USAR PSICOFÁRMACOS? (*)
Antonio Moura
Desde 1952 nos acostumamos a ver o paciente mental sob o efeito de algum remédio químico. Este se tornou peça indispensável, não só para o tratamento, mas na constituição de uma subjetividade enferma. Na década de 90 os fármacos avançam e substituem a psicopatologia. Torna-se um hábito ver o paciente mental como expressão-efeito da química. A indústria produz o pensar medicamentoso como campo por excelência do desejo. O objetivo maior é o de manejar os sintomas. Como tudo é sintoma, ou passou a sê-lo, incluindo o paciente, o objetivo de passar remédio tornou-se o de excluir o pensamento e a existência.
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Em psiquiatria clínica, é possível usar poucas associações medicamentosas? Elas embotam o paciente e o psiquiatra. Nestes casos um diagnóstico revelador do que se passa, costuma ser descartado. Se, além do mais, for difícil captar a vivência mórbida, ficar na espreita do acontecimento já é um ganho ético. Escutar o vento nas orelhas do paciente. Ou apenas contemplar o que ele diz e o que se vê. Isso basta para começar o trabalho de garimpagem dos signos. Percutir as linhas do desejo talvez faça surgir algo que não anseie por fármacos.
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O psiquiatra envia signos significantes que o paciente decodifica de acordo com pelo menos duas máquinas: uma de subjetivação e outra de semiotização [1]. Daí ele pede remédios, sempre mais remédios que lhe ajudem. Isso ocorre nos casos em que há ou não sentimento de estar doente. O que importa é que a necessidade de psicofármacos está atrelada ao poder concentrado na figura do psiquiatra. A prescrição é uma palavra de ordem.
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Quando o psiquiatra prescreve uma droga, ele vai junto com a droga, dissolvido nela, adentrando ao universo subjetivo do paciente. Chamamos de “universo subjetivo” o corpo intensivo que produz um mundo, mesmo que seja produção de destruição, como no caso das depressões. Na clínica, já que o médico, como figura simbólica, é o comprimido, ele constitui o paciente como modo farmacológico de subjetivação. Esse fato começa a ser danoso quando o paciente é reduzido a uma boca que consome drágeas em horários posológicos.
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A relação psiquiatra-paciente está marcada pela história do poder psiquiátrico consolidado no século XIX [2]. Nos dias que correm, são muitas as suas máscaras. Existe, por exemplo, a psiquiatria biológica em sua versão humanista. Ela concebe o paciente como um organismo avariado. O psiquiatra prescreve remédios à mão cheia. Isso lhe garante uma estabilidade existencial, para não dizer material. Antes da técnica, o prestígio da ciência lhe confere um lugar diferenciado. Por isso o ato de medicar se reveste de nuances quase sempre desconhecidas. A academia comparece com o seu aval.
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O remédio químico parece ser a saída dos males civilizatórios. Do admirável mundo novo aos dias atuais, a psiquiatria desponta como representante de um conservadorismo, com ares de ciência exata. A capacidade de manobra política junto ao estado e ao mercado não deixa de impressionar. Há uma espécie de imbecilidade programada que circula como verdade. O paciente, situado na ponta dos efeitos subjetivos do capital, responde ok à fabricação de si mesmo. Uma tarefa do técnico em saúde mental se mostra, pois, um desafio impossível e lúcido [3].
(*) Do livro Trair a psiquiatria
[1] São máquinas do desejo: 1-ser semelhante ao seu psiquiatra; 2-acreditar no que seu psiquiatra acredita.
[2] Ver Foucault, M., O poder psiquiátrico, S. Paulo, Martins Fontes, 2004.
[3]Referimo-nos ao trabalho técnico na equipe multidisciplinar atuando nos Caps e em outros serviços.
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