segunda-feira, 30 de setembro de 2019

No fim do arco-íris existe um pote
dentro do pote um gnomo
que diz:

Me chupa com violência.


Bruno Brum

domingo, 29 de setembro de 2019

ELIS REGINA - O que tinha de ser

RELATOS DO ACASO

Nº 9 – Contenção no leito – Atividades com alunos de psicologia num hospital psiquiátrico- Sanatório São Paulo em Salvador. Ao passar por uma das enfermarias, havia um paciente  contido mecanicamente no leito (com uma atadura de crepom amarrada aos punhos). Como é um dispositivo comum em hospitais desse tipo, expliquei para os alunos do que se tratava, por que e para que isso existia. A explicação seguiu a lógica da clínica manicomial, ou seja, de que aquele era um recurso extremo para casos de agitação psicomotora, heteroagressividade, apragmatismo, desorientação temporoespacial, entre outros. Ao mesmo tempo acrescentei  que a clínica da psicose se expressava no hospital como lugar de vigilância/controle. A contradição implícita (terapêutica versus controle) explicitou-se no comentário súbito de uma aluna. Disse ela: “Mas, professor, esse  aqui não  é  o lugar  da  loucura, o lugar  onde  é  possível a expressão total da loucura,  já  que  lá fora não é possível?”.  Sorri. A fábula do “rei está nu” (H.C. Andresen) nos visitou através da mente ingênua da estudante. Como a de uma criança.

A.M. do livro Trair a psiquiatria
A POSTERIDADE

O que lhe provocam palavras como “posteridade”, “legado”, “marca” e “memória”?

Não me interessa meu legado, não me interessa o que farão com os meus filmes quando eu já não estiver, podem jogá-los no mar. Uma vez que estamos mortos, estamos mortos. Acabou-se. Você acha que, quando tiver fechado os olhos, eu me importarei se as pessoas veem meus filmes ou não? Eu sei que há pessoas que realmente se importam com a posteridade. Eu não estou nem aí. E estou certo de que o mesmo acontecia com Shakespeare.
(...)

Woody Allen, ElPaís,  entrevista a Borja Hermoso, 29/09/2019, 15:58 hs

da comida

adão e eva – inocentes
aceitaram da serpente
a maçã que era de deus

(e assim nasceu caim)

que fome filha da puta
gostaram tanto da fruta
mais saborosa que mel

(e assim nasceu abel)


Líria Porto

sábado, 28 de setembro de 2019

MILTON PASSOS


O QUE É DELIRAR 

Na avaliação clínico-psicopatológica é possível que o delírio não seja notado. O paciente conversa "normalmente", articula bem a sintaxe, tem um discurso congruente, organizado, mas no entanto, delira sem se fazer notar. Isto ocorre, grosso modo, nos casos de psicoses graves sem desorganização mental, daí sem perda da capacidade de autonomia social ou de gerir os atos da vida civil. Conforme o senso comum das sociedades, o delírio tende a ser notado quando incomoda. Quer dizer: quando o sujeito se torna agressivo em demasia, violento, improdutivo, agitado, suicidário, inadequado aos códigos sociais, incapaz de resolver até mesmo pequenos problemas. Aí, então, lhe chega a pecha de inválido. E se somam outros epítetos de cunho moral. Este dado reforça a tese de que "todos podem delirar" desde que não desarrumem os fluxos afetivos dos códigos sociais. Desde que, enfim, não tragam a desordem. Então, fiquem no seu canto. É de notar, contudo, que muitas instituições poderosas (como o Estado) deliram e fazem delirar desde que no âmbito restrito de funcionamentos subjetivos “ótimos”: o fascismo, o populismo, o messianismo, o nacionalismo, o tecnicismo, entre outros. Um exemplo irrefutável: a calamidade da guerra que atravessa a história humana é aceita (às vezes até louvada) como fato natural. Não haveria delírio nos motivos racionais que a legitimam? E o que dizer da Religião, do Direito, da Escola e da Ciência? Na avaliação psicopatológica fina o delírio muitas vezes está encapsulado pelas crenças que compõem os modos subjetivos de viver, mesmo que tal vida expresse a destruição in concert, como hoje no Brasil. Concluindo, o exame psiquiátrico do paciente-indivíduo é ao mesmo tempo um exame da sociedade em que ele se insere. 


A.M.


Decorre daí que rejeito toda autoridade? Longe de mim este pensamento. Quando se trata de botas, apelo para a autoridade dos sapateiros; se se trata de uma casa, de um canal ou de uma ferrovia, consulto a do arquiteto ou a do engenheiro. Por tal ciência especial, dirijo-me a este ou àquele cientista. Mas não deixo que me imponham nem o sapateiro, nem o arquiteto, nem o cientista. Eu os aceito livremente e com todo o respeito que me merecem sua inteligência, seu caráter, seu saber, reservando todavia meu direito incontestável de crítica e de controle. Não me contento em consultar uma única autoridade especialista, consulto várias; comparo suas opiniões, e escolho aquela que me parece a mais justa. Mas não reconheço nenhuma autoridade infalível, mesmo nas questões especiais; consequentemente, qualquer que seja o respeito que eu possa ter pela humanidade e pela sinceridade desse ou daquele indivíduo, não tenho fé absoluta em ninguém. Tal fé seria fatal à minha razão, à minha liberdade e ao próprio sucesso de minhas ações; ela me transformaria imediatamente num escravo estúpido, num instrumento da vontade e dos interesses de outrem.
(...)

Mikhail Bakunin

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

JOÃO BOSCO & PEPEU GOMES

AMOR E SEU TEMPO

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.


Carlos Drummond de Andrade
JANOT VERSUS GILMAR

Segundo relato à “Veja”, Janot chegou a engatilhar a arma, ficou a menos de dois metros do ministro, mas não conseguiu efetuar o disparo. O motivo da ira foi um ataque de Gilmar à filha do então procurador-geral. “Esse inspetor Javert da humanidade resolveu equilibrar o jogo envolvendo a minha filha indevidamente. Tudo na vida tem limite. Naquele dia, cheguei ao meu limite. Fui armado para o Supremo. Ia dar um tiro na cara dele e depois me suicidaria. Estava movido pela ira. Não havia escrito carta de despedida, não conseguia pensar em mais nada. Também não disse a ninguém o que eu pretendia fazer”, conta o ex-PGR.

