A clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica que incide sobre o trabalho com o paciente. Em termos empíricos, o próprio paciente torna-se um produto de forças institucionais; elas fabricam a clínica e por extensão o paciente. Tais forças se explicitam na psiquiatria, são a psiquiatria [1]. No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas se concretizam como rostidade farmacológica. É um regime de aparência corporal, semiótica, que traça uma linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses, por excelência, são objeto desse processo de rostificação. A cena extremada, o paciente impregnado por neurolépticos (alterações extra-piramidais) e outros signos menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer psiquiatria nos dias atuais tem a opção farmacológica como palavra de ordem: prescreva mais e mais remédios químicos. Isso não vale apenas para os que estão científico e juridicamente autorizados a fazê-lo, mas para todos os que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam, todos estão medicados, medicalizados numa produção subjetiva inconsciente e incessante. Isso é de uma tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem programada se impõe como desejo psiquiátrico único e totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo de alguém. Ao contrário, é coletivo e só se mostra individual como produto de um segmento dominante. A forma-psiquiatria é este segmento dominante no funcionamento da equipe. Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço da luta antimanicomial [2] . Afinal, a psiquiatria mantém um status baseado na medicina, o que opera efeitos concretos, entre eles, o da farmacologização subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que funciona em oposição ao rosto normal [3]. Quem o fabrica? O autor não é identificável. Uma máquina binária sem forma (médico-paciente) é implantada no seio da clínica. Até fins dos anos 80 (século XX), apenas o louco dito psicótico era tornado “rosto” pelo uso de fármacos. Hoje essa manobra atinge a todos, incluindo os não psicóticos e até os normais. As pesquisas neuro-científicas produziram um cérebro-mente, o que se reflete no uso continuado de remédios e associações medicamentosas. É óbvio que o fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo, isso não significa obter uma cura ou sequer uma melhora. A somatória dos sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí o ato de medicar percorrer um roteiro implícito. Ora, é muito raro que o paciente apresente apenas um sintoma. Então valeria a equação “vários sintomas = vários fármacos”? Não faltam psicofármacos para embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo rostificado como um “ser-que-demanda-remédio”, produzindo a psiquiatria e o psiquiatra num circuito de re-alimentação continua. A máquina se fecha: uma produção/produto/produção tecnicamente monitorada é o trabalho do psiquiatra clínico, o qual pode até ser valorizado como ação visando o bem do paciente. Isso não impede que se considere o circuito do fármaco danoso à pesquisa sobre a loucura. É que esta não se restringe a nenhuma patologia específica. Ela é o despedaçamento do eu e da consciência enquanto entidades reguladoras dos códigos sociais. É também, sob o olhar biomédico, um cérebro funcionando errado. Mas não existe definição possível nem semiologia psicopatológica que esgote a descrição do seu perfil. Trata-se do caos das significações dominantes, sem que isso implique em designações pejorativas e/ou niilistas. Assim, não só o louco é convertido à categoria de doente e o não doente convertido à categoria de louco, mas a psiquiatria converte-se à ciência e faz um trabalho de rescaldo social. O que está em jogo não é o psiquiatra-pessoa. Este obedece, só obedece (mesmo sem saber). A questão é outra. São as relações institucionais, a materialidade do ato clínico. O eu-consciência sustenta a psicopatologia. Hoje, a equação se alarga. Temos eu=consciência=cérebro, base ontológica para se passar remédios. Na ausência de uma teoria psiquiátrica da subjetividade, quem responde ao psiquiatra é o “eu-consciência-cérebro”. Este é o “sujeito”. Eu-consciência para o manejo psicoterápico cognitivista. Cérebro para o farmacológico, não necessariamente nesta ordem.
