que  esse  objeto é considerado em relação ao  eu (sujeito da fenomenologia). A partir  desse dado teórico ocorre uma  curiosa  mistura  de  conceitos  nos manuais de psiquiatria  ao longo  do século  XX. De  um lado a consciência neurocerebral. Do outro, a  consciência psicológica assumindo a  orientação  fenomenológica.
                           É  importante registrar,  que, em  ambos os casos, o conceito  de  consciência está  submetido  ao universo da representação, o que  significa  a   adoção  da  “identidade” como  referência  teórica  implícita.   Isso faculta  à consciência um  certo poder de  ajuizar  sobre  a realidade, inclusive, claro,  a  do  técnico e/ou  pesquisador. Daí, tanto  a  consciência neurocerebral, quanto   a  psicológica, ambas  constituem   um quadro  conceitual  em que  o sentido de  responsabilidade é  condição para a conduta  do  paciente  e  o seu  funcionamento  mental.  No primeiro caso, são os movimentos  do  corpo; no segundo, as  funções  psíquicas. Não por  acaso o exame psiquiátrico  separa  o “comportamento”  -o observável-  das  funções  psíquicas, numa  divisão  em que  o primeiro foco é o  da  adequação do paciente  à  Realidade e o segundo o dos  sintomas produtivos -delírios, alucinações, etc .   Assim, o exame   psiquiátrico está  marcado e determinado pelo   conceito de consciência  egresso  do pensamento da representação,  de  onde  deriva  a  “alienação”,  conforme  discutiremos adiante.Ele   se  ajusta  às  necessidades de  controle (ou  tratamento)  da  psiquiatria. As  bases  teóricas  da psicopatologia  médica estão  ligadas  a um universo  teórico  prévio de  onde  a ciência  psiquiátrica  retira  justificações  “convincentes” para  ações muitas vezes   violentas  sobre  os  loucos: a via  da  razão está  aberta.  Acreditamos, portanto,   que   trabalhar  esse  tema  de  modo  produtivo e  não reprodutivo  “exige”  aportes  situados para  além da  concepção mecanicista.


2-Mente  ou corpo?
                          Correlata  à    consciência, a   questão  mente-corpo  atravessa  o pensamento  clínico-psiquiátrico. Ela  está  ligada  à  pesquisa  etiológica  dos transtornos  mentais. As   teorias se  fizeram  a  partir  de um dado primário que  é  o da  clínica, ou seja, da  observação  do  paciente. Mas    o  conceito  de alienação, vindo da  filosofia,    abstrai para a  consciência  o que  se  constata na  prática. O paciente, em maior ou  menor  grau, está  fora de  si  mesmo, padecendo   de  uma espécie  de   consciência  alienada. Torna-se   estrangeiro  de  si. Cabe  a psiquiatria recolocá-lo  no lugar dele,  desaliená-lo . Esse  fato  percorre  o século  XIX  sob  o nome  de    alienismo .    Num  tempo   pré-freudiano, a  consciência  abarcava  todo o campo  do que se  chama “mente”  ou  “eu”, termos  que  acabam  sendo  sinônimos, pois  atuam  de modo  idêntico. São   requisitos nominais  para   ações   médicas   de   examinar, tratar, reabilitar, julgar, etc...
                      Se  a consciência é  considerada  “mente”, ela  é  naturalmente  posta  em oposição ao  corpo.  Partindo da  mente alienada, a psiquiatria  intervêm sobre  o corpo. Isso   foi descrito exaustivamente por  Foucault  e outros  autores em relação  às  práticas  de repressão e tortura ao  longo do  século XIX. Dir-se-ia que a  psicopatologia  vai se constituindo  como uma consciência sem  corpo, ou uma mente sem corpo. Tal  vazio  foi   preenchido  com as pesquisas  médicas  à respeito da  sífilis cerebral.  Este seria ou deveria ser o corpo próprio  à psicopatologia.
                     No entanto,  a observação  e   evolução  dos quadros  psicóticos, das  psicopatias e  outros, não confirmou  o “corpo  sifilítico”   e  a   sua  lógica  de  alterações  físico-químicas como “corpo psicopatológico”. O corpo neurológico   e  a consciência  alienada  passaram a compor   o pensamento médico-psiquiátrico  rachado  em  seu  próprio  terreno. Ou seja, intervir  sobre o corpo não é  suficiente    para   desalienar  a consciência;  tampouco  agir, trabalhar   sobre  a consciência não  remedia  o corpo. Há  um fosso entre  as  duas  concepções numa espécie  de  atualização cartesiana   da Clínica. A psiquiatria partiu  da clínica, do  fato  bruto, e   mesmo  assim   realienou  essa  clínica  na  consciência do  louco,  consciência  fora  de si mesma.Desse modo, o   conhecimento  psiquiátrico move-se  ainda  hoje   num círculo de  redundância  lógica marcado pelo conceito de  consciência.  Esta  se  revela  improdutiva  em termos  de  uma   visão profunda    para responder às questões  da  clínica.  O paciente  sofre?  Ele é  responsável?  Quem  fala  quando ele  fala?  Até  onde  vai sua  autocrítica? Isto  é,   haveria pelo  menos   um esboço   de  auto-observação? Ele se  sente  doente?  Em caso  positivo,  de  que  “doença”  se  trata?  Qual  a  origem  dos  transtornos mentais?   
                    A  consciência  em psicopatologia  captura  o paciente  como  ser   responsável. Este  é  o ponto  de inflexão da  clínica psiquiátrica no sentido de  obter motivos  para  intervir com  os  fármacos.  Persiste o julgamento do  paciente  encoberto pela  razão científica.  Tal   situação  é derivada  da  concepção dualística  .  Mente de um lado, corpo do outro. Ora, a consciência é menos a  causa   e  mais a condensação   dos efeitos  de vários  fatores  atuando  em   interação  constante. Estes compõem  um  amplo  espectro de  manifestações que  ultrapassa a  órbita  da  patologia para  situar a vivência da  consciência  alterada como a imagem que se  produz  subjetivamente na  organização  do  momento atual. Fluxos de  dentro do  organismo (uma  infecção, por  ex.) e  de   fora (uma  agressão  verbal)   tornam a  consciência  dotada  de uma  instabilidade só mantida em condições de interagir  com o  mundo  às  custas  do  eu. Ora, se   este   é  uma função,  falar  de  consciência  é  falar  do  eu, pois    é  ele quem organiza   as  ações  de uma subjetividade lastreada  pela   identidade, unidade, atividade e divisão   mundo interno/mundo  externo.
(...)

A.M., extraído do livro "Trair a psiquiatria", 2012

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