APOCALYPSE NOW
– ...segura a história aí que eu quero ouvir o fim, você espera um pouco? É que eu preciso muito ir no banheiro. Rapidão. Mas antes queria dizer o seguinte: Felipe, você está de parabéns. Chegamos aqui faz três horas e até agora você não falou nada sobre como a culpa na verdade é do capitalismo.
– Não tinha reparado, mano, é verdade.
– Feito histórico, hein?
– Valeu, valeu. Me superei.
– A gente tem que celebrar. Vou lá e já venho. Vocês pedem mais um baldinho?
– Pode deixar.
– ...
– Não tá nada fácil, hein, Felipe? Descendo o feed aqui, mano, Facebook, Instagram e tal, é só tragédia: Boechat, o incêndio do Flamengo, as enchentes, Brumadinho... Nunca vi um ano começar tão sinistro.
– Nem me fale. E olha que não deu nem seis meses do Museu Nacional.
– Nossa, tem essa ainda.
– Não quero nem ver. Fevereiro ainda.
– Como pode uma coisa dessas, né, cara? Parece que o mundo vai acabar.
– Total. Você viu aquele meme que disse que na verdade o mundo acabou em 2012, depois do apocalipse maia, e que tá todo mundo no inferno?
– Tipo isso mesmo.
– Mas, brincadeiras à parte, eu fico pensando muito nisso.
– No apocalipse maia?
– Apocalipse em geral. Tipo, em todo lugar que a gente olha, aparece o fim do mundo. Videogame. Hollywood.
– Noticiário.
– Ainda mais! Toda essa discussão a respeito de aquecimento global, mudanças climáticas, joga muito com essa ideia, né? O medo do fim do mundo. Meio inescapável.
– É mesmo. Estava falando com minha namorada, ela quer rever O dia depois de amanhã , que eu ainda não vi. Mas fica meio sem clima...
– Nenhum clima, mano. Agora parece documentário.
– Se passasse na TV, iam demorar pra se dar conta. E parece que o cara é especialista nesse tipo de filme. Dirigiu o Independence Day , o 2012 ... Você falou dos maias e eu lembrei dele na hora.
– Apocalypse Now. Slogan do Brasil em 2019.
– Já imaginou? Queria ver as vinhetas na Globo nessa brincadeira. O Cristo Redentor em chamas. Chuva de meteoros na Guanabara. Aqueles carros estilo Mad Max na Avenida Atlântica, com caixas de som gigantes.
– Tocando funk, é claro.
– Tom Jobim não combinaria mesmo.
– Mas, falando sério, eu estava lendo em algum lugar, ou ouvindo num podcast, sei lá, que é muito comum essa imagem do fim do mundo aparecer no encerramento de um ciclo, no fim de um momento histórico.
– Tipo o quê?
– Ah, cara, sei lá. Não vou saber te dizer com certeza agora, mas parece que na Bíblia o surgimento do livro do Apocalipse tem a ver com a crise do Império Romano, umas coisas assim... Mesma coisa se você pegar Canudos, por exemplo. O Antônio Conselheiro chega falando do fim do mundo, aquele papo todo bem pesado, e isso coincide com o fim do Império...
– Que brisa.
– Pega o punk. É igual. No future, no future for you. Sex Pistols são contemporâneos da Margaret Thatcher. É todo um mundo que está acabando ali, aquele sonho dourado do pós-guerra, o fordismo, a indústria, o estado de bem estar social... Tudo na onda do choque do petróleo. Onda não, tsunami.
– Saquei. Mas aqui não é diferente, não? Nessas tragédias de agora, pelo menos. É que tem uma dose de acaso, de coincidência, em tantas tragédias juntas, ainda mais em tragédias que não têm muito a ver uma com a outra, tipo a do Boechat, a das enchentes e a de Brumadinho.
– Sim, sim. Quer dizer. Mais ou menos. A das enchentes e a de Brumadinho têm uma dimensão diferente... Teve muito descaso, ganância, vista grossa em nome do lucro...
– Claro, claro. Mas não conecta exatamente com o que você tava falando da impressão de fim do mundo.
– Hum... É, conecta mais ou menos. É como se a impressão, a sensação de fim do mundo já estivesse no ar, e esses eventos só reverberassem mais alto, mais forte. A rede simbólica está pronta; o que cair nela, a gente pesca.
– Aí você já deu uma brisada...
– Filosofia de mesa de bar, cara. Não só é legalizado, como é obrigatório.
– Pode crer. Mas você acha que tem um mundo acabando?
– Aqui no Brasil?
– É.
– Acho que sim. Quer dizer, eu não, ou não só eu. Tem uns filósofos que eu sigo que...
– Os comunistas. A esquerdalhada.
– Isso. Claro. É daí pra baixo só. Mas então, tem um pessoal que diz que esses últimos anos seriam meio que o fim da Nova República, o momento pós-ditadura, saca? Clássico fim de um ciclo histórico.
– Saquei.
– Não deixa de ser um fim do mundo.
– É... Entendi o seu ponto.
– E, além disso, o Brasil também está no mundo, sabe? A sensação é geral, repercute aqui também. Não me espanta que lá fora a impressão seja essa. Volta do nacionalismo, estranhamento entre grandes potências, a crise climática... Se você acrescentar a internet nessa história, parece que a gente está vivendo um momento econômico novo também, que poderia ser traduzido como fim do mundo, ou fim de um mundo.
– Isso que você falou do momento econômico é verdade... Mudou tudo, né? Com aplicativo, internet. Hoje você faz qualquer coisa. De casa mesmo.
– É, mas… Mais ou menos, cara. Acho que mudou tudo pra tudo continuar igual, né?
– Como assim?
– Olha... Se você compra uma coisa ao vivo, pelo correio ou –
– Voltei. Marcos, você estava dizendo que...
– ...pela internet, são três coisas muito diferentes, mas no fim não são tão diferentes assim. É tudo comprar. Tudo mercadoria.
– Ô, Felipe, capitalismo? Mas eu não posso ficar nem cinco minutos longe? Como você deixa isso, Marcos?
– O papo era fim do mundo, mas você demorou, cara.
– Fim do mundo, capitalismo... É tudo a mesma coisa.
– Só quero saber o seguinte: e a cerveja, hein? Pediram?
Henrique Balbi, -Época, 13/02/3019, 14:00 hs