Voltemos à rostidade. O paciente é vestido pela moral (o eu-consciência) e pela química (o cérebro). Passa a ser um produto-organismo disponível para ser tratado, consertado, adaptado, normalizado. É o trabalho (duro) do psiquiatra na linha de frente. Há, porém, outras linhas que chamamos de devires. Elas não fabricam o paciente, mas as condições para alguém deixar de ser paciente. Tal perspectiva inclui o psiquiatra em outra concepção de doença. Destacamos: 1-O paciente não é um individuo, e sim uma multiplicidade; é irredutível ao eu e à consciência, mas plugado no coletivo. É do mundo, é o mundo. 2- Na entrevista, a sua fala chega misturada a falas não verbais (semióticas); mil falas estão presentes em uma fala. 3- A inteligibilidade do discurso está inscrita na Vivência, e não o contrário; 4- O uso prévio e exclusivo de fármacos - por aparelhos de medicar - produz um rosto-clichê que enevoa a percepção clínica; 5- Antes de “ser” um diagnóstico, o paciente é um processo afetivo; pode estar abortado, mas é um processo; 6- O delírio (se houver) e o comportamento estão submetidos ao contexto onde ele vive. Como então, funcionam essas linhas?
De início, assinalamos que o psiquiatra não é (ou não deveria) ser um passador de remédios, um remedeiro. Ao contrário, pela via do Encontro, ele busca percutir linhas de vida, mesmo que elas não se mostrem de pronto. Existe a escuta expectante das multiplicidades. São falas que podem ser decompostas em territórios existenciais delicados. Dobras subjetivas para além do olhar-clichê. Por isso, é preciso ver ao invés de enxergar. Ver o paciente como “não paciente” sem que isso seja uma negação da realidade. A relação é, pois, não hierárquica. A suposta ajuda construída na linha dos devires torna-se desejo de ser o outro sem sê-lo. Não uma pessoa à frente, mas linhas entrelaçadas, umas se expressando, outras não. Explorar os paradoxos na cena do Encontro implica em jogar papéis sociais, coletivos, inumanos. A questão passa a ser buscar formas de expressão. Pode ser pela fala, pelo silêncio, pelo corpo, pelas atitudes, etc. Importa a expressão e a potência de criar que lhe é correlata.O paciente cria? O que? Como? Para que? Onde?Os devires invadem o viver sem que os especialistas imponham uma ordem. O que se passa? O psiquiatra enlouquece sem estar louco ou ser um doente, nada disso. O ponto de subjetivação é o desejo como expressão de modos de viver fora das coordenadas estáveis da razão. Isso costuma incomodar as estruturas do eu. Devir é expandir-se, diferenciar-se. Não há, contudo, um suporte institucional para tais ações. Elas arriscam no vácuo o recado de uma novidade incerta. O paciente sem rosto, a vida subjetiva se mostrando às micro-sensibilidades que circulam entre o paciente e o psiquiatra. Escutar, escutar não sob uma grade edipiano-cerebral, mas à espreita do novo, do inesperado, do indeterminado, do bizarro. O acontecimento é uma linha de perigo e também a passagem. Examinar um paciente é encontrá-lo no seu mundo, por mais longínquo que seja. Isso exige tempo, paciência e acima de tudo, ótimas condições de trabalho [4]. Uma ética do Encontro precede toda técnica. A desnaturalização do paciente é correlata ao desaparecimento do eu-psiquiatra [5]. Este se torna outra coisa à serviço da diferença, uma dobra existencial que se desdobra em outra, em outras, em outros.
[1] O caráter técnico-científico da psiquiatria é tributário dessas forças.
[2] Observa-se no Brasil atual uma oposição (não sem certa animosidade) entre psiquiatras e “defensores” da luta anti-manicomial.
[3] O rosto normal é o do organismo cognitivo e funcionalmente correto, tal como busca a terapia cognitivo-comportamental.
[4] Referimo-nos às organizações capsianas, tanto à nível das condições materiais quanto às salariais.
[5] O que não significa o desaparecimento da psiquiatria... ao contrário, falamos de “outra” psiquiatria.
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