UMA POLÍTICA DA VIDA
(...) Tornar-se um território propício ao desfile dos devires nos parece, sem dúvida, um fenômeno estético, e nos parece também que esse é um objetivo essencial da filosofia deleuziana, talvez o mais importante e notável; neste trabalho, esse objetivo é nossa linha mestra. É certo que esse objetivo, o de se tornar um território fértil, deva ser pensado como uma colocação subjetiva ou individual, talvez este seja o derradeiro ato político que aparece em Deleuze, não o ato, como se este fosse a apoteose de sua filosofia, mas uma discrição, um devir ou uma virtualidade. Sabemos que todas as partículas em velocidade, consideradas sob um desenvolvimento normal, em algum momento hão de precipitar, talvez esse seja um momento análogo àquele em que tantas possibilidades de um pensamento precipitam-se num uso dominante: a reivindicação do pensamento deleuziano pelos movimentos políticos, seja de um grupo ou de um pensador, parece corresponder exatamente ao momento precipitante. Entendemos as urgências sociais e planetárias, a calamidade que se exibe no abismo existente entre um miserável que se alimenta de papelão e um milionário que coleciona lipoaspirações; imaginamos o quanto um profissional da psicologia social não deve ter chegado até essa especialidade senão por um viés crítico e humanitário (esqueçamos qualquer sentido pejorativo desse adjetivo, pois sabemos muito bem o que sentimos diante da decrepitude humana, para o bem ou para o mal); compreendemos o sentimento de revolta que todo aquele que, por uma benção ou fatalidade, alguma vez nessa vida tomou consciência da condição e circunstâncias humanas. Como num momento delicado, no qual a gagueira precede a notícia, não sabemos muito bem por onde começarmos. Certamente não diríamos que o pensamento de Deleuze não serve à consciência insurreta, nem que essa não é o melhor acolhimento das suas idéias, mas estamos tentados a usar, pela primeira vez, um artigo definido e dizer que no (e não num dos) pico mais intenso da sua filosofia, onde ferve o afecto mais perturbador da sua arte, o presente desfere um golpe mortal no seu passado, o esquecimento consome o destino daquele que desfrutava de um rosto, o emprego, o próprio nome, a mágoa e a esperança, qualquer horizonte, a vida ordinária, tudo isso se esvai. Um brutal acontecimento. Não há restituição ulterior possível. Ele nos colocou nalgum instante na corredeira da vida. Não é possível nos tornarmos reformadores, o que nos cabe é transformar, transfigurar; não podemos mais criar um partido, mas podemos agregar amigos; não podemos mais convencer os mais fortes de sua fraqueza e tampouco os mais fracos de sua força, nos foi roubado o fundamento, o argumento, o julgamento, o ressentimento, a redenção. Desapegamos de nós mesmos e nos apaixonamos pelo que acontece, desperdiçamos nossa vontade e mergulhamos no desejo, nos matam a cada dia e no dia seguinte renascemos em todo lugar, nos tornamos a vida e a vida não morre. Eis a nossa beleza, eis a nossa alienação; ainda nos resta sentir, ainda nos resta pensar, ainda nos resta sonhar. Não temos nem habitamos alguma polis, nos falta o sujeito e a alteridade, nos falta a comunicação, somos ninguém fitando os olhos de outrem, fabulando a imagem de um mundo deserto, a espera do povo porvir... somos solidão... povoada. Morreremos sentados, mas sorrindo!
(...)
Daniel D. Trindade e Tania M.G. Fonseca, "Que política é possível com o pensamento deleuziano?" in Revista Mal Estar e Subjetividade, v. 9,n.1, Fortaleza, mar/2000
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