quarta-feira, 31 de agosto de 2011

ISSO NÃO PÁRA

Amor e vida só parecem individuais na terra, pois lá se  destrói tudo com vibrações de amplitude e duração diferentes.
Apesar disto, não há vibrações que não vá conjugar-se em movimento circular contínuo; como a locomotiva que anda à superfície da terra, imagem da metamorfose contínua.

G. Bataille - do livro O ânus solar

CHAPADA DIAMANTINA


MEU CELULAR FAZ DE TUDO

Há cerca de 800 milhões de pessoas desnutridas no mundo - dados  (atualizados) da FAO/ONU.

ESTAMIRA E O REAL

QUE LOUCURA!!!

Psiquiatra biológico - Estamos do lado da ciência neuro-biológica  e das  tecnologias  de ponta.Trazemos os moderníssimos avanços das pesquisas em  neurociência, principalmente quanto aos processos da Memória. Na verdade, podemos afirmar com convicçâo e fé  que nós somos a própria ciência. Trazemos a verdade da Conhecimento Científico  para poder  ajudar  os portadores de transtornos mentais. Fora disso, não há solução. Só o charlatanismo, a taumaturgia e o caos.

Representante da Luta Antimaciomial - Este é o tipo do  discurso "glace de bolo". Tem uma casca humanista que não resiste a uma análise crua dos fatos.  Vocês querem  mais é  manter o status da medicina, custe o que custar. Sua ética deriva disso. É a ética do capital . O louco que se dane. A derrocada (ainda incompleta) dos hospícios não muda muito as coisas. Permanece reinando a ótica psiquiátrica (mesmo entre os não-psiquiatras) encravada no corpo do paciente e nas  alianças políticas com instituições poderosas.  

POESIA DO DIA - 6

os médicos são burros
carregando o sistema
orgulhosamente

A. Moura

terça-feira, 30 de agosto de 2011

TRAIR

Ser traidor de seu próprio reino, ser traidor de seu sexo, de sua classe, de sua maioria - que outra razão para escrever? E ser traidor da escritura. (...) É que trair é difícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido.

G. Deleuze - do livro Diálogos

À PROCURA DE KADATH

Durante algum tempo procurou amigos, mas logo se agastou com  a brutalidade de suas emoções e a mesmice  e a vulgaridade  de suas fantasias. Sentia-se vagamente satisfeito com o fato de  todos os seus parentes viverem longe e sem contato com ele, pois nenhum deles teria compreendido sua vida mental. Isto é, nenhum exceto seu avô e seu tio Christopher, e fazia muito já haviam morrido. Começou então, uma vez mais, a escrever livros, algo que deixara de  fazer quando os sonhos começaram a abandoná-lo.

H. P. Lovecraft

JADE - João Bosco


PENSAMENTO TRÀGICO

O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

F. Nietzsche

POESIA DO DIA - 5

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E tem o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que lhes viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...


Fernando Pessoa

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

NOMADIS TEMPORIUM DELIRIUM EST

Quem é o louco aqui? É somente aí que pedem ajuda aos nômades. Retirados da areia movediça, tentam colonizá-los com a transcraniana. Distribuem benzodiazepínicos em frascos de perfume spray. (...) (...) A hora da besta se avizinha na roupagem de um mero terremoto à escala 8.8. Todos medram à medida que não se tem controle.(...) (...) Passeio mesmo é na capsolândia, o país dos sortilégios e escalpelo arrancados dos companheiros neurônios, estes sim, gente boa. (...)

Isac  Neto e Antonio Moura - fragmento do livro Trair a psiquiatria - a ser publicado

AGENCIAMENTOS PSIQUIÁTRICOS

Você escutou o esquizofrênico? Qualquer possibilidade de fazê-lo esbarra nos códigos do eu-psiquiatra. Portanto, sem chance. O comportamento deve voltar aos trilhos. As correntes afetivas estão obedientes de novo. Não há delírio. As alucinações se foram. A exemplo do esquizofrênico residual, talvez a alma tenha partido e a ordem volte a reinar. A psiquiatria organiza, pois, a desordem e faz valer a razão triunfante dos fármacos à mão. A indústria farmacêutica agradece. Contudo, mesmo fora das psicoses, a aliança dos fármacos com  a psicologia estabelece os sistemas viventes adequados ao equilíbrio de um admirável mundo novo. Sem sofrimento.

Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

POESIA DO DIA - 4

Mensagem à poesia

Não posso.
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.

Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta
                                                  noite ao seu encontro
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte
                                                                        do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas 
                                                                     carpindo
A saudade de seus homens; (...)


Vinicius de Moraes

domingo, 28 de agosto de 2011

A FALA DA PAIXÃO - Gismonti

DIFÍCIL

Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentários,e  em nome de um aparelho unitário do Estado, pelo menos possível, inclusive quando se falava  sobre nômades. O que falta é uma Nomadologia, o contrário de uma história.

Deleuze-Guattari - Mil platôs

MUITO CEDO

Miguel tem  5 meses
É um bebê muito sabido.

Até ele sabe que o Brasil
é governado por oligarquias
desde 1500,

Pode?

Raul Seixas

QUEM É LOUCO?

