O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA EM PSICOPATOLOGIA
1-A base dualista
O conceito de consciência está presente, de modo explícito ou não, na clínica psicopatológica desde os seus primórdios. Pode-se dizer que é impossível realizar o exame do paciente sem pôr a questão: “ele está consciente”? Trata-se do conceito clínico de grau (ou nível) da consciência. Da vigília (a normalidade) ao coma, desenha-se um espectro de graus de consciência (torpor, turvação, obnubilação, etc) em que as estruturas neurocerebrais estão comprometidas. A equação consciência=mente=cérebro é adotada como resposta teórica à clínica dos transtornos mentais de origem orgânica. Quanto mais alguém está consciente, melhor estará funcionando o seu cérebro e por extensão a mente. Contudo, o exame pode ser esmiuçado: “o indivíduo sabe o que faz”? Ou “ele tem noção (=consciência) dos seus atos”? Um sentido moral se insinua, ficando encoberto pelo sistema fechado “cérebro/mente”.
Entretanto, é com Karl Jaspers que o conceito de consciência adentra ao universo psicopatológico não médico. Sob a influência da fenomenologia, ele trabalha elementos conceituais para ser posssível pensar uma “outra” consciência não redutível às estruturas neurocerebrais. É a consciência intencional. Ela constitui a “essência” da vida psíquica. Divide-se em consciência do eu e consciência do objeto. Desse modo, Jaspers usa o conceito de eu (e por extensão o de objeto) atrelado ao conceito de consciência. Quando fala em consciência, a intencionalidade torna-se a expressão do eu no mundo. O mundo é o objeto, já que esse objeto é considerado em relação ao eu (sujeito da fenomenologia). A partir desse dado teórico ocorre uma curiosa mistura de conceitos nos manuais de psiquiatria ao longo do século XX. De um lado a consciência neurocerebral. Do outro, a consciência psicológica assumindo a orientação fenomenológica.
É importante registrar, que, em ambos os casos, o conceito de consciência está submetido ao universo da representação, o que significa a adoção da “identidade” como referência teórica implícita. Isso faculta à consciência um certo poder de ajuizar sobre a realidade, inclusive, claro, a do técnico e/ou pesquisador. Daí, tanto a consciência neurocerebral, quanto a psicológica, ambas constituem um quadro conceitual em que o sentido de responsabilidade é condição para a conduta do paciente e o seu funcionamento mental. No primeiro caso, são os movimentos do corpo; no segundo, as funções psíquicas. Não por acaso o exame psiquiátrico separa o “comportamento” -o observável- das funções psíquicas, numa divisão em que o primeiro foco é o da adequação do paciente à Realidade e o segundo o dos sintomas produtivos -delírios, alucinações, etc . Assim, o exame psiquiátrico está marcado e determinado pelo conceito de consciência egresso do pensamento da representação, de onde deriva a “alienação”, conforme discutiremos adiante.Ele se ajusta às necessidades de controle (ou tratamento) da psiquiatria. As bases teóricas da psicopatologia médica estão ligadas a um universo teórico prévio de onde a ciência psiquiátrica retira justificações “convincentes” para ações muitas vezes violentas sobre os loucos: a via da razão está aberta. Acreditamos, portanto, que trabalhar esse tema de modo produtivo e não reprodutivo “exige” aportes situados para além da concepção mecanicista.
2-Mente ou corpo?
Correlata à consciência, a questão mente-corpo atravessa o pensamento clínico-psiquiátrico. Ela está ligada à pesquisa etiológica dos transtornos mentais. As teorias se fizeram a partir de um dado primário que é o da clínica, ou seja, da observação do paciente. Mas o conceito de alienação, vindo da filosofia, abstrai para a consciência o que se constata na prática. O paciente, em maior ou menor grau, está fora de si mesmo, padecendo de uma espécie de consciência alienada. Torna-se estrangeiro de si. Cabe a psiquiatria recolocá-lo no lugar dele, desaliená-lo . Esse fato percorre o século XIX sob o nome de alienismo . Num tempo pré-freudiano, a consciência abarcava todo o campo do que se chama “mente” ou “eu”, termos que acabam sendo sinônimos, pois atuam de modo idêntico. São requisitos nominais para ações médicas de examinar, tratar, reabilitar, julgar, etc...
Se a consciência é considerada “mente”, ela é naturalmente posta em oposição ao corpo. Partindo da mente alienada, a psiquiatria intervêm sobre o corpo. Isso foi descrito exaustivamente por Foucault e outros autores em relação às práticas de repressão e tortura ao longo do século XIX. Dir-se-ia que a psicopatologia vai se constituindo como uma consciência sem corpo, ou uma mente sem corpo. Tal vazio foi preenchido com as pesquisas médicas à respeito da sífilis cerebral. Este seria ou deveria ser o corpo próprio à psicopatologia.
No entanto, a observação e evolução dos quadros psicóticos, das psicopatias e outros, não confirmou o “corpo sifilítico” e a sua lógica de alterações físico-químicas como “corpo psicopatológico”. O corpo neurológico e a consciência alienada passaram a compor o pensamento médico-psiquiátrico rachado em seu próprio terreno. Ou seja, intervir sobre o corpo não é suficiente para desalienar a consciência; tampouco agir, trabalhar sobre a consciência não remedia o corpo. Há um fosso entre as duas concepções numa espécie de atualização cartesiana da Clínica. A psiquiatria partiu da clínica, do fato bruto, e mesmo assim realienou essa clínica na consciência do louco, consciência fora de si mesma.Desse modo, o conhecimento psiquiátrico move-se ainda hoje num círculo de redundância lógica marcado pelo conceito de consciência. Esta se revela improdutiva em termos de uma visão profunda para responder às questões da clínica. O paciente sofre? Ele é responsável? Quem fala quando ele fala? Até onde vai sua autocrítica? Isto é, haveria pelo menos um esboço de auto-observação? Ele se sente doente? Em caso positivo, de que “doença” se trata? Qual a origem dos transtornos mentais?
A consciência em psicopatologia captura o paciente como ser responsável. Este é o ponto de inflexão da clínica psiquiátrica no sentido de obter motivos para intervir com os fármacos. Persiste o julgamento do paciente encoberto pela razão científica. Tal situação é derivada da concepção dualística . Mente de um lado, corpo do outro. Ora, a consciência é menos a causa e mais a condensação dos efeitos de vários fatores atuando em interação constante. Estes compõem um amplo espectro de manifestações que ultrapassa a órbita da patologia para situar a vivência da consciência alterada como a imagem que se produz subjetivamente na organização do momento atual. Fluxos de dentro do organismo (uma infecção, por ex.) e de fora (uma agressão verbal) tornam a consciência dotada de uma instabilidade só mantida em condições de interagir com o mundo às custas do eu. Ora, se este é uma função, falar de consciência é falar do eu, pois é ele quem organiza as ações de uma subjetividade lastreada pela identidade, unidade, atividade e divisão mundo interno/mundo externo.
(...)
A.M., extraído do livro "Trair a psiquiatria", 2012
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