domingo, 14 de abril de 2019

O QUE É TRAIR A PSIQUIATRIA?

"Trair" é um termo conotado a algo ruim. No entanto, é possível usá-lo no campo institucional, mais precisamente em relação a psiquiatria.Neste caso "trair" significa criar desde o interior do funcionamento psiquiátrico práticas (incluindo práticas teóricas) que utilizem referências fora da psiquiatria (a arte, a filosofia, a sociologia, a literatura, etc) e com ela estabeleçam nexos clínicos. Pois tudo passa pela clínica. Vejamos o exemplo da nosologia psiquiátrica. Frente a  aberração epistemológica que é a CID 10, capítulo F, a prática de trair usa os tais diagnósticos como funções terapêuticas e não como essências imutáveis. É que estas atolam o paciente em entidades clínicas imaginárias, sabotando o desejo no que lhe resta de processo existencial singular. Muito se criticou e se critica a psiquiatria, ao ponto de demonizá-la. Isso é relativamente fácil de fazer, já que a critica vem de fora, ou seja, onde está ausente o contato direto com o paciente, o cotidiano dos problemas psicossociais (nos serviços de saúde mental), enfim, a crueza do real. São os signos da clínica. No centro dessa ausência instituída, naturalizada, os aparelhos acadêmicos são um exemplo lapidar. Executam seu mister com competência. Geram projetos de pesquisa, programas, mesas redondas, debates, artigos, dissertações e teses tão brilhantes quanto inócuas em relação a mudanças efetivas no campo da saúde mental.  Tais agentes da verdade não são, óbvio, traidores, mas trapaceiros do conhecimento, pois o usam como instrumento de poder, prestígio e ascenção na pirâmide universitária. O argumento infalível é, em geral, o do humanismo a priori da medicina e da academia. O Bem como transcendência.  Ora, "trair" no caso psiquiátrico, nada tem a ver com a academia.  Trata-se apenas de usar fragmentos do saber médico (entre outros) a favor de práticas clínicas onde a ética da produtividade existencial, a estética das criações de si mesmo e a política do enfrentamento com os poderes visíveis e invisíveis, se aliem e se potencializem. Isso é abastecer uma máquina coletiva de pensar a realidade social e não a de pensar sobre a realidade social. Mas poucos suportam...

A.M.


P.S. - Texto publicado originalmente em 30/03/2018, revisado e republicado.

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