O  louco nos chega por mãos variadas. A sociedade divide  seus filhos: sãos e doentes, ricos e pobres, jovens e velhos, bons e maus, etc.   O  que nos  chega?  Um dualismo  esgotado. Ele    finca  a verdade  e  exala dos poderosos o cheiro inconfundível  das cisternas. Temos  que admitir: o  poder público amacia os temporais do desejo inaudito. Todos se levantam quando o assunto é o bem estar dos medianos. Eles  estão em toda  a parte. Ah, os medianos... Odeiam a loucura e a parte que lhes  cabe nesse latifúndio. No entanto, o louco, com  sua conversa diversa, incomoda a ordem, mesmo a que vem das remelas do  rei. Fala de outra coisa,   coisa simples: aí vem a diferença numa via indecifrável aos medianos de plantão. Rasga os organismos de pedra. Num Brasil  país de todos,  o soldo é  o  dos monarcas.   A diferença?  Ela  dança sobre continentes perdidos. Em cada um dos nós, a mentira se afirma como a verdade dos tempos que  correm.   Parados.  O ogro   assume a educação  e a violência banal  reparte o pão nosso em obras vazias. A  educação é isso. Um lixo suavizado em canções pela   Brasília dos sonhos.  Voltemos à excreção das partes ainda não contaminadas. O corpo do Tempo arremeda pássaros. O delírio das populações cede ao uso de neurolépticos. Um  louco refugia-se na normalidade. Ele nos chega  por mãos  variadas. Em todas, um só coração deseja manter a aparência de bondade. A loucura se torna o padrão VISA das transações ok. Que  resta? 

Antonio Moura

ESCLARECIMENTO

Recebemos  Manifesto da Associação Psiquiátrica Universal. Como  deve ser do interesse daqueles que frequentam  esse blog, transcrevemos abaixo a íntegra do texto.

Nós, os representantes da pesquisa científica  acerca dos transtornos mentais,  tornamos  explícita   a frente avançada da conquista da Verdade sobre a Loucura.  Pesquisadores, professores, clínicos, englobamos o que a psiquiatria tem de melhor (ética e científicamente) em termos de avanço científico. Abominamos, pois,   o descalabro  técnico e  político expresso  pela Luta Antimanicomial. Nós,  psiquiatras-da-verdade, estamos   estupefactos e revoltados  ante a campanha anti-psiquiátrica que circula no meio da LAMA (LutaAntiMAnicomial).  Ao fim, reafirmamos que a psiquiatria é a única forma racional e científica para  lidar com a loucura. Daí, a afirmação da  nossa superioridade técnica sobre agentes sociais despreparados para lidar com o portador de transtorno mental. A sociedade nos dará razão.

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA

A subjetividade estandartizou-se mediante uma comunicação que elimina ao máximo as composições enunciativas transsemióticas (desaparecimento progressivo da polissemia, da prosódia, do gesto, da mímica, da postura) em benefício de uma linguagem sujeita rigorosamente às máquinas escriturais e seus avatares mass-mediáticos.
Em suas formas contemporâneas extremas, a subjetividade tende a converter-se num intercâmbio de peças informacionais calculáveis em quantidade de bits (binary digits) e reproduzíveis por computador.

Félix Guattari - do livro Novos paradigmas, cultura e subjetividade

POESIA DO DIA - 3

A quem de direito

Inda que lances sobre nós
teu saibro
teu cuspe incandescente
tua mira/ira

Inda que exercites sobre nós
teus ácidos
tua suspicácia
tua força

inda que levantes
paredes tumulares
e te divirtam en-
sanguentados jogos

inda que manipules
nossos fusos horários
nosso dízimo
nossa sede

temo por ti. Como explicar-te
a força de Davi
a queda de Golias
o não cessar do Tempo?

Lara de Lemos

sábado, 27 de agosto de 2011

GENTILEZA GERA GENTILEZA


SOCIO-PSICODRAMA NO SERVIÇO PÚBLICO - 8

A 8ª sessão fortaleceu as relações  intra-grupais. Ausente um componente do grupo (justificado), trabalhamos no plano das escolhas sociométricas, observando as identificações em torno do papel-mulher. O problema   chamado de " baixa auto-estima" emergiu como "protagonista-tema", a partir do que a sessão girou nos  relatos de situações existenciais complexas. A baixa estima despontou na vida atual de todas as pacientes.  Busquei pontuar algumas  linhas sociais que fabricam a vergonha, a despontencialização do "ser-mulher", a Forma estética-clichê da "mulher gostosa" e  a desvalorização do desejo-produção feminino. Desnaturalizar a realidade.  Tais pontuações eram realizadas no próprio  fluxo das narrativas, visando torná-las  úteis a um entendimento de si mesmas a partir de um fora (o coletivo) que não costuma  surgir  como tal e sim como vivência de um eu "franzino". Como diz o Guattari "Será que sou uma merda?". Lentamente o grupo vai se diferenciando como processo, agenciando forças de todos os tipos. Evito o enfoque na pessoa da paciente e enfatizo as forças afirmativas que constituem essa pessoa (e esse corpo) nas relações com o mundo. Me parece essencial  evidenciar às pacientes que o tratamento farmacológico não vai resolver os problemas e sim cronificá-los. Isso não é dito de modo explícito, mas compõe os argumentos em torno da pergunta (implícita): "O que quero fazer da 'minha' vida"?

O DESENTENDIMENTO

Por desentendimento entenderemos um tipo determinado de situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura.(...) (...) O que torna a política um objeto escandaloso é que a  política é a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do desentendimento. (..) (...) A desigualdade só é, em última instância, possível pela igualdade. Existe política quando pela lógica supostamente natural da dominação perpassa o efeito dessa igualdade. Isso quer dizer que não existe sempre política. Ela acontece, aliás, muito pouco e raramente.

Jacques Rancière - do livro O desentendimento- política e filosofia, São Paulo, Ed. 34, 1996.


Comentário - trata-se de um livro difícil, com densa argumentação teórica e indispensável para quem quer pensar a política de novas maneiras.

O VENTO - Caymmi

POESIA DO DIA - 2

Desinventar objetos.O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia.Ou  uma gravanha.


Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.


