Transtornos da personalidade : problemas (*)
Antonio Moura
Consideramos histórias clínicas em que as hipóteses diagnósticas esgotam as categorias da CID-10, exceto uma. Desse modo, é freqüente se recorrer ao chamado “transtorno da personalidade” (TP) ou mesmo ao que era antes chamado de “personalidade psicopática” ( termo criado por Kraepelin em 1904 ) como uma saída aos impasses da clínica psicopatológica. Isso advém da dúvida: será uma psicose? [1] . A psiquiatria, enquanto sistema nosológico-conceitual , não sabe definir com precisão uma psicose. Tomemos o exame de um paciente: de acordo com a semiologia , não há delírios, alucinações, nem ruptura com a realidade; por outro lado, desvios de conduta, às vezes graves, atestam algum signo necessário para se poder dizer afinal do que se trata. Descrevendo uma personalidade [2] em seus padrões anormais, incluímos o que ele, o portador, faz no mundo: atos, atitudes, interações com pessoas, desempenho de papéis sociais, capacidade laboral e outros parâmetros. O paciente, excluídas informações de terceiros, se acha e se mostra mentalmente são. Em certos casos, é pessoa de conversa fácil e discurso que flui espontâneo. O pensamento se expressa em frases conexas. No mais, segue o percurso das conversações amenas, ditas normais. Em outros casos até poderá ficar tenso, a depender do contexto institucional, como, por exemplo, ser entrevistado numa prisão. O essencial a reter desses dados clínicos é que o TP[3] tende a escapar do molde psiquiátrico. A psiquiatria lhe é estranha, exceto talvez por um ato de força executado por ordem do juiz. Diferentemente da psicose, tal personalidade não vacila diante de pressões sociais: confesse! Ora, uma Personalidade funciona num mundo social cujas linhas de conduta estão longe de serem retas e programáveis. Desse modo, o diagnóstico deve compor um dispositivo para avaliação contingencial. O contrário seria um enquadre apenas técnico , o que equivale a prática do estigma social disfarçado de ciência pura.
Avaliar uma personalidade é partir das circunstâncias sociais que levam o paciente a tal exame. Além do Anti-social, descreveremos de modo sumário os demais tipos relacionados na CID-10 [4]. Paranoide, Esquizoide, Emocionalmente Instável, Histriônico, Anancástico, Ansioso, Dependente. Em seguida, uma ênfase será dada ao Emocionalmente Instável e ao Anti-social. Tal opção deve-se ao fato de que estes dois tipos, bem mais que os outros, produzem um desconforto e um desafio à psiquiatria clínica, tanto no diagnostico quanto no tratamento (...)
(*) Do livro Trair a psiquiatria
[1] É claro que a dúvida excede a questão da psicose e abrange outras síndromes como os neuroses graves, os retardos mentais, os transtornos orgânicos e do humor. Destacamos a psicose devido a proximidade empírica com a loucura e daí à existência do delírio.
[2] “Os TP deveriam ter como ponto de partida o conceito de personalidade, por sua vez muito maltratado. Em geral, os psiquiatras estudam TP sem esboçar qualquer definição de personalidade. Nem propõem a escolha de uma das suas muito numerosas definições (Alport contava em 1937 mais de 50 definições; Alonso Fernandez, em 1973, falava de várias centenas de definições), Sonenreich, C., Estevão, G. e Artenfelder, L de M., Psiquiatria: propostas, notas, comentários, São Paulo, Lemos Editorial, 1990, p.154.
[3] Referimo-nos, sobretudo, ao tipo “anti-social”, outrora chamado “psicopata”. No entanto, os demais tipos também tendem a escapar do molde biomédico, em função de dados psicossociais e históricos relevantes.
[4] São muitos os sistemas classificatórios dos TP. Kraepelin (1915), Schneider (1923), DSM-IV, CID-10, entre outros.
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