Janot também afirmou que tentou mudar a arma de mão quando não conseguiu atirar com a destra. “Esse ministro costuma chegar atrasado às sessões. Quando cheguei à antessala do plenário, para minha surpresa, ele já estava lá. Não pensei duas vezes. Tirei a minha pistola da cintura, engatilhei, mantive-a encostada à perna e fui para cima dele. Mas algo estranho aconteceu. Quando procurei o gatilho, meu dedo indicador ficou paralisado. Eu sou destro. Mudei de mão. Tentei posicionar a pistola na mão esquerda, mas meu dedo paralisou de novo. Nesse momento, eu estava a menos de dois metros dele. Não erro um tiro nessa distância. Pensei: ‘Isso é um sinal’. Acho que ele nem percebeu que esteve perto da morte”, lembra
(...)

Veja, 26/09/2019, 22:55 hs

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

I LOVE YOU

Antes de uma rápida troca de cumprimentos, registradas pelas câmeras de TV, logo após os discurso de ambos na ONU, Jair Bolsonaro e Donald Trump se cruzaram ontem. Foi logo depois do discurso do brasileiro e imediatamente antes da fala do americano.

O local foi a chamada "sala GA-200" da ONU, para onde Bolsonaro foi conduzido após o seu pronunciamento. Lá, Trump aguardava para fazer o seu discurso.

E, segundo diplomatas que testemunharam a cena, Bolsonaro mandou essa:

— I love you.

E, como resposta, recebeu um:

— Que bom te ver de novo.

E mais não foi dito.

Lauro Jardim, 25/09/2019, 06:00 hs

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

ÉTICA E CLÍNICA


A  psiquiatria oficial chama o  seu  paciente de  “portador de  transtorno mental”. Nem  sempre explícito,  tal enunciado está na bíblia  dos diagnósticos, a  CID-10. A expressão “mental”  é usada de modo naturalizado, ou seja, todo mundo  sabe  o que é “mental”. A  metonímia “ele  é  um mental”expõe o nervo do estigma.Contudo, no encontro com a loucura, acontece outra  coisa: a mente desaparece como substância ou como algo palpável.Dilui-se num vazio sem  forma.Encontrar o  paciente seria possível? Sim, na medida em que se adentre ao acaso, ao  indeterminado e ao desconhecido.Esta é a condição. Como, então,trabalhar a clínica? A experiência da prática mostra que ela  só existe como abertura ao mundo, ou mais ainda como fazedora de mundos. Por  outro  lado, a  ética – essência da clínica - sustenta-se  na alegria.  É  a  força maior. “O regime da alegria é  o do tudo  ou  nada: não  há senão alegria total  ou nula” (C.Rosset). A clínica da  diferença busca, então, atuar em linhas existenciais desprezadas pela razão. Lida com o incurável, o imprestável e com discursos submetidos às formações de poder.  Requer um desejo não apoiado na realidade objetiva pois o desejo é a própria realidade objetiva. No  universo sedutor-violento do capital, a aposta num trabalho com pacientes graves capta o ritmo das canções sem dono. Tudo é impessoal e  coletivo. O caps  torna-se, então, a procura  de saídas não cadastradas pela psiquiatria canônica. A ótica da diferença é a do novo. A ética  precede a técnica. Legiões de psiquiatrizados de toda parte ajoelham-se no altar dos psicofármacos e dos cérebros à mão. Tudo conspira a favor do consumo de pacotes cientificamente autorizados para ações lucrativas.No entanto, mesmo desbotada e segregada nos grilhões cidológicos , a diferença resiste. A ética da potência  de viver afirma-se como ética  de poetas itinerantes.O discurso e a prática da diferença exploram o avesso da ordem do  universo capitalista. Quem se  interessa  em criar,  fazer nascer?  Pergunta talvez insana na  medida em que os poderes investem na repetição do Mesmo e  no  rigor  mortis  do pensamento. Por isso, a prática da diferença considera as determinações micro-sócio-políticas como a superfície da ação mais concreta. O ato clínico. Em suas pesquisas, não encontra respostas  exatas, mas problemáticas abertas. Se a loucura é a experiência que atravessa a subjetividade, (mesmo que não estejamos loucos, podemos entrar num devir-loucura), tudo muda na  percepção fina da realidade da saúde mental .Um novo universo se desvela. Somos devires incontroláveis.
(...)

A.M.
Um deles

Os que acreditam fazem perguntas aos que parecem acreditar.
Os que parecem, parecem não ouvir.
Os que ouvem permanecem calados.
Os que respondem parecem não acreditar no que dizem
os que perguntam.
Todos parecem em silêncio.


Bruno Brum

CHORO NEGRO

Existem alturas da alma, de onde mesmo a tragédia deixa de ser trágica; e, se as dores do mundo fossem juntadas numa só, quem poderia ousar dizer que a visão dela nos iria necessariamente seduzir e obrigar à compaixão, e desse modo à duplicação da dor?

