Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
segunda-feira, 31 de agosto de 2015
domingo, 30 de agosto de 2015
OUTROS AFETOS
Como qualquer um pode lhe dizer, não sou um homem muito bom. Não sei que palavra usar para me definir. Sempre admirei o vilão, o fora-da-lei, o filho-da-puta. Não gosto dos garotos bem barbeados com gravatas e bons empregos. Gosto dos homens desesperados, homens com dentes rotos e mentes arruinadas e caminhos perdidos. São os que me interessam. Sempre cheios de surpresas e explosões. Também gosto de mulheres vis, cadelas bêbadas que não param de reclamar, que usam meias-calças grandes demais e maquiagens borradas. Estou mais interessado em pervertidos do que em santos. Posso relaxar com os imprestáveis, porque sou um imprestável. Não gosto de leis, morais, religiões, regras. Não gosto de ser moldado pela sociedade.
(...)
Charles Bukowski
MUNDO ENCANTADO
(...) Como diz Marx, no começo os capitalistas
têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capital,
e do uso do capital como meio de extorquir sobretrabalho.
Mas depressa se instaura um mundo perverso enfeitiçado, ao mesmo
tempo em que o capital tem o papel de superfície de registro
que se assenta sobre toda a produção (fornecer mais-valia, ou realizá-la,
eis o direito de registro). “À medida que a mais-valia relativa
se desenvolve no sistema especificamente capitalista e que a
produtividade social do trabalho cresce, as forças produtivas e as
conexões sociais do trabalho parecem destacar-se do processo produtivo
e passar do trabalho para o capital. Assim, o capital se
torna um ser bastante misterioso, pois todas as forças produtivas
parecem nascer no seio dele e lhe pertencer” (Karl Marx). E, aqui, o que é
especificamente capitalista é o papel do dinheiro e o uso do capital
como corpo pleno para formar a superfície de inscrição ou de registro.
Mas um corpo pleno qualquer — seja o corpo da terra ou
o do déspota, seja uma superfície de registro, um movimento.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari in O anti-édipo
sábado, 29 de agosto de 2015
DEVIR-IMPERCEPTÍVEL
(...) Isto é uma parte proposital da vida do guerreiro. Para escapulir dentro e fora de diferentes mundos você deve permanecer discreto. Quanto mais você ser conhecido e identificado, mais sua liberdade vai ser reduzida. Quando as pessoas tiverem idéias definitivas sobre quem é você e como você vai agir, você não poderá mais se mexer. Uma das primeiras coisas que Don Juan me ensinou foi que eu tinha que apagar minha história pessoal. Se aos poucos você criar uma névoa em torno de si então você não vai ser tomado como garantia e você tem mais espaço para se mexer.
(...)
Carlos Castañeda - entrevista - 1972
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
terça-feira, 25 de agosto de 2015
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
NOTÍCIAS DO SILÊNCIO
liberdade é o cacete
precisamos é de pão.
nem só de paraíso
morre o homem
cancelado coração.
democracia tudo bem
e o menino sem saliva.
na noite dos embusteiros
cultura posta a porrada
nas tripas da Rotativa.
enquanto os donos da esquerda
se chupam com os da díreíta
o pássaro não sonha o vôo
a vida morta na merda
como um carrasco à espreita.
Afonso Henriques Neto
domingo, 23 de agosto de 2015
ECONOMIA - APOTEGMAS DO VIL METAL (XVIII)
Vi o milionário saltar da limusine, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: "Passa tudo e não chia!"
Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: "Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor - você faz o que pode para conseguir o que precisa.
Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?"
Millôr Fernandes
NÃO MERECEMOS
Se o cristianismo tivesse razão em suas teses acerca de um Deus vingador, da pecaminosidade universal, da predestinação e do perigo de uma danação eterna, seria um indício de imbecilidade e falta de caráter não se tornar padre, apóstolo ou eremita e trabalhar, com temor e tremor, unicamente pela própria salvação; pois seria absurdo perder assim o benefício eterno, em troca de comodidade temporal. Supondo que se creia realmente nessas coisas, o cristão comum é uma figura deplorável, um ser que não sabe contar até três, e que, justamente por sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tão duramente quanto promete o cristianismo.
(...)
Nietzsche
SALTO
“Quem é o Buda?
O bosque de bambu
No sopé do monte Chang-lin.”
O louco costuma quebrar as coisas
incomoda a ordem caseira
é necessário trancá-lo.
O imperador costuma polir os códigos
é uma honra recebê-lo em casa
imagine só ele conversando na intimidade.
As leis bloqueiam o louco
que bloqueia as leis.
O imperador não se abraça ao louco.
O louco não reconhece o imperador.
Cinco tiranossauros flutuam no entardecer.
Afonso Henriques Neto
QUEM MANDA?
Deleuze e Guattari mencionam que o surgimento do Estado Moderno Capitalista levou a uma "falência dos códigos" marcada pela "emergência da propriedade privada, a riqueza, a mercadoria, as classes". A partir desse momento, o "Estado já não pode se concentrar em sobrecodificar elementos territoriais já codificados; ele deve inventar códigos específicos para fluxos cada vez mais desterritorializados: pôr o despotismo a serviço da nova relação de classes; integrar as relações de riqueza e de pobreza, de mercadoria e de trabalho; conciliar o dinheiro mercantil com o dinheiro fiscal. (...) O que o Estado despótico corta, sobrecorta ou sobrecodifica, é o que vem antes, a máquina territorial, que ele reduz ao estado de tijolos, de peças trabalhadoras submetida desde então à ideia cerebral".
