DELEUZE E O DESEJO
Para falarmos do que Deleuze entende por desejo, precisamos, antes de mais nada, inverter uma ideia que circula desde Platão: o desejo como falta. Se é verdade que a psicologia se constrói com bases filosóficas e que a história é escrita pelos vencedores; então, se trocarmos as personagens na base de nossa estrutura de conhecimento, arriscamo-nos a levar abaixo toda psicologia moderna.
No lugar de Platão, coloquemos, a título de experimentação, Aristipo (435 – 366 a.C). Para Platão, este mundo é apenas uma “cópia imperfeita” do verdadeiro e imperecível “mundo das ideias”. Em seu diálogo, “Banquete”, o filósofo expõe a ideia de um ser que busca eternamente sua outra metade neste mundo. Condenado a vagar, mutilado, machucado, saudoso. O mito de Platão fala da dor da incompletude, fala do desejo como uma falta!
Sócrates diz, neste mesmo diálogo, “só podemos desejar o que não temos!”, há um sentimento de nostalgia no ar, algo foi perdido. Um desejo carente, mendigante, que pede para ser preenchido. Já para Aristipo, traz um concepção totalmente diferente. O verdadeiro mundo é este, e o verdadeiro bem é a busca do prazer aqui e agora, um hedonismo racional que procura o prazer e evita a dor. Como a história da filosofia pode esquecer de Aristipo? E Epicuro, com seu hedonismo calmo? Vemos claramente: a história é sempre contada pelos vencedores, mesmo que malogrados e decadentes.
Outra inversão: Schopenhauer sai, entra Nietzsche. Para o filósofo pessimista, influenciado por Kant e pelo budismo, o desejo é como um pêndulo que nos leva da dor ao tédio. O núcleo do mundo é a Vontade, insaciável, ininterrupta. Por trás do véu de Maia, por trás das representações, encontramos a coisa em si: a Vontade. Mas desejar só pode ser sofrer, porque a cada hora a vontade inconstante deseja algo diferente. Nada há de definitivamente preencher esta falta! Nosso querer nunca pode se tranquilizar. Desejo é carência ou tédio! Por isso o filósofo de Frankfurt elaborou toda uma filosofia para levar o desejo a não desejar. Dar fim ao desejo, suprimir a Vontade é encontrar a liberdade.
Nietzsche olha horrorizado para esta filosofia passiva e pessimista, ela só pode ser o fruto podre do niilismo. Para ele o desejo só pode ser uma coisa: Vontade de Potência! Tudo está na ordem da abundância, exuberância! Com Nietzsche damos os primeiros passos em direção a Deleuze. O desejo se afirma, se expande, se dá, transborda, amplia! Por isso, desejar algo que não seja a própria realidade seria julgar e condenar insuficiente a nossa existência.
Inventar fábulas sobre um ‘outro’ mundo diferente deste não tem sentido a não ser que domine em nós um instinto de calúnia, de depreciação, de receio: neste caso nos vingamos da vida com a fatasmagoria de ‘outra’ vida distinta desta e melhor do que esta”
É com o pensamento de Nietzsche e Espinosa que Deleuze desenvolve uma concepção do desejo completamente inversa ao senso comum, à filosofia idealista (Hegel), ao cristianismo (Platão e cia.) e à psicanálise (Freud e Lacan). Enquanto de um lado encontraremos uma filosofia que pensa o desejo como falta, vazio, vergonha, mendicidade, impotência; do outro lado teremos um desejo honrado, forte, dono de si!
O desejo não é falta, dirão Deleuze e Guattari, é produção! Podemos também dizer: “não é carência, mas excesso que ameaça transbordar” (Onfray, A Potência de Existir). Por que tantos filósofos tomaram o caminho oposto? A resposta: porque acreditavam num mundo transcendente, acima do real (mas não há nada fora do todo!). Eles erraram ao acreditar que o desejo mira um “mundo das ideias” (sim, Platão ainda ronda em nossa psicologia). O desejo platônico/cristão/idealista/psicanalítico cria fantasmas, cria outras realidades, cria significantes, paraísos que almejamos, sonhos que nunca alcançamos. Um mundo estático de objetos “Verdadeiros”:
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Rafael Trindade, do site "Razão Inadequada"
Desejo:Abundância que não se sacia e é mais, deseja mais e transborda.Intense!
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