Nietzsche

domingo, 22 de setembro de 2019

O INSTINTO FASCISTA

Neste ano, a eclosão do fascismo na Itália completou 100 anos. O manifesto programático do movimento publicado no Il Popolo d’Italia em junho de 1919 contém alguns objetivos louváveis, como estabelecer o sufrágio universal (e a elegibilidade das mulheres), a jornada de oito horas de trabalho e o salário mínimo. Já desde o início, no entanto, ficaria bem clara a natureza monstruosa do movimento que inspirou experiências semelhantes em outros lugares. O historiador Ian Kershaw argumenta, em seu livro De Volta ao Inferno, que esse projeto político foi estabelecido primeiro na Itália e não em outros países europeus por uma combinação de vários fatores, dos quais os principais foram a extraordinária fraqueza do Estado liberal, a ameaça crível de uma revolução vermelha no estilo russo e a enorme frustração com as consequências da guerra.
O engendro que surgiu foi uma nebulosa política com alguns denominadores comuns e muitos aspectos vaporosos, sem uma base intelectual bem definida. Em O Fascismo Eterno (1995), Umberto Eco enfatizou essa indefinição que beira a enganação intelectual e que, paradoxalmente, é a chave que estabeleceu o fascismo como um paradigma (juntamente com sua natureza pioneira). O nazismo foi um; fascismos, houve muitos. Eco destacou precisamente como, sob uma fenomenologia cambiante, os denominadores comuns do protofascismo sobreviveram às suas cristalizações mais brutais —como os regimes estabelecidos na Itália, Alemanha e Espanha— e continuam flutuando nos instintos profundos das sociedades.
As características que definem o espírito fascista não chegam a constituir um sistema de pensamento, mas são múltiplas. Entre as evidenciadas por Eco: o culto à tradição e a rejeição da modernidade; a rejeição frontal (até a aniquilação) da crítica e do desacordo, que são tratados como traição; o medo da diferença; a agitação de classes médias frustradas; o populismo (como um levante de classes populares contra elites); o machismo.
(...)

Andrea Rizzi, El País,22/09/2019, 22:23 hs

LOUI JOVER


FAZER A DIFERENÇA 

A diferença é um conceito filosófico discutido em profundidade em duas grandes obras do pensador Gilles Deleuze. Trata-se de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969). Tal densidade conceitual pode (e deve) ser usada por não-filósofos para o exercício de uma atitude ética essencialmente prática. Quer dizer: o mundo não é uma substância mas torna-se problemático (oco) por sua própria natureza e não por uma instância que lhe seria superior (a razão, por exemplo). Assim, tudo é imanência, tudo está na terra. O corpo da terra se faz na arte dos encontros pessoais e impessoais. Aí reside a diferença como linha curva, incerta, perigosa e delicadamente potente. Não exige nem possui explicações. Para experimentá-la basta seguir o fluxo do devir (o conteúdo do desejo) em suas infinitas possibilidades de conexão com outros devires. É com a criança-em-nós e com o tempo não-cronológico que a diferença estabelece seu traço  irreversível. Mas não é fácil. Sem que se perceba, as instituições sociais administram o medo no interior de nós mesmos, naturalizando o horror, racionalizando a existência.

A.M.

Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.

Tennessee Williams

DE VISITA

Na medida em que o caps herda o modelo hospitalocêntrico, mesmo que anuncie o inverso, o fenótipo institucional tem uma aparência antimanicomial, ou busca isso, até para justificar o seu funcionamento. A psiquiatria oficial costuma adentrar ao serviço como uma espécie de cisto benigno para, entre outras coisas, afrouxar as tensões em torno da suposta periculosidade e estranheza da loucura. Mas não estamos nessa. Vamos no rumo de uma psiquiatria materialista onde os fluxos de saberes e práticas impulsionam linhas de desejo numa operação de desmontagem da clínica hegemônica. Tudo em prol de uma semiótica do encontro. Não há modelo, pois. Este é o regime de signos da loucura e leva a considerá-la como produção de sentidos múltiplos, ou mais precisamente, de multiplicidades clínicas. Algo que precede o transtorno mental e com ele se mistura e se expressa. A psiquiatria hegemônica (atualmente versão neurobiológica) se reduz a um equipamento técnico, no caso, o psicofármaco, indicado em situações pontuais, como na chamada crise ou surto. No entanto, enfiar o desejo na produção e a produção no desejo (Deleuze-Guattari) é a operação de conectar a clínica psicopatológica  aos fluxos coletivos que chegam de fora, mas estão dentro d´alma, que são a alma como consistência prática: corpo sem órgãos, corpo dos afetos (multiplicidades desejantes, devires inauditos, singularizações móveis e intensas, fluxos nômades, linhas de potência, territórios de non sense e conexões ao infinito) a ser experimentado. Constatamos que em visitas ao locus (domicílio) do paciente é possível enxergar o socius em seu arranjos trágicos e engrenagens construtivo-destrutivas. Um pouco de ar para a clínica. Mas quem suporta tal dissolução de sentido?

A.M.

mosqueteiros

um não me atraía
outro me trairia
e o outro
eu cheguei tarde

(ainda bem havia o quarto)


Líria Porto

UM DIA MUITO ESPECIAL direção de Ettore Scola, 1977

A ARTE DO ENCONTRO

(...)
Todo encontro é marcado por contingências.  O coletivo “antecede” o socius  na produção de  subjetividades . Tudo  se mistura. Se  existe  algo  que escapa aos códigos  estáveis da  razão é o modelo do delírio (um anti-modelo na verdade) que  nos guia  e  impulsiona. Assim,  temos:  o coletivo=o delírio ( código  psiquiátrico  =  a psicose) numa série abstrata tornada concreta na  clínica ou em qualquer situação onde uma zona (existencial) de fronteira se mostre como realidade bruta. Essa é a questão dos campos vivenciais passíveis de contato. Eles são  heterogêneos por sua própria natureza. O contato imediato é com a aventura do Acaso,do Indeterminado e do Desconhecido. Desse modo, o encontro de um terapeuta com o seu  paciente  pode começar no “interior” de si mesmo, em meio  a múltiplos “eus”.  Subjetivo e objetivo se tocam e se trocam...Entramos e estaremos a entrar numa terra de ninguém, inumana, cósmica, via sem retorno, mundo  de Lovecraft. Para fazer uma clínica da  diferença, é preciso a não-clínica  que  com ela  produza territórios subjetivos concretos.Usando a equação  clínica=patológico, o técnico verá o paciente como coisa, ainda que uma coisa valiosa.  Ao contrário, o encontro busca o lado ativo do infinito, o processo, enfim, das  relações  sociais  e  coletivas. 
(...)

A.M.


SOBRE DELEUZE

Gilles sempre  foi complexado em face de seu irmão Georges. Os pais devotavam um verdadeiro culto ao filho mais velho, e Gilles não os perdoava pela admiração exclusiva por Georges. Ele era o segundo, o medíocre, enquanto George era um herói.

