SEM ROSTO
(...) O muro branco não pára de crescer, ao mesmo tempo que o buraco
negro funciona várias vezes. A professora ficou louca; mas a loucura é um
rosto conforme de enésima escolha (entretanto, não o último, visto que
existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal como supomos
que ela deva ser). Ah, não é nem um homem nem uma mulher, é um
travesti: a relação binária se estabelece entre o "não" de primeira categoria
e um "sim" de categoria seguinte que tanto pode marcar uma tolerância sob
certas condições quanto indicar um inimigo que é necessário abater a
qualquer preço. De qualquer modo, você foi reconhecido, a máquina
abstrata inscreveu você no conjunto de seu quadriculado. Compreende-se
que, em seu novo papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade
não se contenta com casos individuais, mas procede de modo tão geral
quanto em seu primeiro papel de ordenação de normalidades. Se o rosto é o
Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras
desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o
homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também serão
inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser cristianizados, isto
é, rostificados. O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca
procedeu por exclusão nem atribuição de alguém designado como Outro:
seria antes nas sociedades primitivas que se apreenderia o estrangeiro como
um "outro" . O racismo procede por determinação das variações de
desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em
ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são
conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas
condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a
alteridade (é um judeu, é um árabe, é um negro, é um louco..., etc). Do
ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de
fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o
serem.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari in Mil platôs, vol 3
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