Manoel de Barros

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

OUTRA PSIQUIATRIA

A  psiquiatria  comparece: a sua ligação com a loucura é antiga. Passando pelos alienistas do século XIX, a psiquiatria quer nos responder a pergunta: o que é   a   loucura? A isso ela, própria,  responde , nos dias atuais, com um enunciado simplório e cínico: a loucura é A doença. Essa doença é a esquizofrenia. Ao  contrário, preferimos nos manter antes da divisão são/insano. Não sabemos o que é a esquizofrenia.  Podemos, tão apenas,  dizer que a loucura é  a experiência do sem-sentido que se dá como sentido.Quem suporta tamanha insanidade? Quem suporta tamanho  dilaceramento?Usamos  dados  vivenciais  para  afirmar um diferença irredutível. No entanto... a psiquiatria biológica quer se impor.

Antonio Moura

POR QUE O CÉREBRO MENTE? III

O cérebro MENTE  porque ele é o centro. E o centro espalha um regime de verdade que atinge os órgãos-súditos. Dá-se o início de um processo que chamamos de  política do corpo-organismo. Tudo passa a girar em torno de um Deus-organismo, o qual a Medicina se encarrega de codificar. Você tem câncer, você tem esquizofrenia. No entanto, alguma coisa  foge desse padrão mortífero exibido em nome da vida biológica. Ora, sabemos que esse tipo de vida  extrai seus elementos da matéria inorgânica do cosmos.  Daí, o cérebro anatômico,  enquanto tributário das certezas paranóicas (a verdade total) do Homem,  se revela um reles objeto de uso para cientistas de meia boca. Ao fim, tudo se esclarece numa pizza  no bar da esquina. O que estava em jogo era o poder das massas...

Antonio Moura

VANESSA DA MATA

O SOBREVIVENTE

Todos os desejos humanos de imortalidade contêm um pouco da mania de sobreviver. O homem não quer ficar apenas para sempre, ele quer ficar quando os outros já não estejam mais. Cada qual quer chegar a ser o mais velho e saber disto, e quando ele próprio já não existir as pessoas deverão continuar sabendo o seu nome.
A forma mais baixa de sobrevivência é a de matar. (...)

Elias Canetti -O sobrevivente in Massa e poder

NÃO ADIAR O FUTURO

Confessar-se, fingir, queixar-se, lamentar-se custa sempre muito. Cantar é grátis. E não só grátis - a gente enriquece os outros (...) O mundo dos fantasmas é o que não acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Ir adiante agarrando-se ao passado é arrastar consigo as correntes do forçado (...) Não há um de nós que não seja culpado de um crime: aquele, enorme, de não viver plenamente a vida.

Henry Miller - citado por D&G- O anti-édipo

POESIA DO DIA

en la lucha de clases
todas las armas son  buenas
piedras
noches
poemas

Paulo Leminski

A VIDA COMO ELA É - GRANDE Nelson Rodrigues!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

POR QUE O CÉREBRO MENTE? II

O cérebro MENTE porque a superposição  mentecérebro  é uma ficção. A mente não é visível. O cérebro é, ainda que por representação de imagens de laboratório.  A mente, que preferimos chamar de subjetividade, é formada por processos do desejo-produção  que se imiscuem no corpo.O cérebro,  parte do corpo, é  o  próprio espírito, se chamarmos espírito de pensamento.O pensamento,  prenhe de desejo,  é a materialidade de  um corpo movido por  intensidades múltiplas. Ninguém sabe o que pode um corpo, já dizia Espinosa. Ora, o corpo não é o organismo. Daí, a sua potência de viver  e  criar  irradia-se para além do que a consciência, o eu, a razão e o sujeito individuado pretendem.

Antonio Moura

MAIS DEVIRES

O paciente vive  entristecido pela Grande Máquina. Sua alegria  foi aniquilada  em plena  vigília.  Do nada.   Ninguém assume  a  autoria dos pequenos  crimes.  Eles   são  administrados em nome da  paz  de espírito.  Ora, o   espírito  também caga.  Avise  aos últimos  palhaços que  a    arte   foi  solapada em nome do ideal dos   homens  de branco.  Ao que  me consta, nada  mudou no sulco das  bocas. Elas falam rachando dentes.    Mastigam   auroras   nati-mortas.   Mas o   Rosto carrega  uma expressão justa, como negar? A  bondade natural dos  humanos.  Ó Lovecraft,  socorrei! Apenas uma   cidade  respirando um  arco-íris, manda por  favor...  Não falo por  mim. Por  mim, ó... Falo pelo que  não sou, falo  por  devires. Escutai   a  canção   do mundo... Você  dança?  O paciente sucumbe à  Ordem.  Por  favor, o senhor pode  me dizer  as  horas? Já vai  tarde o tempo dos  mestres, com todo  o  respeito.   Sonâmbulos da própria  dor,  como  falar  aos  que  não  falam? A  Grande Máquina é uma   pequena dose de benefícios a  curto e  médio   prazo. Ela  se  insinua na febre dos corredores infectos. Um susto, um sus.  Tudo é  contágio. Resistir à  morte,  querida, e fazer dessa vibração algo novo, será  possível? Talvez um devir-amante   imerso  em trepadas millerianas. Bicho,  perdoa  o jeito canino: o que  é necessário  para  viver por  viver?   Pacientes  são pacientes  demais.  Armaduras químicas, lições de casa, manuais de sobrevivência, coisas  simples, eles   são  normais. Eu queria um gosto de  sol  em você, em suas dores mais  intensas e  irremediáveis. Pena  que  a sombra dos quintais do passado  anuncie sessões de  tortura regadas à dinheiro. A entrega  é  às  oito. Todos estarão  lá, até o  chefe da  Facção Sinistra,  aquele  mesmo que  começou a seduzir  a multidão  com  truques de  falar  macio.  Não   tem jeito. Somos  inocentes radicais.