 François Dosse, Gilles Deleuze & Félis Guattari – Biografia Cruzada, p. 82

sábado, 21 de setembro de 2019

ANNA RAZUMOVSKAYA


frustração

sonhava com metro e oitenta
e noventa quilos

casou-se com um curto
e grosso


líria porto
PSIQUIATRIA E LOUCURA

Chamamos caos de loucura. Ou vice-versa.Os sintomas constituem transtornos (ou síndromes) sobre um fundo existencial  que  é o caos.  Este é  um operador  a-significante,  ou  melhor, nada significa. Remete ao puro contato com a vivência  expressa no momento do exame. Desse modo, o exame físico, paradigma da medicina, é inadequado e  grosseiro para estabelecer um vínculo terapêutico com  o paciente e  até  mesmo estabelecer um diagnóstico. A loucura extrapola   os limites do pensar médico. Por isso, ela incomoda. Foge ao controle.
(...)

A.M. in Trair a psiquiatria

SÉRGIO SAMPAIO - Que loucura

SOBRE O MÉTODO DA DIFERENÇA

(...)
O  psiquiatra  se despersonaliza. Torna-se algo que se torna outra coisa.Vive nos e dos  paradoxos  da linguagem que o  empurram a encontrar  o  paciente, o  mundo,  o  cosmos.  Não  compreende o que se passa. Perplexo, interroga e interroga-se. Dança e entoa em silêncio cânticos extraídos  do fundo de  vielas existenciais. Não  busca uma  ontologia  da  psicose  e/ou  dos transtornos mentais. Ele  talvez  consiga ser  um  feiticeiro da modernidade técnica, criando linhas  de  pura alegria (ainda  e  principalmente)   nas  quedas  e surtos dos  pacientes  e  de  si  mesmo.  O método da diferença  traz essa possibilidade para o interior  da  clínica. Os fármacos podem (claro  que  sim!)  ser parceiros  numa   empreitada  sem signos  prévios. Use  e  controle  essa  droga  lícita, sabendo que   ela  pode se  tornar  ilícita  se atentar contra  a criatividade  do  seu  viver.  Não só  a química,  mas  todo  e qualquer  objeto  pode  induzir a uma dependência  abjeta.  O  psiquiatra-feiticeiro não é esse objeto. O psiquiatra remedeiro, sim. Este se  alimenta  de subjetividades enrijecidas, esvaziadas, ocas, trastes apelidados de pacientes.É preciso um combate incessante contra a máquina farmacológica.  O  fármaco é apenas um elemento  prático-terapêutico.Um devir-feiticeiro é outra coisa, um estilo: a sensibilidade, a intuição, a percepção do invisível,o senso de observação, a escuta do silêncio,  a espreita, o olhar de lince,  um devir-poesia, devir-arte, etc, todo um conjunto  de dispositivos...
(...)

A.M.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Ah! Toda a Alma num cárcere anda presa,
soluçando nas trevas, entre as grades
do calabouço olhando imensidades,
mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
quando a alma entre grilhões as liberdades
sonha e sonhando, as imortalidades
rasga no etéreo Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
nas prisões colossais e abandonadas,
da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!


Cruz e Sousa

TRAIR A PSIQUIATRIA

O lugar da diferença na psiquiatria é o do não-lugar, o delírio, condição para um pensar livre. Para a psiquiatria biológica isto soa como, no mínimo, irracional. Num caps, onde a equipe técnica é (ou deveria ser) a referência da clínica, o psiquiatra contribue com a sua farmacoterapia e óbvio, com uma certa visão da psicopatologia. No entanto, hoje a psicopatologia é desprezada como objeto de pesquisa e substituída por alterações de comportamento, o qual seria em essência determinado por alterações cerebrais ( daí o uso de psicofármacos como primeira opção terapêutica). Desse modo, a psiquiatria, além de portadora de um pensar simplista, torna-se um entrave para uma clínica psicossocial, ou seja, a um Centro de Atenção Psicossocial. Isso se operacionaliza com a colaboração de não-psiquiatras. A equipe técnica é psiquiatrizada. Não causa surpresa, ao contrário, o fato do status quo psiquiátrico não ver positivamente o ideário antimanicomial.  Sua hegemonia clínica e institucional é contestada. Num caps, se a impressão inicial for a de um ambulatório de psiquiatria funcionando, estamos dentro de um pseudo-caps.

A.M.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Sou refém da lua cheia
ela entra pelo quarto
conhece-me os desejos
os beijos guardados
as sombras e crateras do meu cativeiro
sou refém da meia-lua
ela me sabe os pedaços
tristezas e segredos
invade-me à madrugada
assiste o amor arder
sem endereço
sou refém de mim
a lua é pretexto.


Líria Porto

EMIL NOLDE


terça-feira, 17 de setembro de 2019

UM  ENCONTRO

Quando se diz "relações interpessoais", está implícito o conceito de "pessoa humana", de origem intrínsecamente cristã. No entanto, ao se pensar o encontro entre duas pessoas, é possível agenciar o Encontro entre multiplicidades, aquele que remete ao movimento dos corpos (visíveis e invisíveis) enfiados no livre fluxo dos acontecimentos. Trata-se de uma torção do discurso, um desvio da fala banal em prol dos afetos e da potência de ser afetado. Silêncio! A chamada pessoa já não se sustenta, já não recolhe energia de uma suposta unidade de ação (o eu, a consciência...), exceto se estiver sob a égide dos códigos estabelecidos em dispositivos de controles tecno-burocráticos ou de despotismos morais. De todo modo, o encontro real é composto por linhas de singularização que se ligam umas às outras, constroem territórios afetivos e ficam à espreita... Então, a coisa é assim: cada pessoa não é una, não é uniforme, mas múltipla, multiplicada e multiplicante por "n" mil. Seja o objeto de uma paixão. Não é o objeto o que importa ou o que faz funcionar o mundo e o universo, não é o que encanta e  faz renascer a realidade a cada segundo, mas os signos que são enviados por ele (sem cessar) para o amante. Tampouco este é "uma pessoa", mas uma multiplicidade de linhas afetivas movidas à alegria em viagens de perdição. É o segredo revelado no cerne do encontro real entre o Amante e o Objeto da sua paixão. Tudo passa pelos signos e pela força de sua expressão livre nos cantos e encantos de uma natureza impassível e esplendorosa. É a arte do encontro, um alumbramento.


