Memórias do subsolo de Dostoiévski - resenha de Bruna Callegari
Memórias do subsolo é um livro perigoso. Aviso, antes de tudo, porque só se percebe quando já se está completamente envolvido por ele. É nesse momento que a leitura se torna prazer, porém um prazer amaldiçoado, absolutamente agressivo, quase masoquista e vicioso, e por isso perigoso.
Não se trata de uma leitura fácil, gratuita, ao contrário, paga-se caro por ela: acabamos esquisitos, duvidosos, infelizes.
Publicado em 1864 na revista literária Época, fundada por Dostoiévski e seu irmão Mikhail, o romance nos traz um homem desencantado, funcionário da baixa burocracia russa, que mora com o empregado Apólon num modesto apartamento no subsolo de um edifício. Angustiado e pessimista, esse homem sem nome nos revela, por sua própria voz, um absoluto desprezo pelo mundo a sua volta e, ao mesmo tempo em que escolhe a solidão, parece, em certos momentos, amargurar-se ainda mais com ela.
Dostoiévski nos avisa antes de iniciarmos a leitura: “Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou.”
A despeito do fato dessa declaração introdutória já marcar uma ruptura na ficção convencional do século XIX por questionar diretamente o propósito da literatura em sua relação com o que representa, ela é de extrema importância porque revela um eixo central da obra: a sociedade moderna.
Ora, o que cargas d’água esse tal homem do subterrâneo está querendo me dizer? Que droga de maluco ele é? O leitor se pergunta a todo o momento, mas, na realidade, não se pode entender completamente esse homem. A única certeza que ele nos dá é a sua profunda aversão pelo racionalismo e pela mentalidade positivista, marcantes do século em que vive: “(...) dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora.”
Esse homem do subsolo, portanto, é o retrato impiedoso da constituição de nossa sociedade moderna, fundamentada na razão iluminista, e de suas contradições. Ele é o embrião de toda a produção chamada madura de Dostoiévski: Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamazov, em que a profunda complexidade e ambigüidade do humano moderno, já presentes em nossa personagem, são levada ao extremo. A relação agônica entre desejo e culpa e a linha frágil que separa a demência da razão, marcas do subsolo que nos fazem como baratas tontas durante a leitura, são ainda mais intensamente exploradas por Dostoiévski nessas obras posteriores, em que inevitavelmente se vê o espectro do nosso homem.
Elaborado na cabeceira do leito de morte da primeira mulher do escritor russo, Memórias do subsolo se divide em dois momentos. “O subsolo”, em que o autor apenas se apresenta, “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável”, escreve seus pensamentos e explica, basicamente, sua inserção nesse mundo moderno, e “A propósito da neve molhada”, em que nos traz um recorte bastante interessante de seu passado, quando finalmente começamos a compreender algo além da retórica inicial.
É somente neste segundo momento que nossa personagem ganha vida, ganha realidade, porque afinal é quando a enxergamos em sua relação com outros homens. Só então nos damos conta de que ela se parece muito conosco: suas inseguranças e pensamentos interiores, seus rancores e felicidades repentinas, seus atos doentios e, sobretudo, sua existência cotidiana mergulhada numa completa metafísica paradoxal.
Ao mesmo tempo em que devasso, incrédulo, hostil, “Vou explicar-vos: o prazer provinha justamente da consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria degradação”, é também estranhamente indefeso, inseguro, dócil.
Vê-se o homem contra a sociedade e contra a própria natureza e isso não nos parece retórico, ao contrário, nos parece competência em representar (ou apresentar) a pluralidade do real.
Memórias do subsolo é um livro doloroso porque no fim das contas sabemos, como o homem do subterrâneo, que “o melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar”.
Ainda assim, mesmo que custosamente, essa leitura não nos deixa negar que “há prazer até mesmo numa dor de dentes”.
De qualquer maneira, como ele, “não creio numa só palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui!”
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