terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SEM RAZÃO

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
-Supondo o espírito humano uma  vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia (...)

Machadao de Assis - do livro O alienista

ROSTIDADES

muita gente militando pela paz
muita gente mesmo
sentada no umbigo do mundo
centrada no umbigo de si

militando pela paz
muita gente boa
muita gente mesmo

SUB-COMANDANTE MARCOS

ENCONTRAR...                                 


Usamos o conceito de vivência articulado aos problemas da clínica psicopatológica. Esta  se compõe de linhas do desejo (afetos) e linhas do pensamento (crenças). Assim, o paciente, antes  de tudo,  sente e   acredita. Sua  vivência observada na clínica não é  A vivência, mas uma vivência ou vivências que  se expressam em signos  nem sempre significantes. Tal perspectiva faz do exame  psíquico um Encontro, podendo este ser  bom ou mau  a depender dos afetos e das crenças postos  em jogo. Isso  requer  do técnico entrar em contato muitas  vezes com um mundo que  compreende algo incompreensível à consciência. Afeto e pensamento, desejos e crenças são territórios existenciais que  fazem viver. As vivências  são singularidades. O Incompreensível (“por que  ele  quer morrer”? ou “ele acredita nisso?”, etc) não remete  a uma doença ou transtorno (o  que dá no mesmo), mas antes  a   processos de vida que se expandem em linhas  arriscadas  e concretas. Considerar desse modo as vivências implica  em situar o paciente para  além do eu e  substitui-lo pela vivência não médica, não psicológica, não humanizada. Ele  vive o acaso, o desconhecido e o indeterminado, ainda  que em pedaços e  fora  da consciência. Tudo isso pode  ser intuído na expressão plural dos sintomas. Não há  quadro psicopatológico estável, essencial, natural ou definitivo.Os afetos preenchem as crenças e as crenças  expressam os afetos. Muitos  afetos, bem como muitas  crenças, não são classificáveis, não remetem a um código. Outros prevalecem no perfil de determinada síndrome, até  parecendo ser  exclusivos, como nos caso das depressões. Ora,  o exame  do paciente costuma ser mediado por  subjetivações  psiquiátricas e psicológicas encardidas em seu organismo... A tarefa do Encontro passa  a ser  então trair a semiologia instituída (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria                           

OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

VIAGENS DE MIGUEL

Miguel, com 10 meses e 20 dias, muitas vezes não brinca com os brinquedos industriais. Há momentos  que até os rejeita, dando-lhes  um tapa de desprezo... kkk.  Ou seja, prefere uma porta, um armário, uma fechadura, um molho de chaves, os livros  do papai, os cabelos da mamãe, uma tomada elétrica, o computador,  etc, etc, para transformar esses objetos  em brinquedos ao seu bel prazer e tempo.  É que  tal  conversão dura, dura muito à medida em que  ele  vai  criando  novos arranjos das peças  sob o poder de  suas mãozinhas ágeis. Não posso negar que é um desafio para o adulto acostumado ao reino do Mesmo e do Semelhante.  No entanto, é instigante e comovente   seguir esse processo de  frescor existencial  diante do mundo. Talvez a atitude de admiração frente à Realidade (referida pela filosofia) seja exatamente o que Miguel empreende com alegria e energia inesgotáveis.