A.M.


Obs.: texto republicado.
Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.

Tennessee Williams

ORQUÍDEAS ETERNAS


Ritmos variados

Sabe, meu Cachoeiro, as coisas nem
sempre saem conforme o combinado.
Nessas ocasiões, apenas me lembro
que tenho um pinto enorme e tudo
parece um pouco melhor.
Os anos se passaram e pequenas
convicções se acumularam
num canto escuro do quarto.
Todos os boleros do mundo
soando juntos deveriam fazer
algum sentido, mas não fazem.

Bruno Brum
O QUE É APRENDER?

(...)
3- A dobra subjetiva – A experiência de  ensinar é antes a experiência de aprender com os signos. Antecedendo à  partição significante-significado, o signo procede a uma  violência constitutiva dessa experiência. Forçar a pensar, como diz Deleuze, é criar um campo tanto mais rico na emissão de signos. A função de professor dobra-se e desdobra-se na sua presença-ausência, descolando-se dos conteúdos e fazendo destes o móvel das práticas do pensar. A subjetivação deixa de ser centrada numa pessoa, seja a do professor, seja a do aluno, e constitui-se como ato de pensar por fragmentos do real.  Um pensar estilhaçado, atravessando campos do saber,  tal como um pássaro  bicando aqui e acolá os materiais necessários à produção de conceitos. Ou de afetos e funções, se pensarmos como um artista ou como um cientista, respectivamente. Isso conflui numa subjetividade contra-subjetiva, ou seja, exposta para fora de si, não totalizada, não totalizável e inscrita na superfície dos corpos humanos e inumanos. Trata-se de singularizações móveis do processo do desejo. O muro é a linguagem douta, técnica, rochedo invisível mas  doloroso às invenções não cadastradas do pensar. O caráter redutor, reducionista e por vezes fascista da linguagem leva-nos à dimensão do conhecimento imaculado. Como diz Nietzsche, “em algum canto longínquo do universo difundido no brilho de  inumeráveis sistemas solares, houve certa vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o Conhecimento. Foi o minuto mais arrogante e mais ilusório da “história universal”, mas não foi mais que um minuto. Com apenas alguns suspiros da natureza a estrela se congela, os animais inteligentes logo morrem”. Esta fábula traz para a experiência do aprendizado as velocidades infinitas do caos-cosmos. Daí, como trabalhar o discurso com um contra-discurso ou sem o discurso ou para além do discurso? Como ultrapassar o discurso normalizante e moralizador da pedagogia vigente e embutida  nas práticas de ensino? Como  seguir o rumo  de  territórios invisíveis, mesmo à mão, e de paisagens vertiginosas,  mesmo à luz da razão? Como fabricar universos de sentido sem cair numa  indiferenciação  subjetiva estéril, também chamada   “porra-louquice”?  Ora, o aprendizado é, antes, a produção (não o produto) do Encontro. Afetar e ser afetado, nos termos de Spinoza, é a densidade própria à dobra subjetiva referida acima, e que situamos como sendo a multiplicidade. O aluno é esta multiplicidade que vaza  e se expande para fora do papel-aluno disposto na série escolar . Obter uma boa nota nos exames, passar de ano ou de semestre, ser aprovado etc, são componentes do papel. Contudo, a depender  do uso feito na produção do Encontro, tornam-se uma caução para o conhecimento bem comportado e estável. O que chamamos  de “devir-aluno” é pois o processo do Encontro mestre-aluno  na dimensão impessoal das multiplicidades. O mestre torna-se outra coisa que não ele. O aluno torna-se outra coisa que não ele. As linhas do aprendizado passam pelo vôo da bruxa  até onde (?) ela irá. São abertas conexões ilimitadas  às sensibilidades em curso. É criado um campo de intensificaçào da  experiência do Encontro entre multiplicidades. Na prática, isso quer dizer: não faça como eu;  faça comigo  até experimentar em você  o gosto pela novidade e pelo risco de pensar com os próprios neurônios, mesmo que estas células recolham de longe o que as faz mover, respirar, funcionar.
(...)

A.M.

CARLOS SANTANA - Live at Montreux

CONTRA SEXO & DROGA

Um padre da Igreja Ortodoxa Russa despejou cerca de 70 litros de água benta sobre a cidade de Tver (Rússia) na última quarta-feira (11/9) para "livrar os moradores dos pecados do consumo de álcool e da fornicação".

Alexander Goryachev embarcou em um avião desde a base de Zmeyevo, de acordo com o site "Tvernews". Desde 2006, o padre lidera a iniciativa, que marca do Dia da Sobriedade. Este ano foi a primeira vez que a água benta foi jogada sobre Tver.

A cidade foi escolhida pelo quadro de "excesso de pecados" relacionados a bebida alcoólica e ao sexo.

Em vez de lançar água benta com aspersório (pequeno objeto onde se coloca água benta para o sacerdote aspergir o povo, lugares e objetos a serem abençoados), Goryachev usou um cálice, para que o vento não jogasse a água de volta à aeronave.


Fernando Moreira, Extra, 17/09/2019, 06:00 hs


AMÉLIA

ficava lá disponível
limpa macia perfumada
igual blusa no cabide

ele vinha usava-a
voltava-se para a parede
dormia
partia pela manhã

(foi visto no shopping
de roupa nova)


Líria Porto

ANDRE KOHN


O SUICÍDIO É UMA SOLUÇÃO?