Antonio Moura

SÃO PAULO

AFETOS SÃO RELAÇÕES

A base essencial de nossa personalidade é a  afetividade. Pensar e agir são, por assim dizer, meros sintomas da afetividade. Os elementos da vida psíquica, sentimentos, idéias e sensações apresentam-se à consciência sob a forma de certas unidades que, numa analogia com a química, poderiam ser comparadas às moléculas.

C. G. Jung - do livro Psicogênese das doenças  mentais

ANARQUISMO TEORÉTICO

Dessa forma, a ciência se aproxima do mito, muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas do pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor. Chama a atenção, é ruidosa e impudente, mas só inerentemente superior aos olhos daqueles que já se hajam decidido favoravelmente a certa ideologia ou que já a tenham aceito, sem sequer examinar suas conveniências e limitações. Como a aceitação e a rejeição de ideologias deve caber ao indivíduo, segue que a separação entre o Estado e a Igreja há de ser complementada por uma separação entre o Estado e a ciência, a mais recente, a mais agressiva e mais dogmática instituição religiosa. Tal separação será, talvez, a única forma de alcançarmos a humanidade de que somos capazes, mas que jamais concretizamos.

Paul Feyerabend - do livro Contra o método

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A ARTE E A PESTE

A arte não é pacificadora. As formas e os símbolos são produções que tornam visível e multiplicam as forças e os conflitos reprimidos que, se liberados no espaço virtual do teatro, se mantém no seu estado de virulência pura. É isso que exerce sobre os "espectadores" um fascínio epidêmico, pois a supressão da individualidade funda as ações gratuitas e inúteis para a realidade.

Urias Corrêa Arantes - do livro Artaud - Teatro e cultura

COMBATE NAS TREVAS

Devir é tornar-se outro. É a  passagem, o processo, a linha entre dois pontos. Ora, o que vale na experiência de atender alguém?  Devir é criar. Sim, dá trabalho. Pode ser a coisa mais insignificante do mundo. Mas se essa coisa é pura mutação, ela traz o gosto do movimento .Na clínica da diferença, a atitude primeira é tornar-se o paciente sem sê-lo. Desfazer o próprio rosto, esquecer a história pessoal, desligar o diálogo interno, rasgar os clichês perceptivos, nivelar as hierarquias.  Busque  um encontro que fabrique linhas de potência. E só.  Isso segue  na contramão do exame de mentes cerebralizadas em formol. Não poderia ser diferente, eu sei. The wall existe. 

Antonio Moura

AMAZONAS - João Donato

O HORROR À LOUCURA

O poder psiquiátrico tem essencialmente por função ser um operador de realidade, uma espécie de intensificador de realidade junto à loucura. Em que esse poder pode ser definido como sobrepoder da realidade? (..) (...) É um regime mas é, ao mesmo tempo - e é esse um assunto sobre o qual insisti -, uma luta contra uma coisa que é a loucura, concebida, parece-me, no século XIX - qualquer que seja a análise nosográfica ou a descrição feita dos fenômenos da loucura -, concebida essencialmente como vontade em insurreição, vontade ilimitada. Mesmo num caso de delírio, é a vontade de crer nesse delírio, a vontade de afirmação desse delírio, a vontade no cerne dessa afirmação do delírio, é isso que é o alvo da luta que percorre, anima, ao longo de todo o seu desenrolar, o regime psiquiátrico.

M. Foucault - do livro O poder psiquiátrico

O AMOR FORA DE SI

A definição materialista do amor é uma definição de comunidades, uma construção de relações afetivas que se estende através da generosidade e que produz agenciamentos sociais. O amor não pode ser algo que se fecha no casal  ou na família; deve abrir-se para comunidades mais vastas. Deve construir, caso a caso, comunidades de saber e de desejo; deve tornar-sr construtor do outro. O amor é hoje fundamentalmente a destruição de todas as tentativas de fechar-se na defesa de algo que não pertence a si. Creio que o amor é a chave essencial para transformar o próprio em comum.

Toni Negri - do livro Exílio

A MÃE DA CRIANÇA

A mãe tem um poder absoluto sobre a criança nas suas primeiras fases não apenas porque sua vida depende dela, mas também porque ela mesma sente o mais veemente desejo de exercer constantemente este poder.A concentração deste prazer de domínio sobre uma criatura tão pequena lhe proporciona uma sensação de supremacia que dificilmente pode ser superada por qualquer outra relação normal entre os homens.

Elias Canetti -  do livro Massa e poder

MARISA MONTE

CONTAR ESTRELAS

Para começar, o sol é uma estrela absolutamente sem importância no sistema galáctico em que estamos situados. Se me perguntarem quantas estrelas tem uma galáxia - que é um conjunto de estrelas - eu posso dar uma ordem de grandeza que é fácil de calcular. Posso até mostrar como se faz isso,ou seja, não é absolutamente algo irrealizável. O que não posso é contar as estrelas do céu. Para vocês terem uma idéia, eu e um amigo fizemos um pequeno cálculo e concluímos que para se contar o número de estrelas - só na nossa galáxia - levaríamos 3.400 anos. Claro que desistimos...

Mário Novello - Os diferentes vazios e os diferentes  tempos da cosmologia 

DESPERSONALIZAÇÃO

Escrevemos o Anti-Édipo  a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos  hábeis pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, absolutamente por hábito. Para passarmos despercebidos.Para tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar.E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar.