"O Estado, inicialmente, era esta unidade abstrata que integrava subconjuntos que funcionavam separadamente; agora, está subordinado a um campo de forças cujos fluxos ele coordena e cujas relações autônomas de dominação e subordinação ele exprime. Ele não mais se contenta em sobrecodificar territorialidades mantidas e ladrinhadas; deve constituir, inventar códigos para os fluxos desterritorializados do dinheiro, da mercadoria e da propriedade privada. Já não forma por si mesmo uma ou mais classes dominantes; ele próprio é formado por essas classes tornadas independentes e que o incubem da prestação de serviços à potência delas e às suas contradições, às suas lutas e aos seus compromissos com as classes dominadas. O Estado já não é a lei transcendente que rege fragmentos; mal ou bem, ele deve desenhar um todo ao qual dá a sua lei imanente. Já é o puro significante que ordena seus significados, mas aparece agora atrás deles e depende do que ele próprio significa. Já não produz uma unidade sobrecodificante, mas ele próprio é produzido no campo de fluxos descodificados. Como máquina, o Estado já determina um sistema social, mas é determinado pelo sistema social ao qual se incorpora no jogo de suas funções".
"Fluxos descodificados - quem dirá o nome desse novo desejo? Fluxo de propriedades que se vendem, fluxo de dinheiro que escorre, fluxo de produção e de meios de produção que se preparam na sombra, fluxo de trabalhadores que se desterritorializam: será preciso o encontro de todos esses fluxos descodificados, sua conjunção, a reação de uns sobre os outros, a contingência desse encontro, desta conjunção, desta reação que se produzem uma vez, para que o capitalismo nasça e que o antigo sistema encontre a morte que lhe vem de fora, ao mesmo em que nasce a vida em que o desejo recebe seu novo nome".
O "Estado Capitalista", sob o contexto histórico marcado por fluxos de descodificação cada vez mais intensos e generalizados, exerce a prerrogativa de regulação ou regulamentação: esses fluxos exigem "órgãos sociais de decisão, de gestão, de reação, de inscrição, uma tecnocracia e uma burocracia que não se reduzem ao funcionamento de máquinas técnicas. Em suma, a conjunção dos fluxos descodificados, suas relações diferenciais e suas múltiplas esquizas ou fraturas, exigem toda uma regulação cujo principal órgão é o Estado. O Estado Capitalista é o regulador dos fluxos descodificados como tais, enquanto tomados na axiomática do capital. Nesse sentido, ele completa bem o devir-concreto que nos pareceu presidir à evolução do Urstaat despótico abstrato: de unidade transcendente, ele devém imanente ao campo de forças sociais, passa a seu serviço e serve de regulador aos fluxos descodificados e axiomatizados".
"Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação dos fluxos descodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos dessa função consiste em reterritorializar, de modo a impedir que fluxos descodificados fujam por todos os cantos da axiomática social. Às vezes, tem-se a impressão de que os fluxos de capitais voltar-se-iam de bom grado à lua, se o Estado capitalista não estivesse lá para reconduzi-los à terra".
Na axiomática do capitalismo, fundada em processos de desterritorialização e territorialização cada vez mais intensos e abrangentes, o Estado exerce a função de gestão e regulação dos fluxos, conduzindo-os em determinada direção, ordenando-os em compartimentos e vias pré-estabelecidas, garantindo, desta forma, os meios para toda forma de arranjamento e decodificação exercidos pela máquina capitalista.
(...)
Gilles Deleuze e Félix Guattari, excertos do Anti-édipo, extraído do blog "Antropologia Simétrica " de Diego Soares, visitado em 23/08/2015.
ESTATIZAÇÃO DO MAL
Naquela noite de 13 de agosto, a mais violenta do ano nos fundões da Grande São Paulo, o horror registrou alta produtividade. Noves fora seis feridos, contabilizaram-se 18 assassinatos em apenas três horas. Repetindo: em uma, duas, três horas, foram passados nas armas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 brasileiros pobres. Decorridos dez dias, ficou-se sabendo neste sábado que a suspeita mais forte é a de que os crimes foram cometidos por policiais militares.
A ser verdade, trata-se de mais uma erupção de um fenômeno já incorporado à anormal normalidade brasileira: a estatização do mal. O extermínio estatal é obra nacional —numa tarde, some um Amarildo no Rio de Janeiro. Num final de semana, vão à cova 34 pessoas em Manaus. Numa noite, faz-se até um massacre do Carandiru em São Paulo, que dirá 18 defuntos…
Na chacina do dia 13, matou-se por sorteio lotérico: amigos que bebiam cerveja em bares, um ajudante de pedreiro que voltava para casa, um rapaz que saíra para comprar um lanche, um pai de família que jogava conversa fora na calçada… Os atiradores devem ter puxado o gatilho porque suas vítimas eram parecidas demais com eles. Moravam nos mesmos bairros pobres. Levavam as mesmas vidinhas miseráveis.
Supondo-se que os asassinos são mesmo policiais, apenas um detalhe os diferencia dos assassinados: a autoridade estatal. Uma autoridade covarde, com o rosto encoberto, expedindo sentenças de morte como se tocasse um hipotético programa de autorregulação da pobreza baseado no genocídio em conta-gotas.
Ao contemplar o extermínio em silêncio, o brasileiro bem-nascido torna-se criminoso por omissão. Cerca-se de câmeras de segurança. Não conversa com a polícia a não ser em legítima defesa. E finge planejar o futuro em meio ao insolúvel e sem levar em conta que, no Brasil, a besta coletiva ainda não mostrou do que é capaz. Já parou de abanar o rabo. Mas ainda não começou a morder.