Antonio Moura

AFRICAMENTE

A NATUREZA DO PENSAMENTO

O positivismo organicista encarregou-se de situar o pensamento como uma espécie de secreção cerebral, para  a qual acorrem  os médicos e  fac-símiles, na ânsia  de totalizar o organismo humano.  Mas  o pensamento não é totalizável, ele, o  que circula em outros corpos além do humano, increvendo-se  em linhas irredutíveis a formas estáveis  ou árvores bem desenhadas. Aprendemos com Deleuze-Guattari que o pensamento  “não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada (...) (...) muitas pessoas tem uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore”    . Sendo assim,  o pensamento segue caminhos ou linhas  indeterminados por um centro organizador que seria o eu, por exemplo. Ele vai além do que se compreende  como pessoa individual. Um dueto interpessoal conta com multi-determinações do pensar que vêm de todos os lados para  inscrições na superfície  onde a fala se dá.  O pensamento como “pensar”  é  o  acontecimento. Antecedendo a linguagem, e mais, dando-lhe condições operacionais para existir e funcionar, o acontecimento inscreve-se nos corpos e ao mesmo tempo deles se destaca como a expressão. A fala do mestre e a fala do aluno são assim superfícies onde se fabrica o sentido.
Pensar,  só aí, nesta linha sem retorno  rumo a terras desconhecidas. Antes que isso pareça uma metáfora, dizemos que o Encontro professor-aluno, máquina binária a serviço do Mesmo, traveste-se  de um sentido multiplicado e multiplicante dos signos enviados de parte à parte. Trata-se de enviar signos que substituam a pessoa de um ou  de outro.  Pensar é operar as linhas que saem das conexões entre os signos. A natureza do pensamento é a anti-natureza,  a ausência de natureza e no seu lugar o artifício. Que o pensamento seja (ou fosse) uma secreção do cérebro, não excluiria a  linha infinitiva cortando e sendo cortada por outras linhas, multiplicidades que nos chegam de  súbito, aos milhares e de vez.  São  velocidades que produzem tonturas à lucidez mais centrada. A questão passa a ser a do caos e de como  lidar com ele; não negá-lo, pois ele insiste, nem se deixar engolfar numa espécie de buraco negro ou campo  inconsistente, onde as palavras  se partem em segmentos incompreensíveis ao  senso comum. “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos”    . Mas  é preciso não confundir pensamento com conhecimento. Este  corresponde ao acúmulo de informações que a memória propicia, e vai  servir de reservatório de conceitos estáticos à espera de que sejam acionados quando do trabalho intelectual. A atividade cognitiva ganha a sua pertinência e o seu valor na medida em que está conectada às linhas institucionais que sustentam o funcionamento da organização escolar e dos seus dispositivos.  Deste modo, o “ser” inteligente não existe enquanto essência, ou substância, mas nem por isso deixa de ser palpável e intrínseco ao sucesso profissional, por exemplo. Tudo isso substitui o pensamento e ao mesmo tempo faz-se  passar por ele, numa operação urdida na produção de subjetividades individualizadas no papel de aluno, no papel de professor.  Pensar, pois, não é para qualquer um. Não que este um esteja acima dos  mortais, mas porque esse um está à margem, sempre à margem das formas subjetivas, fazendo-se e refazendo-se como produção. Isso dá trabalho. Sim, porque o ato de pensar implica num movimento de subjetivação sobre si,  espécie de dobra e redobra do eu a partir e com os signos que  chegam.   Falamos, pois,  sobre o pensamento como ato e como física.  Uma abstração concretizada, velocidades  infinitas freadas na organização de saberes inseridos em práticas. É o  contrário do pensamento regido pela forma-Academia, ou pela forma-Estado, quando e onde estes acabam por se aliar na ação de bombardear cidades e aldeias. A chamada relação pedagógica, ou o próprio ensino, é um lugar por excelência onde se propagam estas formas como verdades dadas. Não há, pois, uma natureza do pensamento que não esteja  funcionando em algum dispositivo, em alguma prática, e portanto, não há pensamento que não se agencie como desejo de fazer, de viver, de sobreviver, mesmo que se destrua, se mate  e se explore. O desejo  é a superfície onde algo acontece, mesmo não acontecendo. Este é o processo (...)

Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

LAYLA - Eric Clapton

ORDEM MUNDIAL

Mais uma vez, antigas noções de Império ajudam-nos a enunciar melhor a natureza desta nova ordem em formação. Como Tucídedes, Lívio e Tácito nos ensinam (e Maquiavel, ao comentar suas obras), o Império é formado não com base na força, mas com base na capacidade de mostrar a força como algo a serviço do direito  e da paz. Todas as intervenções de exércitos imperiais são solicitadas por uma ou mais partes envolvidas num conflito já existente (...)