Não, o suicídio ainda é uma hipótese. Quero ter o direito de duvidar do suicídio assim como de todo o restante da realidade. É preciso, por enquanto e até segunda ordem, duvidar atrozmente, não propriamente da existência, que está ao alcance de qualquer um, mas da agitação interior e da profunda sensibilidade das coisas, dos atos, da realidade. Não acredito em coisa alguma à qual eu não esteja ligado pela sensibilidade de um cordão pensante, como que meteórico e ainda assim sinto falta de mais meteoros em ação. A existência construída e sensível de qualquer homem me aflige e decididamente abomino toda realidade. O suicídio nada mais é que a conquista fabulosa e remota dos homens bem-pensantes, mas o estado propriamente dito do suicídio me é incompreensível. O suicídio de um neurastênico não tem qualquer valor de representação, mas sim o estado de espírito de um homem que tiver determinado seu suicídio, suas circunstâncias materiais e o momento do seu desfecho maravilhoso. Desconheço o que sejam as coisas, ignoro todo o estado humano, nada no mundo se volta para mim, dá voltas em mim. Tolero terrivelmente mal a vida. Não existe estado que eu possa atingir. E certamente já morri faz tempo, já me suicidei. Me suicidaram, quero dizer. Mas que achariam de um suicídio anterior, de um suicídio que nos fizesse dar a volta, porém para o outro lado da existência, não para o lado da morte? Só este teria valor para mim. Não sinto apetite da morte, sinto apetite de não ser, de jamais ter caído neste torvelinho de imbecilidades, de abdicações, de renúncias e de encontros obtusos que é o eu de Antonin Artaud, bem mais frágil que ele. O eu deste enfermo errante que de vez em quando vem oferecer sua sombra sobre a qual ele já cuspiu faz muito tempo, este eu capenga, apoiado em muletas, que se arrasta; este eu virtual, impossível e que todavia se encontra na realidade. Ninguém como ele sentiu a fraqueza que é a fraqueza principal, essencial da humanidade. A de ser destruída, de não existir.

Antonin Artaud (1925)

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A questão do suicídio

O suicídio é um tema complexo, e daí indicado para uma abordagem transdisciplinar. Num extremo da análise há o pensamento especulativo, abstrato, (“quais os fatores que levam ao suicídio?”) e no outro extremo, o pensamento empírico (“como evitar o suicídio e/ou atender quem quer se matar”?). Nesse texto optamos por trabalhar a segunda linha, ou seja, um problema concreto, clínico, por vezes dramático que diz respeito à urgência/emergência em saúde mental. E por extensão, ao técnico em saúde mental, mesmo que este não trabalhe em saúde mental. Lembramos que o suicídio atravessa todas as áreas e especialidades, desde que a vida é o que está em jogo. Desse modo, é possível enumerar alguns princípios que norteiam a intervenção focal sobre quem tentou se matar. Em primeiro lugar, óbvio, numa tentativa de suicídio não exitosa a avalição incide antes de tudo sobre o organismo visível, mensurável, (dados vitais, etc). Esse é o protocolo médico clássico. Em segundo, a presença do paciente é reconhecida como a quem está ou esteve numa situação-limite, a do autoextermínio. É um reconhecimento que se baseia num não julgamento. Em terceiro, a contextualização e as circunstâncias do ato a partir de informações da anamnese (do próprio ou de terceiros). Onde? Quando? Como? Por que? Em quarto, a escuta do paciente segundo uma atitude expectante não passiva, ao contrário. Significa dizer que ele será acolhido sem restrições. Em quinto, a pesquisa sobre os afetos (sentimento, humor, vontade, etc) no instante da conversa. Isso leva o técnico a sondar se há risco de nova tentativa (imediata ou mediata). Em sexto, a organização cognitiva a dizer se ele está “compreendendo” a situação atual (nível de consciência, do eu, da realidade à volta, da organização da fala, etc). Em sétimo, a observação em torno do paciente onde estariam a família, amigos, colegas, conhecidos a prestarem solidariedade (ou não). Em oitavo, da possibilidade (às vezes difícil) de estabelecer um diagnóstico psiquiátrico e/ou psicológico (sindrômico) baseado na semiologia do ato. Em nono, para intuir a atitude valorativa do suicida em relação a gravidade do seu próprio ato. Um distanciamento crítico a conferir. Em décimo, a preparação junto ao paciente das medidas pós-tentativa como o encaminhamento a outros serviços, entidades ou pessoas, a depender do caso, de acordo com os itens anteriores.

A.M.

DESEMPREGO


PSIQUIATRIA E PM

O Fantástico fez um levantamento de como anda a saúde mental dos policiais militares no Brasil todo, focando principalmente naqueles que trabalham diretamente com conflito. E descobriu que pelo menos 43 PMs são afastados por dia por transtornos psiquiátricos. Um dado preocupante, ainda mais em uma profissão cuja missão é proteger o cidadão.
(...)

Gobo.com, 15/09/2019, atualizado há 2 hs

domingo, 15 de setembro de 2019

CLÍNICA E CRÍTICA

(...)
Como foi dito, o psiquiatra torna-se outra coisa, um devir, devir-feiticeiro, estranha metamorfose que se atualiza num meio tecnológico saturado  de mercadorias.No corpo a corpo com o paciente , ele  age. Sobretudo,  nada  acumula,  nada conhece,  não  como  estágio zero do conhecimento, mas como um ingênuo diante do cosmos.O feiticeiro é apenas um dos seus disfarces. Composto em meio às serializações  tecno-científicas, ele traça um  equilibrismo ético-político. Ao mesmo tempo, lida com a palavra e a escuta não só como condições ao atendimento, mas como o próprio atendimento.A fala provém da espontaneidade-criativa  inscrita no ato da entrevista. A escuta está dada como sensibilidade para o novo, o heterogêneo, o estranho. Trata-se de uma clínica das multiplicidades: uma prática a se fazer, a se produzir, a se inventar. Sem modelo.
(...)

A.M. in Trair a psiquiatria
                 

Nunca ninguém conseguirá ir ao fundo de um riso de criança.

