terça-feira, 15 de janeiro de 2019

HISTÓRIA DE GUSMÁN


Durante cinco anos, o médico cubano Javier Gusmán (nome fictício) viveu uma rotina que mais parecia uma expedição. Tomava todos os meses um bote em uma cidade no Norte do Brasil para percorrer dois rios e sete aldeias indígenas, onde prestava atendimento por meio do Programa Mais Médicos. Navegava 11 horas seguidas até chegar na última delas e, durante os 15 dias que ficava pela região, atendia os pacientes onde dava — de consultórios improvisados ao chão da floresta. "Era complicado, mas era uma missão muito bonita", ele lembra. Não era fácil. Com uma estrutura mínima, tratava doenças tropicais que só conhecia dos livros. Perdeu as contas de quantas vezes precisou atender a pacientes que haviam sido perfurados por arraias na época de seca, quando baixa o nível da água dos rios. "Nesse período, aprendi muito sobre a cultura indígena, entendi como é viver da pesca e da caça. E vi ao vivo doenças que sabia como tratar, mas só tinha visto nos livros", conta.

Já tem um mês e meio que a vida de Gusmán mudou drasticamente. Ele zapeava as dezenas de grupos que mantém no Whatsapp em um dia de folga, quando soube que o Governo cubano havia decidido encerrar a cooperação médica com o Brasil. Ficou desempregado em novembro, justo quando a esposa completava seis meses de gravidez, e não sabia sequer se poderia continuar no país sem ser considerado desertor por Cuba, onde vivem outros três filhos seus, de outro relacionamento. Dias depois de tomar ciência da decisão cubana, veio um pequeno alívio: a ilha permitiria a permanência de médicos que casaram com brasileiros no país. Poderia ficar com a nova família e seguir mantendo contato com os filhos cubanos. "Mesmo assim, tudo mudou na minha vida", ele diz.

Sem emprego, Gusmán precisou deixar a ampla casa de três quartos que dividia com a enteada e a esposa e mudou com a família para a casa da sogra, uma construção de madeira que, segundo ele, "quando chove, nem Deus consegue sair" por causa das enchentes. Mas não teve outro jeito, ficou impossível pagar os 900 reais de aluguel do imóvel sem os 3.000 reais de remuneração mais o auxílio moradia que ganhava por integrar o Mais Médicos. "A minha mulher vai dar à luz em fevereiro. Imagine a necessidade que estamos passando! Então falei com o secretário de Saúde da cidade pra ver se ele ajudava com qualquer emprego, porque a gente precisa comer", conta.

Há uma semana, Gusmán trabalha como vigia em um posto de saúde. Pela nova função, que envolve escalas noturnas de 12 horas, será remunerado com um salário mínimo. "Fiquei sem trabalho e agora limpo até chão, mas não tenho vergonha porque é digno e eu preciso", ele diz. Quando não está no posto, estuda para o Revalida, exame exigido para exercer a medicina no Brasil fora do programa federal, mas que ainda não tem data para acontecer. "A minha esperança é que o Ministério da Saúde abra o edital do Mais Médicos para os estrangeiros, no fim do mês. O Revalida não é de graça, custa caro, tem que viajar. Eu não tenho medo da prova, mas preciso trabalhar para ter o dinheiro e fazer", explica. Por enquanto, voltar para Cuba não é uma opção. "Tenho minha esposa aqui e ganho mais de vigia no Brasil do que de médico lá".

Beatriz Jucá, São Paulo, El País, 14/01/2019, 22:35 hs

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