Deleuze e Guattari - do livro Mil platôs - Introdução: Rizoma

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O CIUMENTO - UM PERSONAGEM CONCEITUAL

Evidentemente há muitos tipos de ciumentos. Mas 5 elementos conceituais , pelo menos, os unem: 1-o funcionamento de uma subjetividade egóica, ou seja, voltada ao próprio umbigo;  2-o sentimento (mais ou menos intenso)  de propriedade sobre o objeto do ciúme (pode ser o corpo, a mente, as idéias, o caráter,  etc); 3- a despotencialização  subjetiva às custas de uma linha existencial destrutiva e auto-destrutiva; 4-a submissão involuntária às instâncias do amor romântico, fantasioso, lamuriento e possessivo como padrão cultural conectado à  ordem familiar; 5-a busca obsessiva (e mórbida) de um território afetivo onde plugar o acontecimento-amar em tempos  niilistas do capitalismo aparentemente vencedor.

Antonio Moura

SALVADOR

SUBJETIVIDADE A-SUBJETIVA

O Virtual cria quando se atualiza, e o que ele cria é, sempre a subjetividade. Mas o virtual é também aquilo que se modifica e se transforma, atualizando-se. Logo, o tempo não é somente o que cria, mas sobretudo o que se cria e se ultrapassa. Desse ponto de vista, parece-nos que o alvo maior da obra de Bergson é compreender porque a subjetividade deve ser ultrapassada.(...) O importante, então, para que se possa pensar a gênese e o devir da subjetividade é fazer aparecer o Virtual (...)

André do Eirado Silva - Voltar as costas para o tempo: o problema da subjetividade em Bergson  in  SaudeLoucura - Subjetividade - nº 6.

UM USO LITERAL

Grande e revolucionário somente o menor. Odiar toda literatura de mestres. Fascinação de Kafka pelos serviçais e pelos empregados. Todavia, o que é interessante ainda é a possibilidade de fazer de sua própria língua um uso menor. Estar em sua própria língua como um estrangeiro é a situação do nadador de Kafka.

Deleuze-Guattari - Kafka: por uma literatura menor

FALA, VIRILIO...

Não precisamos do Estado. Com certeza não precisamos ser protegidos de nossas preocupações sobre algo que é uma condição de nossa existência: a morte. A morte do indivíduo, a morte da espécie. Porque "essa" é a justificativa militar. Um velho argumento. Por isso eu digo que estamos realmente na vida civil quando confrontamos a questão da morte. Daí meu interesse pela defesa popular, como cada homem é capaz de assumir a sua própria defesa.

Paul Virilio   do livro  Guerra pura : a militarização do cotidiano

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

EDIFÍCIO MASTER - documentário de Eduardo Coutinho


TERAPIAS DEPRESSIOGÊNICAS

A depressão tende a fazer com que você enfoque a si mesmo. O mesmo auto-enfoque que fazemos na terapia é, em si, um movimento depressivo. A terapia pode estar, ao mesmo tempo, provocando a depressão enquanto tenta curá-la, porque seus sintomas clássicos são o ressentimento, o fechar-se em si mesmo, a repetição.

James Hillman - do livro Cem anos de psicoterapia ... e o mundo está cada vez pior

SOBRE O EROTISMO

Nunca devemos esquecer que, apesar da promessa de felicidade que a acompanhou , a paixão começa por introduzir a perturbação e a desordem. Até a paixão feliz introduz uma tão violenta desordem que a felicidade que comporta, antes de ser uma felicidade desfrutável, é tão grande que é comparável ao seu contrário, ao sofrimento. A essência da paixão é a substituição da persistente descontinuidade por uma maravilhosa continuidade entre dois seres.

G. Bataille - do livro O erotismo

PARA DAR UM FIM AO JUIZO

Nietzsche soube destacar a condição do juízo: "a consciência de ter uma dívida para com a divindade", a aventura da dívida à medida que ela mesma se torna infinita, portanto impagável. O homem só apela para o juizo, só é julgável e só julga quando sua existência está submetida a uma dívida infinita: o infinito da dívida e a imortalidade da existência remetem um ao outro para constituir a "doutrina do juizo".

G. Deleuze - em Crítica e Clínica

domingo, 21 de agosto de 2011

LANTERNA DOS AFOGADOS


A CIÊNCIA É UMA INSTITUIÇÃO

Pessoalmente, eu não faria pesquisa financiada pelo, ou com aplicações óbvias no setor militar. Tentarei persuadir tantos colegas cientistas quanto puder no sentido de tomarem uma decisão ética e política semelhante. Mas, em última análise, numa sociedade militarista, tudo o que uma pessoa faz pode ser, e potencialmente será, passível de servir a fins militares. Se não queremos pesquisa orientada para a guerra, as decisões éticas individuais não são suficientes. Precisamos da decisão política de não financiar a pesquisa militar.

Steven Rose - do livro Para uma nova ciência

DESIMPREGNAR OS CONCEITOS

notou os olhos dele?

os fármacos da mente
chupam alegria

ESCREVER

É sempre fugindo às posições dominantes - na linguagem, no social, no desejo - que a obra se faz. O contrário de um autor, porque é preciso mesmo desaparecer de um certo modo. É na aliança com outras coisas e outras lutas que a obra dura, ressoa, contagia, provoca uma mutação subjetiva- encontra outras minorias (e já se percebe que não é uma minoria numérica) ao produzir ela mesma uma minoria ao fazer-se. Uma minoria não vem já feita, "ela se constitui sobre as linhas de fuga".

Janice Caiafa - Nosso século XXI - Notas sobre Arte, Técnica e Poderes

VITÓRIA DA CONQUISTA

SEM TEMPO

Existe uma psiquiatria hipermoderna?