M. Hardt e A. Negri - do livro Império
A VIDA É O REINO DO NÃO-LINEAR

A mim ocorreu-me a idéia de que é a função que cria a estrutura. Vejamos uma cidade: a cidade só vive porque opera intercâmbios de matérias-primas ou de energias com o campo que a circunda. É a função que cria a estrutura. Mas a função, o fluxo de matéria e de energia, é evidentemente uma situação de não-equilíbrio (...)

I. Prigogine - do livro O nascimento do tempo

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

DESEJAR...

PARA-RESPOSTA



Paciente em  1ª consulta -  Dr., é muito remédio que o sr.me  passou... Vou ter que   tomar isso tudo para o resto da  vida?

Psiquiatra - Sossegue: creio que a  sua  vida   não  deverá  ser longa. Portanto, no fim das contas nem vai ser tanto remédio assim...
PERGUNTA E RESPOSTA

O silêncio diante de uma pergunta é como o choque de uma arma contra um escudo ou uma armadura. Emudecer é uma forma extrema de defesa, em que as vantagens e as desvantagens se equilibram. A pessoa emudecida não se expõe, mas em compensação parece ser mais perigosa do que realmente é. Supõe-se que ela oculte muito mais do que aquilo que ela prefere não dizer (...)

Elias Canneti - do livro Massa e poder

TREM DAS ONZE - Demônios da garoa

PENSAMENTO COMPLEXO

Ainda é possível ter relatórios de que determinados transtornos psicológicos são "causados"por desequilíbrio, excessos ou deficiências bioquímicas em determinados sistemas neurotransmissores. Por exemplo, a atividade anormal do neurotransmissor serotonina é frequentemente descrita como causadora de depressão, e as anormalidades do neurotransmissor dopamina têm sido relacionadas a esquizofrenia. Entretanto, evidências indicam que tais informações são por demais simplistas. Hoje percebemos que os efeitos da atividade neurotransmissora são mais gerais e menos específicos (...)

(Grifos nossos)

Barlow, D e Durand, M., Psicopatologia - uma abordagem integrada,  S. Paulo, Cengage Learning, 2008, p.49.

BATUCADA BRASILEIRA - Mestre Régis

preocupante:


noventa e nove
vírgula nove
por cento
da humanidade
é figurante

Nildão

MOVIMENTO DOS BARCOS - Jards Macalé

assim seja

o espaço restringe a forma
do corpo e da palavra 
ao simples bocejar conforme
o contato frio dos répteis
pululando nos esgotos.
é preciso pois que saibas:
não são teus teus narizes
nem são tuas tuas horas.
há ilusões por toda a parte
ditadas às lições mais íntimas.
são clarões de mil  sóis
iluminando o dia perfeito
feliz
e eterno.
e eterno.

BOSCH

DEVIR-ALUNO

A sala de aula é o mundo com seus aparelhos, com seus dispositivos de domesticação de almas. Mas o devir-aluno é mais que o aluno como pessoa; ele segue os fluxos do aprender antes do ensinar. Não aprender as certezas e as opiniões prontas do homem médio, mas sim algo que muda imperceptível e veloz como o próprio tempo. Captar esse "imperceptível" do tempo é tornar-se o tempo irreversível dos atos do ensino que são, ao mesmo tempo, atos de aprendizado. Rigorosamente, não o Novo como um objeto ou objetivo a ser alcançado, e sim como a própria materialidade do espírito, a consistência da passagem, da "duração", do tempo que não se vê, mas que se sente (...)

Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

REPETIÇÃO E DIFERENÇA

domingo, 29 de janeiro de 2012

OBEDECE, OBEDECE...

O Estado proporciona ao pensamento universal   uma forma de interioridade, mas o pensamento proporciona a essa interioridade uma forma de universalidade: " a finalidade da organização é a satisfação dos indivíduos racionais no interior de Estados particulares livres". É uma curiosa troca que se produz entre o Estado e a razão, mas essa troca é igualmente uma proposição analítica, visto que a razão realizada se confunde com o Estado de direito, assim como o Estado de fato é o devir da razão (...) (...) Obedece sempre, pois quanto mais obedeceres, mais serás senhor, visto que só obedecerás à razão pura, isto é, a ti mesmo... (...)

