Patologia da memória
Em psicopatologia, a memória é um elemento de grande importância no funcionamento dos processos subjetivos. Ela, de certo modo,organiza e garante a preservação da vida psíquica. Quem fui ontem , quem sou hoje, quem serei amanhã? Memória e tempo, coordenadas implícitas na vivência do paciente, trazem um fio de continuidade existencial. A vida seria impossível sem memória. Ao mesmo tempo, a vida não seria possível se tudo fosse recordado. Na verdade, como diz Nietzsche, a vida é regida por uma faculdade ativa de esquecimento, sendo pois, por natureza, esquecediça. A memória está, assim, numa espécie de paradoxo subjetivo. Não podemos lembrar de tudo, mas nada somos sem lembrar. Necessitamos recordar, sobretudo para atividades de manutenção. A cultura é uma gigantesca Memória. Para obter formas de criação, retiramos da cultura, das suas instituições, dos gens, da história pessoal etc, elementos que possibilitam a emergência do Novo. No campo estrito da psicopatologia médica, a memória oferece um bom exemplo de função psíquica atada aos processos físico-químicos. Nestes o cérebro ocupa o lugar que lhe confere a pesquisa neurocientífica: o de centro. De fato, espécie de coordenador das ações do indivíduo, o cérebro, de acordo com o imaginário da medicina, é uma espécie de órgão da racionalidade. Está diretamente ligado à função-memória.
Contudo, talvez seja possível alterar a equação cérebro= memória, correlata a cérebro= mente para inserir a subjetividade. A memória “ garante” a subjetividade mas nem por isso deve ser decalcada do cérebro nem dar conta da complexidade dos processos subjetivos, ou “ explicar” a ocorrência dos fenômenos ditos patológicos como expressões do insólito, do bizarro e do excesso. Deste modo, consideramos o cérebro em toda a sua importância funcional e ao mesmo tempo na relação mantida com o caos [1] que o precede. Situá-lo desse modo implica numa tomada de posição teórica de inspiração bergsoniana: não é o universo que está no cérebro, mas é o cérebro que está no universo. Daí, a pesquisa científica sobre o cérebro ser inseparável da filosofia e da arte, formas do pensamento estabelecidas pela concepção deleuze-guattariana[2] .
Mesmo que a memória (em psicopatologia médica) se altere, sobretudo em quadros orgânico-cerebrais, a sua patologia não se restringe a estas síndromes. Ao contrário, podemos dizer que a função mnêmica é atingida em todos os quadros patológicos. O que irá diferenciar tais alterações é a vivência qualitativa do paciente. Neste sentido, os processos afetivos despontam como a instância psíquica a ser considerada em primeiro plano, sendo a afetividade o que compõe linhas existenciais situadas para além de uma subjetividade, digamos, mecanicista. Ela traz a realidade coletiva como ponto de partida, o que significa dizer que a subjetividade é sempre produzida no registro do social, estando exposta às condições “ externas ” em que se vive. Ao mesmo tempo, a subjetividade é um processo “interno” funcionando nas próprias conexões sinápticas. “Interno” e “externo” passam a ter significados que se diluem numa questão maior que é a das singularidades do paciente (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
[1] - “Define-se o caos, menos por uma desordem, que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nela se esboça(...) (...) é uma velocidade infinita de nascimento e esvanecimento”. Deleuze, G. e Guattari, F., O que é a filsosofia?, Rio, Ed. 34, 1992, p. 153.
[2]- Cf. Deleuze, G. e Guattari, F., idem, p.257 (último capítulo - Do caos ao Cérebro).
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