Blog do Josias de Souza, 23/08/2015, 04:25 hs
sábado, 22 de agosto de 2015
UMA CRIANÇA
Gilles Deleuze e Félix Guattari trabalham com três categorias teóricas em filosofia (ver "O que é a filosofia?"). Elas lhe servem como linhas de afirmação das singularidades, ou mais amplamente, da própria DIFERENÇA. São: O Conceito, o Plano de Imanência e os Personagens Conceituais. Nestes últimos, não podemos deixar de incluir a CRIANÇA e a sua alegria "sem motivo", sua espontaneidade-criativa, sua produção incessante e infatigável de realidades múltiplas, seu choro não-trágico, seus jogos pela e na vida, sua vida desprovida de culpa e ressentimento, sobretudo seus erros fazendo parte dos acertos, enfim, uma BELEZA "espiritual" inscrita na velocidade da carne dos corpos lisos. No mais, só o cristianismo ( a doença entronizada) e a sua má vontade crônica contra tudo o que é belo, político e ético, consegue "melar"o desejo como produção órfã, atéia e anarquista.
A.M.
AS BOMBAS MAIORES
As pessoas têm a tendência de ver apenas as bombas mais próximas e ignorar aquelas escondidas, que ameaçam o futuro. As bombas do momento são a corrupção que joga estilhaços de vergonha sobre todos os políticos, especialmente dos partidos no governo; e o descrédito de um governo que errou na economia, faltou com a verdade na campanha e descumpriu promessas. Apesar disto, o governo vê apenas as bombas imediatistas que ameaçam o equilíbrio fiscal.
A crise política, econômica e moral que atravessamos parece impedir a percepção das bombas que ameaçam o futuro mais distante. Ficamos presos à bomba da corrupção, da inflação, do descrédito da presidente e dos políticos em geral, não vemos as outras bombas.
A dívida dos estados e municípios já em fase de explosão, mesmo assim ainda é relegada. A explosão de gastos públicos, face às limitações da já imensa carga fiscal, destroçará as contas públicas. Nossos entes federados estão atravessando a linha que separa dificuldades fiscais conjunturais da falência estrutural, com suas consequências sobre os serviços públicos e os salários dos servidores. A Previdência explodirá em algum momento não muito distante, trazendo sacrifícios devastadores sobre a população mais velha do país e penalizando os jovens.
A pobreza — sobretudo depois de ter sido escondida pelo marketing governamental dos últimos anos, afirmando que ela teria sido transformada em classe média porque, endividando-se, consegue comprar alguns equipamentos domésticos — está explodindo na miséria da falta de educação, saúde, segurança, mobilidade. A violência urbana é uma bomba que explode como uma guerra civil de proporções gigantescas, matando quase 60 mil brasileiros por ano.
Nossa má educação e o consequente atraso na ciência e na tecnologia, que nos deixam cada dia mais atrasados em relação ao resto do mundo, são a bomba que impedirá nosso ingresso no mundo do conhecimento que caracteriza a economia e a sociedade.
O endividamento das famílias pode explodir, inviabilizando nosso sistema financeiro aparentemente sólido e sacrificando a vida de nossa população. A incapacidade de gestão que caracteriza o Estado brasileiro dos últimos anos ameaça o crescimento de nossa economia e o bom funcionamento de nossa sociedade. A baixa poupança de nossas famílias, empresas e governo é uma bomba que impede os investimentos necessários à construção de uma infraestrutura eficiente, ao crescimento da economia e ao aumento da produtividade de nossa indústria. O desemprego é uma bomba trágica de grandes proporções. A bomba do consumo de drogas corrói famílias e anula o potencial de dezenas de milhares de jovens.
Mas, a maior das bombas é a despolitização do debate entre grupos políticos sem visão nem propostas, presos às pequenas bombas do presente, sem a percepção das grandes em andamento: o divórcio entre as urnas e as ruas, entre os políticos e o povo, está explodindo no colo da democracia.
Cristovam Buarque, extraído do Blog do Noblat, 22/08/2015, 01:10 hs
SEM CONVERSA
É difícil "se explicar" – uma entrevista, um diálogo, uma conversa. A
maior parte do tempo, quando me colocam uma questão, mesmo que ela me
interesse, percebo que não tenho estritamente nada a dizer. As questões são
fabricadas, como outra coisa qualquer. Se não deixam que você fabrique suas
questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as
colocam a você, não tem muito o que dizer. A arte de construir um problema
é muito importante: inventa-se um problema, uma posição de problema,
antes de se encontrar a solução. Nada disso acontece em uma entrevista, em
uma conversa, em uma discussão. Nem mesmo a reflexão de uma, duas ou
mais pessoas basta. E muito menos a reflexão. Com as objeções é ainda pior.
Cada vez que me fazem uma objeção, tenho vontade de dizer: "Está certo,
está certo, passemos a outra coisa." As objeções nunca levaram a nada. O
mesmo acontece quando me colocam uma questão geral. O objetivo não é
responder a questões, é sair delas. Muitas pessoas pensam que somente
repisando a questão é que se pode sair delas. "O que há com a filosofia? Ela
está morta? Vai ser superada?" É muito desagradável. Sempre se voltará à
questão para se conseguir sair dela. Mas sair nunca acontece dessa maneira.