Victor Hugo

PAULINHO DA VIOLA

les misérables

em noites turvas ou frias
pobres corpos se procuram
sob viadutos e marquises

nos redutos dos ratos e das aranhas
os filhos do infortúnio


Líria Porto

sábado, 14 de setembro de 2019

NIKITA MANOKHIN


ESTUDOS SOBRE O SUICÍDIO - IV

A complexidade do tema "suicídio" conduz a pesquisa para linhas dispostas num rizoma.  Trata-se de uma abordagem transdisciplinar. Isso ultrapassa as fronteiras entre os saberes em prol da construção de um conhecimento que os atravessa. Qual? No caso do suicídio, é a questão da vida. Tanto a nível especulativo quando a nível empírico, é a vida e mais precisamente "o que é viver?" o que se expressa como densidade conceitual irrecusável. É o que está em jogo. Ora, entre os focos de atenção para com o tema está, óbvio, o ato em si de alguém se matar. Como foi possível? Como ele conseguiu? O "como" não refere ao método usado, mas mais profundamente a que forças atuaram no momento fatal. É simples constatar que motivos de toda ordem existem para alguém se matar. Quem nunca pensou nisso, nem que por um breve momento? Nas síndromes psiquiátricas a ideação suicida, apesar de comum, nem sempre chega a se consumar como ato. Então, eis a nossa hipótese: mais importantes que os motivos, há linhas de forças destrutivas na organização subjetiva (afetiva, portanto) que triunfam. Como isso se agencia? Os afetos (um "gosto em viver") são derrotados por essa vivência interna (um "não querer viver") mas produzida de fora, isto é, pela sociedade. O "não querer viver" é social. Não no sentido de que "a sociedade é culpada" mas no sentido em que somos seres sociais e é isso que nos faz humanos. Não existiria, pois, o indivíduo e a sociedade.O indivíduo já é a sociedade-em-nós. O suicídio é um sintoma social do "não querer viver". Ou no mínimo, que está muito difícil viver.Esta é a base para pensá-lo sem apelar para uma reflexão mortuária em seus disfarces moralistas (a religião), técnicos (a medicina), políticos (o estado) e publicitários (a mídia). "Só existe o desejo e o social e nada mais".

A.M.
A história da mulher é a história da pior tirania que o mundo conheceu: a tirania do mais fraco sobre o mais forte.

Oscar Wilde

GENTE DE ZONA - La Gozadera ft. Marc Anthony

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

SOBRE O DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO

O diagnóstico psiquiátrico corresponde a um enunciado médico (por ex., "...é esquizofrenia") que se organizou a partir do século XIX, na Europa, o chamado "século dos manicômios". Desse modo, ele reproduz a visão manicomial daquela época. Inicialmente, um diagnóstico moral e sem corpo, pois este resumia-se ao comportamento louco, não a um organismo lesionado. Só em fins do século XIX, com os escritos de Kraeplin, é que se estabeleceu o "corpo neurológico" que é, como diz Foucault, o organismo físico-químico a ser designado como "orgânico". Organicidade tornou-se um conceito que põe o cérebro como origem (etiologia) dos transtornos mentais. Hoje, sabemos, que “organicidade” é um conceito em desuso. Entrementes, é possível lembrar o que em fins do século XIX a clínica da histeria mostrou: alguém pode ficar louco sem que haja qualquer lesão e/ou disfunção cerebral. Assim, a psiquiatria, desde o seu nascedouro, vive dilemas (no mínimo 2) no coração da sua prática: 1º-o que é "mente"? e o que é "corpo"?; 2º- quem parece ser louco às vezes não é; e quem não parece ser louco, às vezes é. Em resumo, trazemos a questão do diagnóstico da loucura ("este homem está louco"?) para expor a munição teórica que mantém e faz proliferar dispositivos de controle sócio-desejantes da psiquiatria. Ora, esta especialidade médica empreende, nos dias atuais, um aniquilamento da psicopatologia.

A.M.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

DESPERDÍCIO

prima dirce vê a vida
pela fresta

ela adora futebol
e vai à missa

seu pecado foi cheirar
lança-perfume

prima dirce borda borda
mas não pinta


Líria Porto

Como Criar Uma Vida Não-Fascista, por Michel Foucault, prefácio do Anti-...

QUAL DEPRESSÃO?

No Brasil, há 11 milhões de pessoas diagnosticadas com depressão. Em todo o mundo, são mais de 300 milhões. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a depressão é a doença mais incapacitante do mundo e a segunda principal causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos de idade. Apesar dos números alarmantes, a OMS afirma que menos da metade dos diagnosticados está em tratamento.
(...)

Globo. com, Profissão Repórter, 12/09/2019, atualizado há 6 hs.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O TEMPO NÃO VOLTA

(...)
Dessa  perspectiva, o trabalho com o paciente é essencialmente o de resgatar a capacidade de  criar a si mesmo e ao mundo, o qual na verdade é ele próprio. Promover condições de movimento, não só como deslocamento espacial, mas como devir. Esse é o campo da  subjetividade que chamamos de processo. A psiquiatria desconhece o conceito de devir  porque  opera num universo de totalidades identitárias, o-portador-de-transtorno-mental, a doença mental, a esquizofrenia, o sintoma, a  cura, etc - que  é o da representação. Desse  modo, não há  chance de se conceber o devir como instância vital, carnal. A psicopatologia  desaparece e no seu lugar surgem unidades reificadas da mente que respondem aos estímulos acionados. No entanto, o devir é uma conexão entre elementos heterogêneos. O que está em jogo é o movimento, a mudança  e sobretudo, a multiplicidade. Numa clínica do Encontro  isso expressa intensidades criativas. Os devires entram em cena à medida em que a subjetividade “egóica” se  desfaz. Daí, o cérebro, a consciência e o  eu passam a fazer parte dos devires e não o contrário. O que vem primeiro é o Tempo, a passagem. Em que isso interessa à psicopatologia, e por extensão, à clínica  dos transtornos mentais?
(...)

A.M.

DENIS CHERNOV


terça-feira, 10 de setembro de 2019

Educação sobre igualdade de gênero

(...)
O anuário inclui dados estarrecedores, como o de que uma menina com menos de 13 anos é estuprada a cada quatro horas. A violência sexual atinge principalmente os mais vulneráveis, agredidos geralmente em suas casas − por seus pais, padrastos, tios, vizinhos ou primos. Por isso, o fórum destacou a importância de que as escolas eduquem sobre igualdade de gênero e violência sexual. As menores de 13 anos representam mais da metade (54%) das vítimas dos 66.000 estupros registrados, um dramático recorde no Brasil. As vítimas do sexo masculino são ainda mais jovens, a maioria tinha menos de sete anos. Tanto as vítimas de estupro como de feminicídio aumentaram 4%, com mais de 1.200 mulheres assassinadas principalmente por seus companheiros ou ex-companheiros em um país onde há uma denúncia por violência doméstica a cada dois minutos. O anuário inclui também dados animadores, como o de que os crimes contra o patrimônio caíram 14%.
(...)

