sábado, 28 de janeiro de 2012

Patologia  da  memória 

                                                     
 1-Conceito

Em psicopatologia,  a memória  é  um elemento  de  grande importância  no funcionamento  dos  processos subjetivos. Ela, de  certo   modo,organiza e  garante  a preservação da  vida psíquica. Quem  fui  ontem , quem   sou  hoje,  quem  serei  amanhã? Memória  e  tempo,   coordenadas    implícitas na vivência  do  paciente,   trazem   um fio de continuidade existencial.  A vida seria  impossível  sem memória.  Ao  mesmo  tempo, a  vida  não  seria possível se  tudo  fosse  recordado. Na  verdade, como  diz  Nietzsche, a  vida   é regida  por  uma  faculdade  ativa  de esquecimento, sendo pois,  por  natureza,  esquecediça.  A memória está, assim,  numa  espécie  de  paradoxo   subjetivo. Não  podemos lembrar  de  tudo, mas nada  somos   sem  lembrar. Necessitamos   recordar,  sobretudo  para   atividades de  manutenção. A cultura  é  uma  gigantesca  Memória. Para  obter  formas  de  criação, retiramos  da  cultura,  das  suas  instituições,  dos  gens, da história  pessoal  etc, elementos que  possibilitam a emergência  do  Novo. No  campo estrito  da   psicopatologia  médica,  a  memória oferece um bom exemplo de  função  psíquica atada aos  processos físico-químicos. Nestes   o cérebro  ocupa  o  lugar que  lhe confere  a  pesquisa  neurocientífica:  o  de  centro.  De  fato,    espécie  de  coordenador  das  ações do indivíduo,   o cérebro, de acordo com  o imaginário da medicina, é  uma  espécie  de  órgão   da  racionalidade. Está  diretamente ligado à  função-memória.
Contudo,  talvez   seja  possível    alterar   a  equação cérebro= memória, correlata a cérebro= mente para  inserir  a  subjetividade. A memória “ garante”  a  subjetividade   mas  nem    por  isso    deve  ser  decalcada  do  cérebro  nem dar  conta   da  complexidade   dos  processos  subjetivos,  ou  “  explicar”   a ocorrência  dos  fenômenos  ditos  patológicos   como  expressões  do  insólito, do  bizarro e do  excesso.  Deste modo,   consideramos  o  cérebro em  toda a  sua importância funcional e ao  mesmo tempo   na  relação  mantida   com  o caos [1] que  o  precede.  Situá-lo  desse modo implica  numa  tomada  de posição teórica  de  inspiração  bergsoniana:  não  é o  universo que está no cérebro, mas    é  o cérebro  que  está no  universo.  Daí, a  pesquisa científica sobre o  cérebro ser inseparável da  filosofia e  da  arte, formas do  pensamento  estabelecidas  pela  concepção  deleuze-guattariana[2] .
                        Mesmo que   a  memória (em  psicopatologia médica) se  altere,  sobretudo  em  quadros  orgânico-cerebrais, a  sua  patologia  não  se  restringe a  estas síndromes. Ao  contrário, podemos   dizer que a função  mnêmica  é  atingida em todos  os  quadros  patológicos. O que irá   diferenciar  tais alterações  é a vivência  qualitativa do  paciente. Neste sentido, os processos afetivos despontam  como a  instância psíquica a  ser considerada  em  primeiro  plano, sendo  a afetividade o  que  compõe  linhas existenciais  situadas  para  além  de  uma   subjetividade,  digamos, mecanicista. Ela traz  a realidade  coletiva  como   ponto  de  partida, o que  significa  dizer  que  a  subjetividade  é  sempre  produzida  no registro  do  social, estando   exposta  às  condições   “ externas  ” em que  se  vive. Ao mesmo  tempo, a  subjetividade  é  um processo  “interno” funcionando nas  próprias  conexões  sinápticas.  “Interno”  e  “externo”  passam  a  ter  significados  que  se  diluem  numa  questão  maior  que  é a das  singularidades do  paciente (...)


Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

[1] - “Define-se   o  caos, menos  por  uma desordem, que  pela  velocidade  infinita  com a qual  se  dissipa toda  forma que  nela  se  esboça(...) (...) é uma velocidade  infinita de nascimento  e  esvanecimento”. Deleuze, G. e Guattari, F., O que  é  a filsosofia?,  Rio, Ed. 34, 1992, p. 153.
[2]- Cf. Deleuze, G. e Guattari, F., idem, p.257  (último  capítulo -  Do caos  ao Cérebro). 

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