G. Deleuze e F. Guattari - do livro Mil platôs

SMILE

o corpo mente
sobre teorias
o que ele quer
são alegrias

O QUE FOI FEITO DEVERÁ (DE VERA)

Ó OCEANO!

Velho Oceano, tua grandeza material só pode ser comparada tomando como medida a consciência do que foi necessário em poder ativo para engendrar a totalidade da tua massa. É impossível abarca-te de um só golpe de vista. Para contemplar-te, é necessário que a visão gire como um telescópio através de um movimento contínuo na direção dos quatro pontos do horizonte, assim como os matemáticos, para resolverem uma equação algébrica, examinam separadamente os diversos casos possível, antes de enfrentarem a dificuldade. O homem come substâncias nutritivas e faz outros esforços merecedores de um destino melhor, a fim de parecer gordo. Que inche o quanto quiser, esse adorável sapo. Fico tranquilo, jamais se igualará a ti em grandeza; ao menos,  assim suponho. Eu te saúdo, velho Oceano!

Lautréamont -do livro Cantos de Maldoror

SANKAI JUKU

TRAIDORES DA PÁTRIA

Sejamos dignos da vida, tornemo-nos traidores e assassinos dos valores caros a esta sociedade atual. Se compreendermos a afirmarmos realmente a vida, somos naturalmente traidores da família, do Édipo, do Estado, do Eu e de Deus. É preciso sobretudo trair o Eu, porque o Eu é um vaidoso trapaceiro, que quer se apoderar de nós. A mais alta trapaça é a que o Eu faz com nosso corpo, com o nosso desejo. É ele o grande embusteiro, a grande mentira à qual os homens ainda se apegam como se fosse a coisa mais preciosa desse mundo. É ele que impede que encontremos o nosso verdadeiro nome próprio, a nossa verdadeira diferença, aquilo que nos faz únicos, aquilo que pensa e age em nós. Só seremos livres quando colocarmos o Eu de joelhos e depusermos a consciência e os órgãos dos seus postos usurpados de comando.

Luiz Fuganti- do texto Saúde, desejo e pensamento

BICHO DE SETE CABEÇAS

PORQUE A  ESQUIZOFRENIA...

O que desejo enfatizar  aqui, logo de início, é que a afirmação de que algumas pessoas têm uma doença chamada esquizofrenia (e de que algumas presumivelmente, não a têm) baseia-se unicamente na autoridade médica e não tem qualquer descoberta  da Medicina; de que isso foi, em outras palavras, o resultado de uma tomada de decisão ética e política, e não de um trabalho científico empírico (...)

Thomas Szasz - do livro Esquizofrenia - O símbolo sagrado da psiquiatria

Comentário - O texto remete aos anos 70 do século XX. De lá para cá, muitas pesquisas sobre o cérebro do esquizofrênico comprovaram alterações em alguns locais e subsistemas. Nada, no entanto, que as reunisse numa etiologia consistente e  relacionada ao dito quadro psicopatológico esquizofrênico. Até porque a semiologia destes quadros é extremamente  variável, impedindo a composição de uma entidade clínica correlata às  patologias  médicas como por ex., a tuberculose pulmonar.

CHARLES BUKOWSKI

Ética

Todas  as  éticas partem  do eu. São  ridículas. A psiquiatria parte  do eu. Seria melhor se  ela, ao contrário,   partisse o eu em  mil conexões, subjetividades.  Você  acredita?  Os  pacientes não acreditam,  creditam à  psiquiatria um ganho  sobre  si  mesma, um empreendimento.  Procuram um psiquiatra remedeiro que resolva. O molde  está  pronto para  quem quiser. Ser-médico? Ser-paciente?  Ou o inverso. O mundo roda. A ética desceu das  alturas para  o fino contato terrestre. Nada  pronto. Qual a  ética da  psiquiatria? A  regra  acadêmica, recheada  de  boas  intenções, diz: vocês têm  que  ser  felizes, principalmente  às  custas do remédio químico,  pois, afinal,  a mente  é  pura  bioquímica, ninguém duvida. Contudo,   não  há    diálogo  frente  às  destruições  concertadas  da  subjetividade. Esta  é  uma  fala  de loucos forclusivos  ou  apenas  delirantes. O universo psi   serve  tão somente para  barrar e  borrar  o desejo   em suas  expressões   imperceptíveis. Pouco mais  a dizer aqui  senão o escape micro-político.  A psiquiatria é  o delírio  crônico. “Eus”  à  postos, salvaguardas da  razão, argumento indefensável a favor do sistema.   No entanto, alguma coisa  vaza (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

