PENSAR AS DEPRESSÕES
As depressões sub-clínicas tem aí um lugar importante. Escapam da grade psicopatológica clássica e se expressam socialmente em múltiplos papéis, máscaras insondáveis. Uma cultura da depressão configura a depressão como tijolo onde se apóiam as ações cotidianas de manutenção do tempo. Corpos encadeados em séries familiares, escolares ou médicas. O organismo deprimido é um corpo que perdeu as conexões com o exterior, com o fora, com as forças ativas, com o inconsciente produtivo, com o acontecimento, com o Isso. Significa dizer que seus contornos seguem os estratos onde o desejo estanca a produção de si. Os estratos são estabelecidos pelos órgãos. Assim, a depressão ataca os órgãos e por extensão a organização dos órgãos. Se a depressão pode ser considerada uma doença no sentido médico, ela é uma doença dos órgãos submetidos a um comando central que é do organismo. Ora, entre todos os órgãos, um está numa situação especial em relação às forças coletivas. É o cérebro. Ele se coloca no limite da relação do homem com a natureza que o precede. Assim, as alterações passíveis de modificação mais rápida são as do cérebro. O campo neuro-químico ilustra bem essa hipótese. Um paciente deprimido tem o cérebro deprimido. O uso de fármacos nesse tipo de depressão é aceito e promovido como o tratamento mais adequado. Isso significa que ele ataca a depressão em sua alteração mais objetiva: os neurotransmissores. O pressuposto epistemológico é o de que “a depressão é um problema no cérebro” e assim deve ser corrigida. Outros tratamentos como a Estimulação Magnética Transcraniana ou o antigo ECT obedecem a lógica do cérebro avariado . Ainda assim, não se sabe ao certo o mecanismo de ação desses dispositivos. Mas nada há de errado em trabalhar com os recursos disponíveis para aliviar o sofrimento humano ou até mesmo salvar vidas como nos casos de suicidas potenciais. A questão passa por outro registro, o do corpo desejante e por extensão pelos modos de subjetivação. As depressões “biológicas” são um caso de subjetivação inscrita nos estratos físico-químicos do organismo. Daí, alguns dados clínicos lhe caracterizam: 1- Os pacientes tendem à inibição psicomotora severa, às vezes chegando à passividade extrema nos casos (raros) de catatonia. 2-O contato em termos de “feeling” do terapeuta costuma se aproximar das psicoses; a antiga psicose maníaco-depressiva atesta esse “parentesco” clínico-etiológico. 3- O desencadeamento dos episódios não segue uma lógica de compreensibilidade da consciência; ou seja, os sintomas aprecem muitas vezes sob “céu azul”; tudo vai bem e tudo vai mal. 4- nos períodos de remissão do quadro, a adesão ao tratamento é difícil. Estes 4 dados reforçam a hipótese de uma depressão com traços fásicos e uma subjetividade com estilo psicótico. A alternância com a mania não é rara. Parece, pois, uma doença encaixada no paradigma médico. Essa lógica epistemológica criou um modelo único para as depressões: o bio-médico. Melancolia, depressão endógena, depressão psicótica, psicose depressiva, transtorno bipolar, depressão recorrente, são nomes para designar o humor como uma secreção, a sua alteração e a possibilidade de influir, com remédios químicos, sobre a produção de serotonina e outros neurotransmissores. Nasce a depressão entificada, essencializada como doença incurável ou só controlável. Ela se afirmou na última década do século passado como O transtorno mental. A psiquiatria recolheu os frutos. Os neurocientistas contribuíram com sua parcela de cientificidade e fé. Então, o modelo de depressão da psiquiatria é de cunho biologicista, ainda que os manuais considerem o tripé etiológico bio-psico-social ou a psicoterapia como coadjuvante ao fármaco. Se a depressão é vista como estando “dentro” do cérebro, ou de origem cerebral, isso se torna um axioma. Sim, em geral há melhora do quadro sintomático, mormente nas depressões graves. E as outras depressões? (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
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