A NATUREZA DO PENSAMENTO
O positivismo organicista encarregou-se de situar o pensamento como uma espécie de secreção cerebral, para a qual acorrem os médicos e fac-símiles, na ânsia de totalizar o organismo humano. Mas o pensamento não é totalizável, ele, o que circula em outros corpos além do humano, increvendo-se em linhas irredutíveis a formas estáveis ou árvores bem desenhadas. Aprendemos com Deleuze-Guattari que o pensamento “não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...) (...) muitas pessoas tem uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore” . Sendo assim, o pensamento segue caminhos ou linhas indeterminados por um centro organizador que seria o eu, por exemplo. Ele vai além do que se compreende como pessoa individual. Um dueto interpessoal conta com multi-determinações do pensar que vêm de todos os lados para inscrições na superfície onde a fala se dá. O pensamento como “pensar” é o acontecimento. Antecedendo a linguagem, e mais, dando-lhe condições operacionais para existir e funcionar, o acontecimento inscreve-se nos corpos e ao mesmo tempo deles se destaca como a expressão. A fala do mestre e a fala do aluno são assim superfícies onde se fabrica o sentido.
Pensar, só aí, nesta linha sem retorno rumo a terras desconhecidas. Antes que isso pareça uma metáfora, dizemos que o Encontro professor-aluno, máquina binária a serviço do Mesmo, traveste-se de um sentido multiplicado e multiplicante dos signos enviados de parte à parte. Trata-se de enviar signos que substituam a pessoa de um ou de outro. Pensar é operar as linhas que saem das conexões entre os signos. A natureza do pensamento é a anti-natureza, a ausência de natureza e no seu lugar o artifício. Que o pensamento seja (ou fosse) uma secreção do cérebro, não excluiria a linha infinitiva cortando e sendo cortada por outras linhas, multiplicidades que nos chegam de súbito, aos milhares e de vez. São velocidades que produzem tonturas à lucidez mais centrada. A questão passa a ser a do caos e de como lidar com ele; não negá-lo, pois ele insiste, nem se deixar engolfar numa espécie de buraco negro ou campo inconsistente, onde as palavras se partem em segmentos incompreensíveis ao senso comum. “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos” . Mas é preciso não confundir pensamento com conhecimento. Este corresponde ao acúmulo de informações que a memória propicia, e vai servir de reservatório de conceitos estáticos à espera de que sejam acionados quando do trabalho intelectual. A atividade cognitiva ganha a sua pertinência e o seu valor na medida em que está conectada às linhas institucionais que sustentam o funcionamento da organização escolar e dos seus dispositivos. Deste modo, o “ser” inteligente não existe enquanto essência, ou substância, mas nem por isso deixa de ser palpável e intrínseco ao sucesso profissional, por exemplo. Tudo isso substitui o pensamento e ao mesmo tempo faz-se passar por ele, numa operação urdida na produção de subjetividades individualizadas no papel de aluno, no papel de professor. Pensar, pois, não é para qualquer um. Não que este um esteja acima dos mortais, mas porque esse um está à margem, sempre à margem das formas subjetivas, fazendo-se e refazendo-se como produção. Isso dá trabalho. Sim, porque o ato de pensar implica num movimento de subjetivação sobre si, espécie de dobra e redobra do eu a partir e com os signos que chegam. Falamos, pois, sobre o pensamento como ato e como física. Uma abstração concretizada, velocidades infinitas freadas na organização de saberes inseridos em práticas. É o contrário do pensamento regido pela forma-Academia, ou pela forma-Estado, quando e onde estes acabam por se aliar na ação de bombardear cidades e aldeias. A chamada relação pedagógica, ou o próprio ensino, é um lugar por excelência onde se propagam estas formas como verdades dadas. Não há, pois, uma natureza do pensamento que não esteja funcionando em algum dispositivo, em alguma prática, e portanto, não há pensamento que não se agencie como desejo de fazer, de viver, de sobreviver, mesmo que se destrua, se mate e se explore. O desejo é a superfície onde algo acontece, mesmo não acontecendo. Este é o processo (...)
Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia
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