O movimento acontece sempre nas costas do pensador, ou no momento em
que ele pisca. Já se saiu, ou então nunca se sairá. As questões estão, em geral,
voltadas para um futuro (ou um passado). O futuro das mulheres, o
futuro da revolução, o futuro da filosofia etc. Mas durante esse tempo,
enquanto se gira em torno de tais questões, há devires que operam em
silêncio, que são quase imperceptíveis. Pensa-se demais em termos de
história, pessoal ou universal. Os devires são geografia, são orientações,
direções, entradas e saídas. Há um devir-mulher que não se confunde com
as mulheres, com seu passado e seu futuro, e é preciso que as mulheres
entrem nesse devir para sair de seu passado e de seu futuro, de sua
história. Há um devir-revolucionário que não é a mesma coisa que o futuro da revolução, e que não passa inevitavelmente pelos militantes. Há um
devir-filósofo que não tem nada a ver com a história da filosofia e passa,
antes, por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar.
(...)
Gilles Deleuze e Claire Parnet in Diálogos
QUANDO O SOL
quando o sol tornar a colorir a figueira da montanha
aves iluminadas estarão cantando em teu silêncio.
escutarás então o inexistente tempo
fluindo sob o peso morno das lágrimas:
sob sob.
quando o sol tocar o vento
e os longos dedos de gelo
coçarem a pele da manhã
incendiando os galos e os cabelos
das árvores e montanhas
dos caracóis e cachoeiras
quando o sol puxar entre os dentes
o interno verbo de todas as galáxias
altas redes de vento e luz e infinito
saberás que atrás de cada tortura
de cada assassínio
de toda a impostura
detrás de cada negação ou falsificação
do humano manancial
o olhar da vida
o permanente olhar da vida
sempre ardeu como um grito saltando do pó do avesso do ódio
dos ossos das sepulturas dos cárceres do rosto vazio e
implacável.
Afonso Henriques Neto
O TSE REAGIU
A pseudo-explicação do PT para as verbas sujas que migraram dos cofres da Petrobras para a caixa registradora do partido —''foi tudo declarado à Justiça Eleitoral''— transformou o TSE numa inusitada lavanderia. Nesta sexta-feira, o ministro Gilmar Mendes mandou a Procuradoria-Geral da República investigar os indícios de que a campanha reeleitoral de Dilma Rousseff foi financiada por petropropinas. Demorou! Apurar é o mínimo a ser feito.
Pelo menos três delatores do petrolão —o doleiro Alberto Youssef, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o executivo da empresa Toyo Setal Augusto Ribeiro de Mendonça Neto— contaram aos procuradores da Lava Jato que parte da dinheirama roubada da Petrobras foi repassada ao PT disfarçada de doação oficial.
Outro delator, o ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco, estimou em até US$ 200 milhões o montante de propinas amealhado pelo PT apenas na diretoria que era comandata por Renato Duque, um preposto de José Dirceu.
Coordenador do cartel da pilhagem, o empreiteiro-companheiro Ricardo Pessoa, dono da UTC, contou à Procuradoria que um pedaço do butim foi convertido num pixuleco de R$ 7,5 milhões para a campanha de Dilma. E a presidente reeleita: “Não respeito delator” E o PT: “Tudo legal, incluído na prestação de contas ao TSE”.
A contabilidade do PT despejou nos escaninhos do TSE um amontoado de cifras malcheirosas. Diante delas, o pior cego é o que não tem olfato. Com o pedido de investigação de Gilmar Mendes, a Justiça Eleitoral começou a abrir as narinas.
Blog do Josias de Souza, 21/08/2015, 23:04 hs
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
ISSO
Da união entre o espermatozóide e o óvulo humanos surge um ser humano, não um cachorro ou um pássaro; nele há um Isso que força o desenvolvimento do ser, que constrói o corpo e a alma do ser humano. Esse Isso dota sua criatura, a personalidade, o Ego do ser humano, de nariz, boca, músculos, ossos, cérebro, faz com que esses órgãos funcionem e entrem em atividade já antes do nascimento, e impele o ser que está surgindo a ações convenientes, antes de completar-se o desenvolvimento de seu cérebro. Pergunta-se se esse Isso, que é capaz de tanta coisa, não estaria em condições de construir igrejas, de compor uma tragédia ou inventar máquinas; pergunta-se se toda manifestação de vida humana, seja corporal ou psíquica, saudável ou enfermiça, pensamento, ação ou função vegetativa não pode ser atribuída em última análise ao Isso, de modo que o corpo, a alma e a vida conscientes fossem uma ilusão.
(...)
Georg Groddeck
EUZINHO PRIVADO
Não existe mundo subjetivo interno. A subjetividade (que preferimos chamar de modo de subjetivação) vem de fora e volta para fora, mesmo em casos de grave fechamento existencial, como nas psicoses autísticas. São dados clínicos facilmente observáveis no contexto familiar onde o paciente está inserido..Neste sentido, a redução (na clínica) dos modos de subjetivação aos conceitos de eu, indivíduo, sujeito, consciência, cérebro, comportamento, conexões neuro-sinápticas, alterações físico-químicas, ou qualquer patologia que atinja o chamado organismo e páre aí, institui o primado da necessidade do controle sobre os corpos: biopoder. Toda esta engrenagem se encontra encoberta por ideais humanistas de bem ao próximo com um olho na lucratividade do mercado. Mais doentes, mais remédios, mais profissionais da alma. A salvação dos tempos esquizofrênicos fica na órbita das transcendências do euzinho privado e em paz com suas consciências.
A.M
ASSIM
Vomitaram trinta estrelas nesse charco
de líquidos corpos empoçados.
Nas tocas iluminadas os que se iniciam na morte
fantasmas de si mesmos
fecundam ritmos e bússolas e fracassos.