(...) É no último quartel do século -anos que precederam a rotação da CID- 9 para a CID- 10, e sob a influência decisiva da nascente "Psiquiatria de Resultados", que opera-se um corte, digamos, uma ruptura epistemológica, vindo o saber psiquiátrico não mais balizar-se pela sua história e sim pela visão multiaxial, onde descrição, fenômeno e psicodinâmica cedem lugar às diretrizes diagnósticas.
É nesse engessamento teórico que o psiquiatra "se torna um burocrata", como disse o Prof. Valentim Gentile Filho, tornando o conceito em psiquiatria um artefato de consumo com obsolescência planejada. A angústia tem que ceder imediatamente. O diagnóstico deve ser feito ontem .
Não há tempo para mais nada. (...)

Bernardo Assis Filho - ex-presidente da Associação Psiquiátrica da Bahia - fragmento de artigo publicado em outubro/2007 no Jornal "Conflito" da APB.

QUAL DOENÇA?

Os distúrbios mentais não são doenças; são conciliações entre a imaturidade do indivíduo e as reações sociais reais, tanto apoiadoras como retaliadoras. Nesse sentido, o quadro clínico das pessoas mentalmente doentes varia de acordo com a atitude ambiental, mesmo quando a doença no paciente parece fundamentalmente inalterada.

D.W. Winnicott - Os doentes mentais na prática clínica - in O ambiente e os processos de maturação

sábado, 20 de agosto de 2011

TELEGRAMA - Zeca Baleiro

MICRO-ENTREVISTA

P- Você critica a psiquiatria.Por que continua psiquiatra?
R-Por que a psiquiatria "tocou" a loucura  e recuou assustada. Mas eu  não quero recuar.

CORAÇÃO VAGABUNDO - Caetano

POLÍTICAS DA SUBJETIVIDADE

Falar sobre política é operar a subjetividade dos tempos atuais. Na verdade, o conceito de política esvaziou-se em prol de modos de dominação imediatamente políticos. Daí, a política só se torna possível no meio onde isso se passa: o capital. Ele é um operador semiótico; produz um universo de sentido abstrato, mas concretizado em subjetividades individualizadas, "egoicizadas". O resultado é a vivência de um eu fascinado pelo capitalismo aparentemente vencedor, capitalismo sem opositores, e a impressão de que nada há e nada haverá fora do capital. O capital como causa de si mesmo.

A. Moura - Linhas da diferença em psicopatologia

CONVERSA DE PSIQUIATRA

Psi 1- Você  tá sabendo do novo remédio para esquizofrenia?
Psi 2 -Não. Me fale...

Psi 1 - Foi lançado no mês passado  nos EUA.  Enfim, a cura.
Psi 2 -Poxa, vamos comemorar...

Psi 1-Que comemorar, nada. Temos mais é que convencer os pacientes...
Psi 2- Como assim? Não entendi.

Psi 1- Colega, convencer os pacientes a usar o tal remédio é a nossa missão.
Psi 2- Mas eles não querem ser curados?

Psi1-Pois é, infelizmente eles não querem ser curados. Esta é, exatamente, a doença deles...
Psi 2 -Nós  conseguiremos convencê-los. 

Psi1 - Claro, claro.  Teremos o apoio de toda a sociedade.
Psi2- Sim, dos Laboratórios, das Farmácias... tanta gente... vai dar certo.

Psi 1- Perfeito.
Psi2 - Perfeito.

RECIFE

LINHAS DE FUGA

Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. George Jackson escreve de sua prisão. "É possível que eu fuja, mas ao longo de minha fuga, procuro uma arma". E Lawrence ainda: "Digo que a velhas armas apodrecem, façam novas armas e atirem no alvo". Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobrem mundos através de uma longa fuga quebrada.

G. Deleuze - Diálogos

O QUE É VER?

Mas como ver não é um ato natural para esse ser artificial em que o homem se tornou, ver sem artifício requer um grande esforço, a talvez toda uma ciência. Caeiro é o único ser humano capaz de ver naturalmente, sem esforço. Todos os outros precisam aprender a ver. Aprender a desaprender, como escreve Caeiro, para se ter acesso a uma visão espontânea e natural. Isso não equivaleria, de algum modo, a retornar à infância, à frescura e à ingenuidade primeira do olhar infantil?

José Gil - Diferença e Negação na Poesia de FERNANDO PESSOA

SÓCIO-PSICODRAMA NO SERVIÇO PÚBLICO - 7

Realizada a 7ª sessão.  Estiveram presentes todos os componentes.  O trabalho avançou no processo de diferenciação grupal. Ou seja, a prioridade desse momento é fortalecer os vínculos entre as pacientes e por extensão, estabelecer uma consistência afetiva necessária para o trabalho com os protagonistas que, por certo,  virão. Entenda-se protagonista "o que primeiro agoniza",  aquele que expressa em seu corpo, em suas vivências, o Drama Grupal.  Por extensão, este é   o Drama Coletivo. Desse modo,  além da circulação livre da palavra, foi feito um breve  jogo  sociométrico, pautado  na 1ª escolha `de quem é a "melhor companheira de grupo". O resultado foi um relaxamento das tensões à medida em que as  escolhas eram anunciadas. Houve duas reciprocidades (eu lhe escolhi e você me escolheu), registrando-se, pois, um esboço de percepção télica  na experiência atual.  A nível socio-dramático (papéis sociais), permaneceu, nas narrativas (em geral, intensas), o destaque para com os papéis de mãe e filho (a). Por fim, subjascente  a tudo isso,  a problemática sexual surgiu   aqui e ali em linhas enviesadas ( pouco claras). Tema   a ser trabalhado em outros  momentos...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

GRUPO CORPO

VERDADE DA LOUCURA

Nunca  a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.

M. Foucault - em Doença mental e psicologia

FALA, ARTAUD...

