quarta-feira, 26 de outubro de 2011

 A DESNATURALIZAÇÃO DO PACIENTE
                                                                      

                                                                                                Antonio Moura

A  clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica  que incide sobre o  trabalho com o paciente. Em termos  empíricos, o próprio  paciente torna-se  um produto de forças institucionais; elas  fabricam a clínica e por extensão o paciente.  Tais forças  se explicitam na  psiquiatria,  são  a  psiquiatria [1].  No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas   se concretizam  como rostidade  farmacológica.  É  um regime de aparência corporal,  semiótica,   que traça uma  linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses,  por excelência,    são  objeto   desse processo  de  rostificação. A cena extremada,  o paciente  impregnado  por   neurolépticos  (alterações  extra-piramidais)  e outros  signos  menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer  psiquiatria nos dias atuais tem  a opção farmacológica como  palavra de ordem: prescreva mais  e mais  remédios químicos. Isso não  vale apenas   para os que estão científico  e   juridicamente   autorizados a  fazê-lo, mas para todos os  que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a  chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam,  todos estão medicados,   medicalizados   numa  produção subjetiva  inconsciente e incessante. Isso é de uma  tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem  programada se impõe como desejo psiquiátrico  único e  totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo  de alguém.  Ao contrário,  é coletivo  e só  se mostra   individual   como  produto de um segmento dominante. A  forma-psiquiatria é  este   segmento dominante no funcionamento da equipe.  Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço  da luta antimanicomial [2] . Afinal,   a psiquiatria mantém um  status   baseado  na medicina,   o  que   opera   efeitos concretos,   entre eles, o da farmacologização  subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que    funciona em oposição ao rosto   normal [3].  Quem o fabrica? O autor    não  é   identificável.   Uma máquina binária sem forma  (médico-paciente)   é  implantada no seio  da clínica.  Até   fins  dos anos 80  (século XX),  apenas o  louco  dito  psicótico era tornado  “rosto”  pelo uso de  fármacos. Hoje essa manobra atinge  a todos, incluindo os não psicóticos   e   até os  normais.  As pesquisas neuro-científicas  produziram um cérebro-mente, o que  se reflete no uso continuado  de  remédios  e   associações medicamentosas. É óbvio  que o  fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo,  isso não significa  obter uma cura ou  sequer uma melhora. A somatória dos  sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí    o ato de medicar percorrer   um roteiro implícito. Ora,  é muito raro  que o paciente apresente apenas um sintoma. Então  valeria   a  equação “vários sintomas = vários fármacos”?    Não faltam  psicofármacos  para  embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo  rostificado  como um “ser-que-demanda-remédio”,  produzindo  a psiquiatria  e  o psiquiatra num circuito de re-alimentação continua.  A máquina se fecha: uma   produção/produto/produção     tecnicamente monitorada é o  trabalho do psiquiatra   clínico,   o qual     pode   até ser   valorizado como ação    visando   o bem do paciente. Isso não impede  que se considere o circuito do fármaco    danoso  à pesquisa sobre a loucura. É que esta não se restringe a nenhuma patologia específica. Ela  é  o despedaçamento do eu e da consciência  enquanto  entidades reguladoras   dos códigos sociais. É também, sob  o olhar biomédico, um  cérebro   funcionando errado.  Mas  não   existe  definição possível nem   semiologia psicopatológica  que esgote  a descrição do seu perfil.   Trata-se  do  caos das significações dominantes, sem que isso implique em designações pejorativas e/ou niilistas.   Assim,  não só o louco é  convertido à categoria de doente  e  o não doente  convertido à categoria de louco,  mas  a psiquiatria   converte-se à   ciência e faz um  trabalho de rescaldo social.  O     que está em jogo    não é o psiquiatra-pessoa. Este obedece, só obedece  (mesmo  sem    saber). A questão  é outra.   São    as relações institucionais,   a   materialidade do ato clínico. O   eu-consciência  sustenta   a psicopatologia. Hoje, a   equação se  alarga.  Temos eu=consciência=cérebro,   base  ontológica    para se passar remédios.   Na ausência  de   uma teoria  psiquiátrica  da subjetividade,  quem responde ao psiquiatra é o “eu-consciência-cérebro”. Este  é  o  “sujeito”.    Eu-consciência para o manejo psicoterápico cognitivista. Cérebro para o  farmacológico, não necessariamente  nesta ordem.   