Há desgosto e música na atmosfera branca
negra.
Vomitaram trinta estrelas talvez mais
mas o buraco se fecha.
Em silêncio algumas flores resistem
nas verdes gramas do sol.
Afonso Henriques Neto
COMO A COISA FUNCIONA
(...) (...) O produto, de propriedade do capitalista, é um valor-de-uso, fios, calçados etc. Mas, embora calçados sejam úteis à marcha da sociedade e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica sapatos por paixão aos sapatos. Na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro amor aos valores-de-uso. Produz valores-de-uso apenas por serem e enquanto forem substrato material, detentores de valor-de-troca. Tem dois objetivos. Primeiro, quer produzir um valor-de-uso, que tenha um valor-de-troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. E segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o valor conjunto das mercadorias necessárias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado. Além de um valor-de-uso quer produzir mercadoria, além de valor-de-uso, valor, e não só valor, mas também valor excedente (mais valia).
(...)
K. Marx
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
DESTINO
Nada há que tão notavelmente determine o auge de uma civilização, como o conhecimento, nos que a vivem, da esterilidade de todo o esforço, porque nos regem leis implacáveis, que nada revoga nem obstrui. Somos, porventura, servos algemados ao capricho de deuses, mais fortes porém não melhores que nós, subordinados, nós como eles, à regência férrea de um Destino abstrato, superior à justiça e à bondade, alheio ao bem e ao mal.
(...)
Fernando Pessoa
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
terça-feira, 18 de agosto de 2015
A RELIGIÃO E SEUS MALES
Quando alguém é religioso (não importa de qual religião) e vocifera contra os incrédulos, os sem fé, os não religiosos, até chamando-os de ímpios, esse fato é um caso que serve de exemplo e ilustração para uma velha tese freudiana. Diz-se, pois, que os fanáticos religiosos (tendo como matriz subjetiva a religiosidade) professam um ateísmo oculto. Eles não acreditam! Vacilam (sem perceber, claro...) sobre a sua própria fé e o sentido que ela lhes empresta. E lhes move. Por tal motivo, necessitam ofender o ateu, o agnóstico, e mais amplamente, todos os que dispensam a transcendência, o além-mundo como explicação da vida. Deste modo, a fé inabalável dos religiosos mantém-se à salvo dos grandes enigmas da condição humana, metafísica e cósmica que nos constitui. Nada mais se discute, nada mais se ouve, nada mais se diz, nada mais se cria, nada mais se pensa, senão o uso totalitário de dogmas embolorados e pseudo-imobilizadores do movimento da História.
A.M.
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
NOVOS TEMPOS?
Durante dois anos, o Bolsa Família propiciou a Lula seus momentos de são Francisco de Assis. Mesmo depois do mensalão, quando o PT deixou o socialismo para cair na vida, Lula manteve o prestígio escorado numa hipotética castidade presumida. Neste domingo, o asfalto começou a descanonizar o personagem. Um gigantesco boneco de Lula, vestido de presidiário, ornamentou os protestos de Brasília. Virou meme na internet. Evidência de que o teflon que protegia a imagem de Lula não é impermeável ao óleo queimado do petrolão.
Num instante em que a sua voz soa nos grampos da Lava Jato e sua prosperidade lateja na conta bancária, Lula encontra-se na constrangedora posição de um ex-presidente supostamente honrado que legou à sucessora uma esbórnia e continuou enrolado na bandeira da moralidade. Um pedaço das ruas informa que já não se dispõe a engolir a imagem que Lula faz de si mesmo.
Na página 147 do livro ‘Lula, o filho do Brasil’, da pesquisadora Denise Paraná, Lula pintou assim o seu auto-retrato: “…Se eu não tivesse algumas [qualidades pessoais] não teria chegado aonde cheguei. Eu não sou bobo. Acho que cheguei aonde cheguei pela fidelidade aos propósitos que não são meus, são de centenas, milhares de pessoas.''
No momento, um fantasma assombra as noites de Lula na cobertura de São Bernardo. Trata-se da assombração do próprio Lula, quando fazia pose de puro e imaculado. A alma penada ronda-lhe os sonhos, brandindo faixas com bordões inconvenientes. Coisas como ‘Abaixo a corrupção’. Ou ‘Fora Collor’. Ou ainda ‘Abaixo os 300 picaretas do Congresso’.
Um outro fantasma atormenta Lula: Sérgio Moro. Cultuado nas manifestações deste domingo,o juiz da Lava Jato está para o petrolão assim como Joaquim Barbosa estava para o mensalão. Com duas diferenças: as delações proliferam e Lula, sem mandato, agora está ao alcance da primeira instância do Judiciário.
Blog do Josias de Souza, 16/08/2015, 18:11 hs
domingo, 16 de agosto de 2015
GRITOS
Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.