JANIS JOPLIN

sábado, 28 de janeiro de 2012

amor  ao  amar
quem deseja
acontece

GLENN MILLER

ESTRANHO?

Em algum escrito ou entrevista, Felix Guattari diz algo mais ou menos assim: existem pacientes com histórias de vida tão ricas, complexas e belas,  que eles trazem  um aprendizado importante ao psicoterapeuta e/ou psiquiatra que os atende.  Neste sentido, eles, os pacientes, deveriam ser remunerados, invertendo  os papéis estabelecidos pelo mercado da saúde mental.

A.M.

LANTERNA DOS AFOGADOS - Maria Gadú

PRODUÇÃO SUBJETIVA

O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas, às quais os homens são remetidas. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente  e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas.

F. Guattati - do livro Cartografias do desejo

CURITIBA

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso
saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca (...)

M. de Barros

BYE, BYE, BRASIL - Menescal e Wanda Sá

EDUCAR  NÃO É  ENSINAR

Por outro lado, podemos pensar no professor militante. Qual o sentido hoje desse professor militante, o que seria ele? Penso que seria não necessariamente aquele que anuncia a possibilidade do novo, mas sim aquele que procura viver as situações  e dentro dessas situações vividas produzir a possibilidade do novo.Nesse sentido, o professor seria aquele que procura viver a miséria do mundo, e procura viver a miséria de seus alunos, seja ela que miséria for, porque necessariamente miséria não é apenas uma miséria econômica; temos miséria social, temos miséria cultural, temos miséria ética, miséria de valores. Mesmo em situações em que os alunos não são nem um um pouco miseráveis do ponto de vista econômico, certamente eles experimentam uma série de misérias outras. O professor militante seria aquele que, vivendo com os alunos o nível de miséria que esses alunos vivem, poderia, de dentro desse nível de miséria, de dentro dessas possibilidades, buscar construir coletivamente (...)

