A diferença, a afirmação e a negação
A diferença tem sua experiência crucial: toda vez que nos encontramos diante de ou
em uma limitação, diante de ou em uma oposição, devemos perguntar o que tal situação
supõe. Ela supõe um formigamento de diferenças, um pluralismo de diferenças livres,
selvagens ou não domadas, um espaço e um tempo propriamente diferenciais, originais,
que persistem através das simplificações do limite e da oposição. Para que oposições de
forças ou limitações de formas se delineiem, é preciso, primeiramente, um elemento real
mais profundo que se defina e se determine como uma multiplicidade informal e potencial. As oposições são grosseiramente talhadas num meio fino de perspectivas
encavaladas, de distâncias, de divergências e de disparidades comunicantes, de potenciais
e de intensidades heterogêneas; não se trata, primeiramente, de resolver tensões no
idêntico, mas de distribuir disparates numa multiplicidade. As limitações correspondem a
uma simples potência da primeira dimensão num espaço de uma dimensão e de uma
direção, como no exemplo de Leibniz invocando barcos levados pela corrente, pode
haver choques, mas estes choques têm, necessariamente, valor de limitação e de
igualização, não de neutralização nem de oposição. Quanto à oposição, ela representa a
potência da segunda dimensão, como um desdobramento das coisas num espaço plano,
como uma polarização reduzida a um só plano; e a própria síntese se faz somente numa
falsa profundidade, isto é, numa terceira dimensão fictícia que se acrescenta às outras e se
contenta em desdobrar o plano. De qualquer modo, o que nos escapa é a profundidade
original, intensiva, que é a matriz do espaço inteiro e a primeira afirmação da diferença;
nela, vive e borbulha em estado de livres diferenças, o que, em seguida, só aparecerá
como limitação linear e oposição plana. Em toda parte, os pares, as polaridades, supõem
feixes e redes; as oposições organizadas supõem irradiações em todas as direções. As
imagens estereoscópicas só formam uma oposição plana e rasa; elas remetem, de modo
totalmente distinto, a uma estratificação de planos coexistentes móveis, a uma
"disparação" na profundidade original. Em toda parte, a profundidade da diferença é
primeira; e de nada adianta reencontrar a profundidade como terceira dimensão se ela não
foi posta de início como envolvendo as duas outras e envolvendo a si própria como
terceira. O espaço e o tempo só manifestam oposições (e limitações) na superfície, mas,
em sua profundidade real, supõem diferenças distintamente volumosas, afirmadas e
distribuídas, que não se deixam reduzir à trivialidade do negativo. Como no espelho de
Lewis Carroll, em que tudo aparece ao contrário e invertido na superfície, mas
"diferente" em espessura. Veremos que isto acontece a propósito de qualquer espaço, o
geométrico, o físico, o biopsíquico, o social, o lingüístico (como se mostra pouco correta a esse respeito a declaração de Trubetskoi: "A idéia de diferença supõe a idéia de
oposição... "). Há uma falsa profundidade do combate, mas, sob o combate, há o espaço
de jogo das diferenças. O negativo é a imagem da diferença, mas sua imagem achatada e
invertida, como a vela no olho do boi, o olho do dialético sonhando com um vão
combate?
(...)
Gilles Deleuze in Diferença e Repetição, 1968
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