Vladimir Maiakóvski
A ILUSÃO REAL
Hoje ela tem 59 anos e é (ainda) professora. Mora em alguma cidade perdida na imensidão desse "pequeno país". Há muito tempo ( lá pros idos de 1980 ) ela acreditou e mais que isso, sonhou com um novo mundo pós-ditadura. Sem veleidades revolucionárias, ela nem gostava das chamadas esquerdas...mas cultivava o ideal de uma ética pública, uma ética de cuidado à coisa pública, uma ética do Coletivo, enfim. Naquele tempo, o PT se organizava e brotava da sociedade civil, onde a voz do cidadão, do trabalhador, das minorias, do guerreiro das grandes cidades, do homem do campo, enfim, de todos os que queriam um país-outro, soava como palavra de ordem inquebrantável. As coisas vão melhorar..." sei que sim", enunciado compondo ações práticas, e mais que isso, tomando muita gente com um novíssimo sentimento de vitalidade política, o que fazia por disseminar, sorrir e gargalhar subjetividades construídas em novas formas de fazer política. Passados tantos anos, tantas trapaças, a nossa professora diz ainda acreditar no "seu" sonho petista. Assim como as lembranças de um velho amigo falecido tragicamente, surgem como realidades "reais", ela ainda acredita no Partido dos Trabalhadores, ela lhe fixa os pés, a cabeça e a alma, mesmo que sobre um território político roto e apodrecido. Se fosse o contrário, um caso de ceticismo, ceticismo "saudável", ela desmoronaria em areias movediças e pantanosas. E se perguntaria, em pânico: "quem sou?". Ora, o que fazer de tudo isso, como fazer, COMO FAZER, se para a condição humana é muito difícil elaborar a perda e o livre fluxo dos devires? No fim, que é ou deveria ser o meio (não o começo!), acalentar ilusões, produzir delírios, faz mais sentido do que viver o Vazio, o Abismo ou a Solidão como elementos do processo da existência sócio-histórica. Se estamos parados, mesmo que nas ruas, não é a sertralina na veia que nos salvará. Até porque "salvação"é tão só uma palavrinha cristã que há dois milênios nos consome: um antídoto contra a vida.
A.M.
A CELEBRAÇÃO DO MESMO
Conhecido muldialmente como o país do jeito para tudo, o Brasil vai se revelando o país que não tem jeito mesmo. É como se existisse na nação uma falha estrutural. Uma auto-indulgência congênita que frustra todas as tentativas de reformá-la. Uma maldição mais forte do que o sentimento de culpa. Uma urucubaca que leva a uma constatação asfixiante: na política brasileira, não há mais culpados nem inocentes, só há cúmplices. O cinismo transcende a indignação das ruas.
Às vezes, o escândalo é tão escancarado que desafia o sistema de coniveniências tácitas. É impossível não reagir. Surge uma força-tarefa de delegados e procuradores. Levanta-se um juiz. Gritam as manchetes. O saco cheio nacional vai ao asfalto. Tem-se a sensação de que as coisas estão mudando. Mas entre a revolta e suas consequências há uma gigantesca área de manobra regulada pelo assim-mesmismo. Institucionalizou-se a rapinagem? Ah, é assim mesmo!
Bons tempos aqueles em que alguma coisa estava fora da ordem. Hoje, generalizou-se a desordem. O eleitor premia os gatunos? Eleição é assim mesmo! O Congresso protege seus suspeitos? Espírito de corpo é assim mesmo. Os partidos usufruem do roubo? Cleptocracia é assim mesmo.
Nos dias que antecederam a manifestação deste domingo, o sistema se autoconcendeu um assim-mesmo preventivo. O PMDB da Lava Jato assumiu o controle da situação. PSDB e DEM deixaram-se liderar por um notório Eduardo Cunha. Dilma passou a ser presidida pelo também notório Renan Calheiros. O TCU voltou a ser o velho tribunal de faz de conta da União. O TSE consolidou-se como um Tribunal Superior da Embromação.
Como se fosse pouco, os líderes dos movimentos anti-Dilma revelaram-se, em entrevistas à BBC, adeptos de uma moral transigente. Descem o sarrafo em Dilma. Querem derrubá-la. Mas passam a mão na cabeça do presidente da Câmara. Enxergam nele uma cunha (com trocadilho, por favor) para desencavar o impeachment. Exigem a ética na casa do vizinho agindo como autênticos, digamos, deputados. É o igual disfarçado de novo.
As ruas parecem desperdiçar esperança. O assim-mesmismo se reorganiza. Tudo faz supor que a crise não se resolverá. O barulho é que tende a ser sufocado pela inércia. Logo, logo o silêncio será o maior de todos os escândalos. Ficará entendido que, no Brasil, o cinismo é uma forma de patriotismo.
Blog do Josias de Souza, 16/08/2015, 05:31 hs
sábado, 15 de agosto de 2015
SURPRESA!
Estranho é que o cérebro, feito essencialmente pra produzir idéias, exulte quando tem uma.
Millôr Fernandes
PARA ALÉM DOS DUALISMOS
(...) A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos
roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que
se rouba esse corpo: páre de se comportar assim, você não é mais uma
menininha, você não é um moleque, etc. É à menina, primeiro, que se rouba
seu devir para impor-lhe uma história, ou uma pré-história. A vez do menino
vem em seguida, mas é lhe mostrando o exemplo da menina, indicando-lhe a
menina como objeto de seu desejo, que fabricamos para ele, por sua vez, um
organismo oposto, uma história dominante. A menina é a primeira vítima,
mas ela deve também servir de exemplo e de cilada. É por isso que,
inversamente, a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o
anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de
uma mulher molecular. Sem dúvida, a moça torna-se mulher, no sentido
orgânico ou molar. Mas, inversamente, o devir-mulher ou a mulher
molecular são a própria moça. A moça certamente não se define por sua
virgindade, mas por uma relação de movimento e repouso, de velocidade e
lentidão, por uma combinação de átomos, uma emissão de partículas:
hecceidade. Ela não pára de correr num corpo sem órgãos. Ela é linha
abstrata ou linha de fuga. Por isso as moças não pertencem a uma idade, a
um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens,
entre os atos, as idades, os sexos; elas produzem n sexos moleculares na
linha de fuga, em relação às máquinas duais que elas atravessam de fora a
fora. A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre,
intermezzo, é o que Virgínia Woolf viveu com todas suas forças, em toda sua
obra, não parando de devir. A moça é como o bloco de devir que permanece
contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto.
Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça
universal; não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma
juventude universal. Trost, autor misterioso, fez um retrato de moça ao qual
ele liga o destino da revolução: sua velocidade, seu corpo livremente
maquínico, suas intensidades, sua linha abstrata ou de fuga, sua produção
molecular, sua indiferença à memória, seu caráter não figurativo — "o não
figurativo do desejo".
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil Platôs, vol. 4
RAROS
Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu “Zaratustra”: como eu poderia misturar-me àqueles aos quais se presta ouvidos atualmente? — Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem póstumos.
As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido — conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas — e ver a imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a verdade será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação — nascida da força — para questões que ninguém possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma experiência de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo — acumular sua força, seu entusiasmo... Auto-reverência, amor-próprio, absoluta liberdade para consigo...
Muito bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados: que importância tem o resto? — O resto é somente a humanidade. — É preciso tornar-se superior à humanidade em poder, em grandeza de alma — em desprezo...
(...)
Nietzsche
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
EPITÁFIO DE UMA ERA
Aconselhada por Lula, Dilma reuniu todas as siglas que o petismo chama de “movimentos sociais”. Fez isso para provar que não está só. Às vésperas de mais um ‘asfaltaço’, a presidente quis dar voz à sua infantaria. Entre os oradores, Vagner Freitas, presidente da CUT. Encenado no Planalto, o ato foi uma metáfora para a decadência. E o discurso do companheiro Vagner foi o epitáfio de uma era.
“O que se vende hoje no Brasil é a intolerância, é o preconceito. Preconceito de classe contra nós”, disse o mandachuva da CUT. “Quero dizer em alto e bom tom que somos defensores da unidade nacional, da construção de um projeto nacional de desenvolvimento para todos e para todas. E que isso implica agora, nesse momento, ir para as ruas, entrincheirado, com arma na mão, se tentarem derrubar a presisdenta Dilma Rousseff.”
Dirigindo-se à inquilina do Planalto, o orador por muito pouco não bateu continência. Perdido em algum lugar do século 19, declarou: “Seremos, presidenta Dilma, [diante de] qualquer tentativa de atentado à democracia, à senhora ou ao presidente Lula, nós seremos o Exército que vai enfrentar essa burguesia na rua…” Seguiu-se um coro de “não vai ter golpe.”
Vagner Freitas valeu-se uma antiga regra da propaganda: personalize. Tudo pode ser vendido, seja óleo de peroba ou uma tese, se tiver uma cara e um enredo. Dê um nome ao seu inimigo, ornamente-o com um rabo e um par de chifres e pronto! Seus problemas acabaram. A identificação de um demônio para o qual se possa transferir todas as culpas livra o orador de qualquer tipo de exame. A começar pelo mais espinhoso: o auto-exame. A CUT descobriu o seu: “A burguesia”.
O chefe da falange da CUT estava muito ocupado ajudando a fazer a história do novo Brasil para compreendê-la. Presos na Lava Jato, os ex-guerreiros do povo brasileiro consolidaram a sua desilusão. Deve ser mesmo dura a experiência de ter que aceitar, depois de 13 anos de usufruto do poder, que a conquista se deu sem método, com muita calhordice e hipocrisia.
Por sorte, José Dirceu e João Vaccari Neto estão presos. Sabe Deus o que faria o companheiro Vagner se, armado das virtudes que carrega no coldre, encontrasse a dupla de novos burgueses na rua. No momento, Dirceu, Vaccari e o imenso etcétera que compõe o esquema de pilhagem da Petrobras são os motores que podem mover o impeachment.
Vagner Freitas é um crítico ardoroso do ministro Joaquim Levy e do senador Renan Calheiros. Natural. Não é fácil suportar a ideia de ter que substituir os ídolos da infância por novos herois da resistência —sobretudo quando esses novos herois são velhos burgueses e a comandante da tropa confraterniza com eles ao mesmo tempo em que afirma que nunca mudou de lado.
Em condições normais, um presidente de central sindical pregando o uso de armas em pleno Palácio do Planalto, ao lado da suposta chefe da nação, deveria ser tratado como caso de polícia. Mas é preciso dar um desconto. Para o companheiro Vagner Freitas, a revisão da história do seu universo imaginário beira a autoflagelação. Sua retórica amalucada deve ser vista como uma espécie de contrição de alguém que elabora o epitáfio de uma era: ‘Aqui jaz a República da CUT, entrincheirada e com arma na mão!’
Blog do Josias de Souza, 14/08/2015, 04:31 hs
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
INVENTAR O TEMPO
(...) O homem, animal feroz, primo do gorila, partiu da noite profunda do instinto animal para chegar à luz do espírito, o que explica de uma maneira completamente natural todas as suas divagações passadas e nos consola em parte de seus erros presentes. Ele partiu da escravidão animal, e atravessando a escravidão divina, termo transitório entre sua animalidade e sua humanidade, caminha hoje rumo à conquista e à realização da liberdade humana. Resulta daí que a antiguidade de uma crença, de uma ideia, longe de provar alguma coisa em seu favor, deve, ao contrário, torná-la suspeita para nós. Isto porque atrás de nós está nossa animalidade, e diante de nós nossa humanidade; a luz humana, a única que pode nos aquecer e nos iluminar, a única que nos pode emancipar, tornar-nos dignos, livres, felizes, e realizar a fraternidade entre nós, jamais está no princípio, mas, relativamente, na época em que se vive, e sempre no fim da história. Não olhemos jamais para trás, olhemos sempre para a frente; à frente está nosso sol, nossa salvação; se nos é permitido, se é mesmo útil, necessário nos virarmos para o estudo de nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer.