Sílvio Gallo - do livro Deleuze e a Educação

SÃO PAULO - favela Morumbi

Patologia  da  memória 

                                                     
 1-Conceito

Em psicopatologia,  a memória  é  um elemento  de  grande importância  no funcionamento  dos  processos subjetivos. Ela, de  certo   modo,organiza e  garante  a preservação da  vida psíquica. Quem  fui  ontem , quem   sou  hoje,  quem  serei  amanhã? Memória  e  tempo,   coordenadas    implícitas na vivência  do  paciente,   trazem   um fio de continuidade existencial.  A vida seria  impossível  sem memória.  Ao  mesmo  tempo, a  vida  não  seria possível se  tudo  fosse  recordado. Na  verdade, como  diz  Nietzsche, a  vida   é regida  por  uma  faculdade  ativa  de esquecimento, sendo pois,  por  natureza,  esquecediça.  A memória está, assim,  numa  espécie  de  paradoxo   subjetivo. Não  podemos lembrar  de  tudo, mas nada  somos   sem  lembrar. Necessitamos   recordar,  sobretudo  para   atividades de  manutenção. A cultura  é  uma  gigantesca  Memória. Para  obter  formas  de  criação, retiramos  da  cultura,  das  suas  instituições,  dos  gens, da história  pessoal  etc, elementos que  possibilitam a emergência  do  Novo. No  campo estrito  da   psicopatologia  médica,  a  memória oferece um bom exemplo de  função  psíquica atada aos  processos físico-químicos. Nestes   o cérebro  ocupa  o  lugar que  lhe confere  a  pesquisa  neurocientífica:  o  de  centro.  De  fato,    espécie  de  coordenador  das  ações do indivíduo,   o cérebro, de acordo com  o imaginário da medicina, é  uma  espécie  de  órgão   da  racionalidade. Está  diretamente ligado à  função-memória.
Contudo,  talvez   seja  possível    alterar   a  equação cérebro= memória, correlata a cérebro= mente para  inserir  a  subjetividade. A memória “ garante”  a  subjetividade   mas  nem    por  isso    deve  ser  decalcada  do  cérebro  nem dar  conta   da  complexidade   dos  processos  subjetivos,  ou  “  explicar”   a ocorrência  dos  fenômenos  ditos  patológicos   como  expressões  do  insólito, do  bizarro e do  excesso.  Deste modo,   consideramos  o  cérebro em  toda a  sua importância funcional e ao  mesmo tempo   na  relação  mantida   com  o caos [1] que  o  precede.  Situá-lo  desse modo implica  numa  tomada  de posição teórica  de  inspiração  bergsoniana:  não  é o  universo que está no cérebro, mas    é  o cérebro  que  está no  universo.  Daí, a  pesquisa científica sobre o  cérebro ser inseparável da  filosofia e  da  arte, formas do  pensamento  estabelecidas  pela  concepção  deleuze-guattariana[2] .
                        Mesmo que   a  memória (em  psicopatologia médica) se  altere,  sobretudo  em  quadros  orgânico-cerebrais, a  sua  patologia  não  se  restringe a  estas síndromes. Ao  contrário, podemos   dizer que a função  mnêmica  é  atingida em todos  os  quadros  patológicos. O que irá   diferenciar  tais alterações  é a vivência  qualitativa do  paciente. Neste sentido, os processos afetivos despontam  como a  instância psíquica a  ser considerada  em  primeiro  plano, sendo  a afetividade o  que  compõe  linhas existenciais  situadas  para  além  de  uma   subjetividade,  digamos, mecanicista. Ela traz  a realidade  coletiva  como   ponto  de  partida, o que  significa  dizer  que  a  subjetividade  é  sempre  produzida  no registro  do  social, estando   exposta  às  condições   “ externas  ” em que  se  vive. Ao mesmo  tempo, a  subjetividade  é  um processo  “interno” funcionando nas  próprias  conexões  sinápticas.  “Interno”  e  “externo”  passam  a  ter  significados  que  se  diluem  numa  questão  maior  que  é a das  singularidades do  paciente (...)


Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

[1] - “Define-se   o  caos, menos  por  uma desordem, que  pela  velocidade  infinita  com a qual  se  dissipa toda  forma que  nela  se  esboça(...) (...) é uma velocidade  infinita de nascimento  e  esvanecimento”. Deleuze, G. e Guattari, F., O que  é  a filsosofia?,  Rio, Ed. 34, 1992, p. 153.
[2]- Cf. Deleuze, G. e Guattari, F., idem, p.257  (último  capítulo -  Do caos  ao Cérebro). 

MARINGÁ

O OTIMISMO DO PLANETA

Existe uma forma-Academia, instituição que atravessa a Educação. Sua marca mais característica é produzir um ensino-conhecimento descompromissado  com mudanças  estruturais da Realidade Social,  mesmo que diga o contrário em sua aulas, ensaios,  dissertações e teses. A forma-Academia funciona como uma espécie de Transcendência dos tempos atuais, usando  a Razão científica como seu significante maior. Só para citar um exemplo simples,  mas não menos terrível: quem fabricou a bomba de Hiroshima? 
A ciência, a filosofia, até mesmo a arte, hoje,  compõem  peças bem ajustadas  à engrenagem da máquina do capital industrial e financeiro.Estamos todos metidos nisso até as entranhas de uma  subjetividade passiva e serializada. Segmentos sociais preocupados com o destino da Terra (por exemplo, os que participam do Fórum Mundial) falam, falam, mas não têm força política. Muitos que querem mudanças radicais também não possuem força política. O que fazer?

Antonio Moura

OS FILHOS DO LIXO

burocratizar o  pensamento
quem faz  melhor
que  a  academia
em seu dia-a-dia?