                          Voltemos à rostidade. O paciente  é vestido  pela moral (o eu-consciência) e pela química (o  cérebro). Passa a ser   um produto-organismo   disponível para  ser tratado, consertado, adaptado, normalizado. É o   trabalho (duro)  do psiquiatra na linha de frente.  Há,  porém,  outras  linhas   que  chamamos de devires. Elas não  fabricam  o paciente, mas as condições para alguém deixar de ser paciente. Tal perspectiva inclui o   psiquiatra  em    outra   concepção de  doença. Destacamos: 1-O paciente não  é um individuo, e sim uma multiplicidade;    é  irredutível  ao  eu e    à  consciência,  mas    plugado  no   coletivo. É   do  mundo,  é  o mundo.    2- Na entrevista, a sua fala chega misturada a   falas  não verbais  (semióticas);  mil   falas    estão    presentes   em   uma  fala.  3- A  inteligibilidade  do  discurso  está inscrita na  Vivência, e não  o contrário; 4- O uso    prévio  e  exclusivo   de  fármacos  -  por  aparelhos  de medicar  -   produz um rosto-clichê  que  enevoa  a percepção  clínica; 5- Antes de “ser”  um diagnóstico, o paciente é um processo afetivo; pode estar abortado, mas  é um processo;  6- O delírio (se  houver) e o  comportamento   estão   submetidos ao  contexto  onde ele  vive.  Como então, funcionam essas  linhas?  
                           De início,  assinalamos  que  o   psiquiatra  não   é (ou  não  deveria)    ser  um  passador  de remédios,  um  remedeiro. Ao  contrário, pela  via  do  Encontro, ele busca percutir  linhas  de  vida,  mesmo  que  elas não  se mostrem  de  pronto. Existe  a escuta   expectante   das multiplicidades.  São  falas   que  podem  ser decompostas  em  territórios  existenciais  delicados.  Dobras   subjetivas  para  além     do  olhar-clichê. Por  isso, é preciso  ver  ao  invés de enxergar.  Ver o paciente   como “não paciente”   sem que  isso  seja  uma negação  da realidade. A relação é, pois,   não  hierárquica. A  suposta  ajuda  construída  na  linha  dos devires   torna-se desejo de  ser   o  outro  sem  sê-lo. Não  uma  pessoa  à  frente, mas  linhas  entrelaçadas,  umas  se expressando, outras não. Explorar  os paradoxos na  cena  do  Encontro  implica  em jogar papéis  sociais,  coletivos,  inumanos.   A  questão  passa a ser buscar formas  de expressão. Pode  ser  pela  fala, pelo silêncio, pelo  corpo, pelas  atitudes,  etc.  Importa   a expressão e  a potência de criar que  lhe  é correlata.O paciente cria?   O  que?  Como?  Para que?  Onde?Os devires  invadem o  viver  sem que  os  especialistas  imponham uma ordem. O que se passa? O psiquiatra enlouquece  sem estar louco ou  ser um  doente,  nada  disso. O ponto de  subjetivação é o desejo  como expressão  de modos  de  viver  fora das  coordenadas  estáveis da  razão.  Isso   costuma incomodar as  estruturas   do  eu.  Devir é  expandir-se,    diferenciar-se.  Não  há,  contudo,  um suporte  institucional    para tais  ações.  Elas  arriscam  no  vácuo  o recado   de  uma    novidade  incerta. O   paciente   sem   rosto,   a   vida subjetiva    se  mostrando    às  micro-sensibilidades   que  circulam    entre o  paciente  e  o psiquiatra.  Escutar,  escutar    não  sob     uma  grade   edipiano-cerebral,   mas  à    espreita   do  novo,  do inesperado,  do  indeterminado, do  bizarro.  O  acontecimento  é  uma   linha  de perigo  e   também  a passagem.  Examinar  um  paciente  é  encontrá-lo  no seu  mundo, por mais  longínquo   que  seja.  Isso   exige    tempo,  paciência  e acima  de tudo,  ótimas  condições  de trabalho [4].  Uma  ética do  Encontro  precede   toda  técnica. A  desnaturalização  do  paciente  é  correlata ao  desaparecimento  do  eu-psiquiatra [5].  Este se torna  outra  coisa à  serviço  da  diferença,  uma  dobra existencial  que  se  desdobra  em  outra,  em outras,  em  outros.  
                                                                                                                                                                            



[1] O  caráter  técnico-científico  da  psiquiatria é  tributário dessas  forças.
[2] Observa-se no  Brasil  atual  uma  oposição  (não  sem  certa animosidade)  entre  psiquiatras  e  “defensores” da  luta  anti-manicomial.
[3] O  rosto  normal  é  o   do  organismo  cognitivo e funcionalmente  correto,  tal  como  busca   a  terapia  cognitivo-comportamental.
[4] Referimo-nos às organizações capsianas,  tanto  à  nível das  condições  materiais  quanto às  salariais.
[5] O  que  não  significa   o desaparecimento  da  psiquiatria...  ao contrário,  falamos de  “outra”  psiquiatria.

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