Naiara Galarraga Cortázar, El País, São Paulo, 10/09/2019,17:30 hs

SEM PALAVRAS


caos

nas ruas procuro teu rosto
nos rostos procuro teus traços
nos traços procuro teus gestos
nos gestos procuro teus atos
nos atos procuro teu amor
nos amores procuro por ti
e não te acho


Líria Porto

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Nunca o povo esteve tão longe de nós, não quer saber. E se souber ainda fica com raiva, o povo tem medo. Ah! Como o povo tem medo. A burguesia toda aí esplendorosa. Nunca os ricos foram tão ricos (...) Resta a massa dos delinquentes urbanos. Dos neuróticos urbanos. E a meia-dúzia de intelectuais (...) Não sei explicar, mas tenho mais nojo de intelectual do que de tira.

Lygia Fagundes Telles

FRANKIE VALLI - Can't Take My Eyes Off You Live (1975)

ESTUDOS SOBRE O SUICÍDIO - III

O tema "suicídio" é complexo. Sim, porque está em jogo não a morte ("a morte não existe") mas a vida. Vale a pena a vida? Como Camus escreveu, no ato suicida está presente a única questão verdadeiramente filosófica : o valor da vida. Saímos do campo especulativo da morte (o que é isso?) para aterrar nas práticas do mundo. Trata-se de um giro na discussão empírica ( como evitar que ele se mate?) em direção aos processos existenciais que o desejo agencia. O que é viver? Sob o foco da mídia, imagens mortuárias povoam o debate sobre o suicídio e as respostas extraem da agenda biomédica o senso comum dos organismos tidos como doentes. Pesadas carcaças diagnósticas fecham a questão: haveria mais suicidas entre os portadores de transtornos mentais? Ora, os transtornos mentais não são causa nem origem nem explicam nada. Eles é que devem ser explicados. A psiquiatria também. Como o pensamento sobre o suicídio costuma estar atolado na moral, na ciência, na religião e nos interesses do estado, rodopiamos todos num ponto cego de análise. Repetindo: a questão é a da vida! Até porque uma séria limitação do método qualitativo jamais será preenchida nas pesquisas. Ou seja, quem fala em nome do suicida exitoso, já que ele não mais está entre nós?

A.M.  
MADRUGADA

Sucos do céu molham a madrugada da cidade violenta.
Ela respira por nós.

Somos os que acendemos o amor para que dure,
para que sobreviva a toda a solidão.

Queimamos o medo, olhamos frente a frente a dor
antes de merecer esta esperança.

Abrimos as janelas para lhes dar mil rostos.


Juan Gelman
A ARTE RESISTE

É preciso percorrer pouco mais de dez quilômetros em uma estrada de terra vermelha pouco iluminada para chegar até a casa do pintor polonês Maciej Babinski. Ali, em um sítio localizado em pleno sertão do Ceará — a 430 quilômetros da capital Fortaleza— ,o artista de 88 anos acostumado a expor suas obras em importantes museus do Brasil e do mundo, construiu um verdadeiro oásis da arte: uma galeria e um ateliê sempre abertos à visitação que funcionam no duplex anexo à casa dele. Por lá, passam desde estudantes das escolas locais até artistas e pesquisadores que cruzam o país para visitá-lo. "Sou contra a globalização. Eu acho que a cultura vai sobreviver nas aldeias do mundo", filosofa Babinski, enquanto se acomoda em uma poltrona de sua sala e balança um copo de uísque com gelo. Depois de 28 anos vivendo distante dos grandes centros de arte do Brasil —o pintor viveu no Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo quando chegou ao país, nos anos 50—, ele retornou à capital paulista neste sábado (7) para abrir a exposição Retratos Eriçados, em cartaz na Pharmacia Cultural Fundação Stickel até o dia 1º de novembro.
(...)

Beatriz Jucá, El País, 08/09/2019, 21:46 hs

domingo, 8 de setembro de 2019

BORIS DENEV


BOLSONARO  VERSUS  MORO?

Acredito que restam poucas dúvidas. Bolsonaro está devorando Moro. Ora, mas eles não apareceram abraçados e felizes no sábado, no desfile de 7 de setembro? Isso foi só uma fachada, porque Bolsonaro, ao mesmo tempo em que está dessangrando seu ministro da Justiça, sabe que hoje sua popularidade está muito abaixo da de seu ministro.

O certo é que Bolsonaro está entre a espada e a parede. Por um lado, sua claque nas redes sociais apoia o ex-juiz da Lava Jato e por outro, o presidente teme que o troféu que ele exibiu ao ganhar as eleições possa começar a aspirar a sucedê-lo. Assim, a verdade é que, apesar dos risos e abraços em público, na solidão dos palácios as coisas ganham outra cor, e Bolsonaro começou a colocar pedras no caminho de seu ministro de maior destaque. Se começou a devorá-lo pelas bordas, agora está chegando ao coração. Não é preciso consultar as antigas pitonisas gregas para saber qual vai ser o final do ex-astro da Lava Jato à frente do emblemático Ministério da Justiça do Governo autoritário de Bolsonaro.
(...)

Juan Arias, El País, 08/09/2019, 17:28 hs
ébano

quando eu nascer outra vez
quero ser negra retinta
e os meus cabelos crespos
deixá-los à carapinha
brancos só mesmo os dentes
e nos olhos azeviche
carregar a minha áfrica
seu sol ardente sua púrpura

quando eu nascer outra vez
vou dançar com o meu povo
no compasso do batuque
e dentro da pele quente
conduzir-me à altura
da cor e da raça esplêndidas
da beleza de ser gente
no coração –– na estatura


Líria Porto