terça-feira, 13 de agosto de 2019

SEM EU

Ao final do expediente no Caps, o psiquiatra se prepara para sair quando um barulho forte invade a sua sala. Veio do lado. Ao avistar um paciente em estado de desespero, choro, agonia e delírio, o psiquiatra viaja nas planícies acinzentadas do seu próprio pensamento, apesar de estar contido nas teias da razão médica. Em torno de si e para si ele se encurva num movimento dolorosamente imperceptível. Pensa em silêncio o próprio silêncio da morte em vida. De há muito sabe (e compreendeu) que não existe a esquizofrenia como entidade clínica, a que é formatada pela ciência biomédica. Isso (evidente) é uma fraude neurofabricada ao longo da história da psiquiatria. No entanto, existe, existe sim a experiência esquizofrênica, a qual se expressa fora dos enquadres normais da convivência humana. Mas ela não está fora da normalidade. Ela, a experiência, é o próprio fora como território afetivo órfão, um traste psíquico (não explícito, claro) de acordo com o código internacional dos transtornos mentais, o CID. A desrazão assombra e desconcerta o senso comum, preciosa linha subjetiva que naturalmente costuma organizar a pessoa e sua conduta civilizada. No universo da loucura a experiência esquizofrênica dilacera o próprio eu, não só cindindo-o, estilhaçando-o, mas fazendo dele um mero joguete das intensidades mais destrutivas. Quem sou senão o produto de mil forças que escapam ao controle? Ao contrário, me controlam, me compõem, me impõem, me levam, me determinam, fazendo do mundo (mesmo um Caps) um lugar onde não mais me reconheço. É essa alma errante que configura o choro convulso no aniquilamento da subjetividade humilhada diante dos homens saudáveis. Que fazer diante de tanto desamparo existencial, psiquico, social, linguístico, ontológico e espiritual? Do outro lado da rua, do outro lado do muro chega a notícia de que não podem ajudá-lo porque ele tem um transtorno da personalidade. Um estigma científico. O horror de tal notícia ecoa nos tímpanos estourados de uma psiquiatria que já "não ouve vozes", pelo menos não mais a voz dos seus pacientes. Um pouco mais tarde o psiquiatra fica sabendo que aquele era o seu dia, o dia do psiquiatra...

A.M.

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