Eu mesmo estive num asilo de alienados durante nove anos e nunca senti a obsessão pelo suicídio, mas sei que cada conversa com um psiquiatra, pela manhã no horário de visita, me provocava o desejo de me enforcar ao compreender que não poderia degolá-lo a ele.

Antonin Artaud

O PACIENTE É UMA MULTIPLICIDADE

Mais uma vez, ressaltamos que que o coletivo não é o social. Bem mais! É o cosmos em sua expressão primeira, ou seja, a Terra. Um território da clínica será construído à medida em que o paciente for etiologicamente colocado como cidadão do mundo atual, um mundo da máquina, irreversivelmente da máquina. Sem romantismos, sem ilusões de retorno à natureza, sem crenças num  além-mundo (mesmo que esse exista, não é o caso), sem fixações ego-narcísicas e, principalmente, idolatrias, uma clínica das das multiplicidades    toma o paciente como multiplicidade. Esse é o truísmo necessário a a uma atitude que preceda a proliferação de técnicas e métodos de produção subjetiva individuada.

A. Moura - Linhas da diferença em psicopatologia

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

ROSA PASSOS

TRAIR

Escutar  um delírio:  som musical que  pode  ser  terrível. Ou não.   Música embriaga   até    corações  enrijecidos. Não  busque fórmulas, protocolos, cifras. Saia  de  si. Pense  contra  si.  A forma-psiquiatria não tem dono. Ela  é   dona de  nós  cegos  no momento de desembrulhar  um caso  difícil.  Tratar  além   do feijão  com arroz, tão  fácil, ainda  mais  se   o feijão com arroz  for  fabricado  em série. Instituir   a contra-instituição sem binarismos  não é  fácil, sabemos.  Chegar ao não-lugar da  traição incessante.  A coisa toda vem do  século  XIX.  É  uma  fraude cuidadosamente preparada  em  pequenos  frascos. Todos acreditam. Um dia, ele  entra  no consultório  e  senta-se  na cadeira  do paciente. Não  se trata  de uma “inversão de papéis” ao  jeito  do psicodrama. Isso seria  impossível e por  demais  humanístico. Trata-se da   desordem  infiltrada no  tecido   da    ordem asséptica. O psiquiatra é o paciente que  resiste ao funcionamento linear da  entrevista. Pergunta  se  há  consciência. Não  há. Descobre  que o cérebro  é uma instituição instituída desde a forma de falar sozinho. Ensaia  solilóquios  fugidios. A essa  altura, se  rompem  identidades. Escutar  o delírio é olhar as vozes e  ouvir o tempo  que  não passa... e já passou. Trair é  inventar.

Antonio Moura - do livro "Trair a psiquiatria" a ser lançado em outubro de 2011, em Vitória da Conquista, Ba.

SEM CULPA

Quando o psiquiatra  prescreve remédios, ele não está só. Instituições  sociais apóiam e autorizam o ato. O psiquiatra é, assim,  a via terminal subjetiva  de um agenciamento de forças que o ultrapassa enquanto pessoa, indivíduo, técnico. Não há culpa.

A. Moura

GLASS

ATENDIMENTO PRAGMÁTICO

Paciente- Dr., eu não estou doente.
Psiquiatra -Você está doente.

Paciente-Sim, senhor.
Psiquiatra-É para o seu bem.

Paciente- Sim, senhor.
Psiquiatra-A receita...

Paciente- Tem na farmácia?
Psiquiatra-Só na Smith.

Paciente- Ela é boa?
Psiquiatra-A melhor da cidade.

Paciente-Obrigado, doutor.
Psiquiatra-O próximo...

A ÉTICA, A CRIAR

A  ética é uma prática, uma ação. "Pensar" sobre a ética é já submetê-la ao estilo acadêmico do pensar representativo, reflexivo, idealista. Manuais de ética. Códigos de ética. Jogue tudo isso fora. Sociedade dos poetas mortos. O campo da saúde mental "exige" a construção de éticas. Não há fórmulas. Arrisque. Ou submerja  no mofo erudito da psiquiatria canônica. Afinal, ela é uma referência de verdade, mesmo que  driblando  a  verdade. 

Antonio Moura

A QUESTÃO DO DEVIR

O universo dura. Quanto mais aprofundamos a natureza do tempo, mais compreendemos que a duração significa invenção, criação de forma, elaboração contínua do absolutamente novo.

H. Bergson - A evolução criadora

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

ENQUANTO ISSO, NUM CAPS DA VIDA...

Paciente- Dr., você é o meu rei-médio...
Psiquiatra- (sorrindo)...

DR. FANTÁSTICO - Kubrick


O ASSASSINO ERA O ESCRIBA

Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito
inexistente. 
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adver-
bial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas exple-
tivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.

P. Leminski

O SILÊNCIO FALA

Quando alguém se submete à análise, acredita falar e aceita pagar por esta crença. Na verdade, não se tem a menor chance de falar. A psicanálise é inteiramente construída para impedir as pessoas de falarem e para lhes retirar todas as condições de enunciação verdadeira.(...) (...) Toda a psicanálise está construída sobre a forma liberal-burguesa do contrato; mesmo o silêncio do psicanalista representa o máximo de interpretação que passa pelo contrato e o ponto onde este culmina.

G. Deleuze-  Quatro proposições sobre a psicanálise

terça-feira, 16 de agosto de 2011

QUAL LOUCURA?