(...)
M. Bakunin
NOVA POÉTICA
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfa, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.
Manuel Bandeira
Eu, mutilado capilar
Os barbeiros me humilham cobrando meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror.
Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número.
A frase de um amigo piedoso me consola:
— Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora.
Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas idéias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por ai.
Eduardo Galeano
EXPERIMENTAÇÕES
(...) Contra os que pensam “eu sou isto, eu sou aquilo”, e que pensam assim de maneira psicanalítica (referência à sua infância ou destino), é preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não-narcísicas, não-edipianas – nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza “eu sou bicha”. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies que o habitam. Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga?
(...)
Gilles Deleuze in Carta a um crítico severo
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
A IMBECILIDADE PROGRAMADA
A forma-universidade é uma forma de relação social ou uma relação social que se reproduz em metástases intelectuais equivalentes a um modo hegemônico de pensar a Realidade social. Tudo parte de uma Verdade instalada e desejada. Isso tem consequências concretas sobre as cabeças pensantes, ou não, já que os serviços (por exemplo, os de sáude) são utilizados como fontes inesgotáveis de dados (vide pesquisa quanti ou quali) para abastecer teses de doutoramento (ou outras) absolutamente descompromissadas, desconectadas com o devir-social. Este fato é natural, cultivado e naturalizado como Capes, Cnpq, o governo da elite intelectual, o MEC em sua versão humanista. O essencial a reter destas reflexões menores é o de que a Academia corrobora brilhantemente o Sistema Capitalístico Universal, ao mesmo tempo em que promove indivíduos inteligentes à serviço de si mesmos e de suas ambições multifacetadas.
A.M.
VELOCIDADES
(...) O meio nada tem a ver com uma média, não é um
centrismo, nem uma moderação. Trata-se, ao contrário, de uma
velocidade absoluta. O que cresce pelo meio é dotado de tal
velocidade. Seria preciso distinguir não o movimento relativo do
movimento absoluto, mas a velocidade relativa e a velocidade absoluta de
um movimento qualquer. O relativo é a velocidade de um movimento
considerado de um ponto a outro. Mas o absoluto é a velocidade do
movimento entre os dois, no meio dos dois, e que traça uma linha de fuga.
O movimento já não vai de um ponto a outro, ele se dá, antes, entre dois
níveis como em uma diferença de potencial. É uma diferença de
intensidade que produz um fenômeno, que o solta ou o expulsa, o envia
para o espaço. A velocidade absoluta pode, também, medir um
movimento rápido, mas não menos um movimento muito lento, ou até
mesmo uma imobilidade, como um movimento sem sair do lugar.
Problema de uma velocidade absoluta do pensamento: há sobre esse tema
estranhas declarações de Epicuro.
(...)
G.Deleuze e C.Parnet in Diálogos
terça-feira, 11 de agosto de 2015
O menino ia no mato
e a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do menino
e ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: mas a onça comeu você, como é que o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando o meu corpo e eu desviei depressa.
Olha mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
Manoel de Barros
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
domingo, 9 de agosto de 2015
CORAÇÕES FERIDOS
Em 2011, a doutora Dilma mostrou-se disposta a fazer uma faxina no governo. Bons tempos aqueles, tinha 47% de aprovação, um índice superior ao de todos os seus antecessores em início de governo.
Quatro anos depois, com 71% de reprovação, tem a pior marca desde 1990. A doutora arruinou-se porque a faxina era de mentirinha.
José Sergio Gabrielli levou um ano para ser tirado da presidência da Petrobras, e sua sucessora, Graça Foster, achou que resolvia o problema afastando parte da quadrilha que operava na empresa. Mexer com empreiteiras, nem pensar. Como se Barusco corrompesse o “amigo Paulinho”, que corrompia Renato Duque, o corruptor de Barusco.
Se fosse assim, o dinheiro sairia do bolso de um gatuno para o de outro, sem maiores consequências. As doutoras Dilma e Graça viam o baile, mas não ouviam a orquestra.
O doutor Eduardo Cunha gostaria muito de criar uma grave crise política e tem boas razões para isso, mas a crise que corrói o governo vem de Curitiba e só vai piorar. Renato Duque, o ex-diretor de Serviços da Petrobras, negocia sua colaboração com a Viúva.
O comissariado sabe que ele vale dez Baruscos. Não é à toa que o programa do PT de quinta-feira falou de tudo, menos das petrorroubalheiras.
A doutora Dilma está diante de um fenômeno histórico: a Lava-Jato feriu o coração da oligarquia brasileira. Tanto burocratas oniscientes como empresários onipotentes estão encarcerados em Curitiba.
Enquanto isso, prosseguem as investigações em torno da lista de Rodrigo Janot, e não há razões para supor que o Supremo Tribunal Federal seja bonzinho com a turma do foro especial. Quando a doutora se comporta como se a Lava-Jato fosse coisa de marcianos, pois “não respeito delatores”, ela atravessa a rua para se juntar à oligarquia ameaçada.
Essa oligarquia é muito mais esperta que ela. Fabricou Fernando Collor e entregou-o aos caras-pintadas. Dispensou os militares e aplaudiu Tancredo Neves.
Elio Gaspari, O Globo, 09/08/2015,08:02 hs
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