sábado, 17 de agosto de 2019

A diferença, a afirmação e a negação

A diferença tem sua experiência crucial: toda vez que nos encontramos diante de ou em uma limitação, diante de ou em uma oposição, devemos perguntar o que tal situação supõe. Ela supõe um formigamento de diferenças, um pluralismo de diferenças livres, selvagens ou não domadas, um espaço e um tempo propriamente diferenciais, originais, que persistem através das simplificações do limite e da oposição. Para que oposições de forças ou limitações de formas se delineiem, é preciso, primeiramente, um elemento real mais profundo que se defina e se determine como uma multiplicidade informal e potencial. As oposições são grosseiramente talhadas num meio fino de perspectivas encavaladas, de distâncias, de divergências e de disparidades comunicantes, de potenciais e de intensidades heterogêneas; não se trata, primeiramente, de resolver tensões no idêntico, mas de distribuir disparates numa multiplicidade. As limitações correspondem a uma simples potência da primeira dimensão  num espaço de uma dimensão e de uma direção, como no exemplo de Leibniz invocando barcos levados pela corrente, pode haver choques, mas estes choques têm, necessariamente, valor de limitação e de igualização, não de neutralização nem de oposição. Quanto à oposição, ela representa a potência da segunda dimensão, como um desdobramento das coisas num espaço plano, como uma polarização reduzida a um só plano; e a própria síntese se faz somente numa falsa profundidade, isto é, numa terceira dimensão fictícia que se acrescenta às outras e se contenta em desdobrar o plano. De qualquer modo, o que nos escapa é a profundidade original, intensiva, que é a matriz do espaço inteiro e a primeira afirmação da diferença; nela, vive e borbulha em estado de livres diferenças, o que, em seguida, só aparecerá como limitação linear e oposição plana. Em toda parte, os pares, as polaridades, supõem feixes e redes; as oposições organizadas supõem irradiações em todas as direções. As imagens estereoscópicas só formam uma oposição plana e rasa; elas remetem, de modo totalmente distinto, a uma estratificação de planos coexistentes móveis, a uma "disparação" na profundidade original. Em toda parte, a profundidade da diferença é primeira; e de nada adianta reencontrar a profundidade como terceira dimensão se ela não foi posta de início como envolvendo as duas outras e envolvendo a si própria como terceira. O espaço e o tempo só manifestam oposições (e limitações) na superfície, mas, em sua profundidade real, supõem diferenças distintamente volumosas, afirmadas e distribuídas, que não se deixam reduzir à trivialidade do negativo. Como no espelho de Lewis Carroll, em que tudo aparece ao contrário e invertido na superfície, mas "diferente" em espessura. Veremos que isto acontece a propósito de qualquer espaço, o geométrico, o físico, o biopsíquico, o social, o lingüístico (como se mostra pouco correta a esse respeito a declaração de Trubetskoi: "A idéia de diferença supõe a idéia de oposição... "). Há uma falsa profundidade do combate, mas, sob o combate, há o espaço de jogo das diferenças. O negativo é a imagem da diferença, mas sua imagem achatada e invertida, como a vela no olho do boi, o olho do dialético sonhando com um vão combate?
(...)

Gilles Deleuze in Diferença e Repetição, 1968 

Nenhum comentário:

Postar um comentário