Ao relatar as circunstâncias que provocaram minha internação neste manicômio, estou ciente de que minha atual situação pode lançar dúvidas quanto à autenticidade da narrativa. Infelizmente, a maioria das pessoas tem uma visão limitada que as impede de analisar com paciência e discernimento certos fenômenos isolados, vistos ou percebidos por uns poucos sensitivos e que não pertencem à experiência comum. Mas aqueles que possuem mentes mais abertas sabem muito bem que não existe uma fronteira definida entre o real e o irreal; e que as coisas são como são apenas graças aos meios individuais, sejam físicos ou mentais, de que dispomos para apreendê-las; mas o materialismo prosaico da maioria condena como loucura qualquer vislumbre de uma percepção maior, capaz de penetrar através do véu do empirismo óbvio.

H.P. Lovecraft - O túmulo

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

LUIZA - Jobim


PERDER A FORMA HUMANA

Enquanto você achar que é a coisa mais importante do mundo, não pode apreciar realmente o universo em volta de si. É como um cavalo com antolhos: só o que vê é você separado de tudo o mais.

C. Castaneda - Viagem a Ixtlan

MUNDOS ESTRANHOS

Na penumbra suave do fim da tarde, entrei pela primeira vez no túmulo da colina abandonada. Estava envolto num halo mágico e meu coração batia exultante, de uma forma que eu poderia descrever como doentia. Quando fechei a porta atrás de mim e comecei a descer os degraus molhados, iluminados pela luz da minha vela solitária, tive a impressão de já conhecer o caminho; e embora a vela crepitasse com o vapor abafado do lugar, sentia-me estranhamente em casa naquele ambiente que cheirava a mofo e ossos.

H. P. Lovecraft -  trecho do conto O túmulo

SANKAI JUKU

DEPRESSÃO SUB-CLÍNICA

Existe uma forma de depressão que não se expressa clinicamente. Ou melhor, não é percebida, captada, mesmo com os métodos positivistas (escalas de humor, entre  outros...) da psiquiatria atual. Podemos chamá-la de sub-clínica, na medida em que o paciente não se sente deprimido, e  daí não vê motivo para buscar ajuda. Ora , para analisar   esse fenômeno (se é que existe), será preciso  sair da órbita  biomédica  e ir ao dado  elementar  da vivência  múltipla. Ou seja, tocar nos afetos que são o próprio corpo, aí  onde  a depressão se instala e  segue o curso de uma destruição silenciosa e  vital. Mas  a "depressão" não é uma coisa. Ela é, sobretudo, o conjunto das  condições de vida naturalizadas  na  sociedade contemporânea. Então, falar de  depressão sub-clínica é falar sobre o que a antecede  e a mantém...  palavras-de-ordem impressas  em  sinapses. O cérebro, mais uma vez, mente...

A. Moura

ESQUIZO-REICH

O fato é que o homem esquizofrênico, é, em média, muito mais honesto do que o homo normalis, se se aceita a franqueza de expressão como indicativo de honestidade. Todo bom psiquiatra sabe que o esquizofrênico é perturbadoramente honesto. A pessoa esquizofrênica vê através da hipocrisia e não esconde o fato. Tem uma excelente compreensão das realidades  emocionais, em evidente contradição com o homo normalis.

W. Reich - do livro Análise do caráter

O PODER BUSCA IDENTIDADES

O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da representação. Mas o mundo moderno nasce da falência da representação, assim como da perda das identidades, e da descoberta  de todas as forças que agem sob a representação do idêntico.

G. Deleuze - Diferença e repetição

domingo, 14 de agosto de 2011

AOS NOSSOS FILHOS

SORRIR

miguel é um bebê de 5 meses
que  acorda sorrindo


olho em volto e não encontro nada 
que sustente essa alegria
mas tampouco que a impeça
de  alumiar o dia


a alegria de miguel se sustenta 
em si mesma
                     
a vida insiste
a alegria é  seu corpo
ou vice-versa


mas chega de conversa
vamos cantar

GLÓRIA FEITA DE SANGUE de Stanley Kubrick - sequência final

ACREDITAR NO MUNDO

Mais do que de processos de subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisas que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar. Ou se poderia falar simplesmente do cérebro: o cérebro é precisamente este limite de um movimento contínuo reversível entre um Dentro e um Fora, esta membrana entre os dois. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pensar não se explicam pela microcirurgia; ao contrário, é a ciência que deve se esforçar em descobrir o que pode ter havido no cérebro para que se chegue a pensar de tal ou qual maneira. Subjetivação, acontecimento ou cérebro, parece-me que é um pouco a mesma coisa.

G. Deleuze - do livro Conversações

sábado, 13 de agosto de 2011

O TRÁGICO É ALEGRIA PURA

Os trágicos pertencem a outra raça, comunicam-se  à deriva dos códigos, pressentem-se fora das marcas, escandalizam os laços, as alianças e os parentescos. Os trágicos restituem a terra ao seu segredo, ao horror e aos jardins, e no "corpo" põem  suas espessuras de hemorragias e sol. Eles não consentem as "sublimações", com todos os  seus rebaixamentos.
A morte dos "homens" ou nos "homens", vivida como catástrofe, não é a morte -permanência dos heróis que do furor à pino (e abismal), nutre e aponta suas ações assassinas e criadoras. As teorias da sublimação ( bíblicas, hegelianas ou psicanalíticas ) vêem   nisso a origem das morais e do trabalho e por isso mesmo guardam da terra, da vida e da paixão uma filosofia deplorável. Estas  "coisas" lhe parecem "sujas", "baixas", e devem ser vencidas. 
Não é verdade. A terra , a vida e a paixão devem ser afirmadas e hoje sabemos que  nesta afirmação pomos à luz um universo de práticas e forças que até então temíamos.E temíamos porque a política  exitosa dos "fracos" (Nietzsche) havia fantasmado negativamente estes pendores da paixão
Que seja benvindo e contundente o pensamento trágico, o horror, a loucura, as artes, a desgraça e a beleza.

Carlos Henrique de Escobar - O gato à deriva da Razão