JOHNNY ALF

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

OS DESAFIANTES DA MORTE

"Dizem que a minha paixão
causará minha perdição.
Não importa
que seja o próprio demônio.
Eu sei como morrer.

Valentina, Valentina.
Lanço-me no teu caminho.
Se devo morrer amanhã
por que não hoje, de uma vez por todas?"

Todo o meu ser vacilou sobre o impacto daquela inconcebível justaposição de valores. Nunca uma canção significara tanto para mim. Ao ouvi-los cantar aqueles versos, que normalmente considerava transbordantes de sentimentalismo barato, achei que compreendia o caráter do guerreiro. Dom Juan havia repetido que os guerreiros vivem com a morte do lado, e do conhecimento de que a morte está com eles  retiram a coragem para enfrentar qualquer coisa. Ele dissera que o pior que nos pode acontecer é termos que morrer, e já que esse de qualquer modo é nosso destino inalterável, somos livres; aqueles que perderam tudo, nada mais tem a temer (...)

Carlos Castañeda - do livro O fogo interior

GRANDE PHILIP GLASS

OS INTERESSES DO DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO

Deste  modo,  discutir  acerca  do diagnóstico psiquiátrico, seu valor, seus  limites, suas  distorções, passa  menos  por  uma  suposta  cientificidade da medicina  e   da psiquiatria, e muito mais pela inserção prática  destas instituições na  realidade   dos  serviços, sejam  hospitais, ambulatórios,  caps, naps, consultórios etc. Queremos situar o diagnóstico , no caso da  saúde  mental,  na relação com o paciente. Relação esta que  significa sobretudo a condição de  possibilidade  de  ajuda, para  usarmos  uma  palavra  modesta, mas   abrangente. Este é  um modo de  escapar ao pensamento idealista, o pensamento que está  recheado de  boas  intenções  e que   se  esfuma  diante de um mundo  radicalmente   diferente  do que  se  imagina. Diagnosticar  alguém pressupõe o desejo de  ajudar  esse alguém. Mas  na  prática  clínica  da psiquiatria de inspiração  nosocomial   não é  bem  isso  o que  ocorre. Referimo-nos  a  um uso do diagnóstico para  controle  social  dos  comportamentos, o que  destoa da própria   medicina  no  seu eixo ético.Assim,  a   psiquiatria  acaba  por não dar   conta  de  reconhecer uma  subjetividade  patológica. Isto se  deve  não só aos  pressupostos  epistemológicos  do conhecimento  médico, mas  às  alianças institucionais  que  ela  estabelece   visando   atuar  sobre  o assim chamado doente  mental (...)

Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

CORSÁRIO - Bosco

A CIDADE E OS OLHOS

Depois de marchar por sete dias através das matas, quem vai a Bauci não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas. Os habitantes raramente são vistos em terra; têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apóia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem.
Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência.

I. Calvino - do livro As cidades invisíveis

QUINCY JONES - TAKE FIVE

A maior riqueza do homem é  a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 hs da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc, etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

M. de Barros

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DIANA KRALL - YOU GO TO MY HEAD

Aprendizado

Nesta vida pode-se aprender três coisas de uma criança:
Estar sempre alegre;
nunca ficar inativo;
e chorar com força por tudo  aquilo que se quer.

P. Leminski

FASCINAÇÃO - ELIS

Política

Em uma sociedade como a nossa, conhecem-se, seguramente, os procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar, é a interdição.Sabe-se bem que não se tem o direito de tudo dizer, que não se pode falar tudo em nenhuma circunstância, quem  quer que seja, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: tem-se o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma malha complexa que não cessa de se modificar. Eu observaria somente que, hoje, as regiões onde a malha é mais estreita, onde as casas  escuras se multiplicam, são as regiões da sexualidade e da política: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro em que a sexualidade se desarma e a política se pacifica, fosse um desses lugares onde elas exercem, de maneira privilegiada, algumas das suas mais temíveis potências. O discurso, ainda que aparentemente não seja muito, as interdições que o atingem, revelam logo, e rapidamente, seu vínculo ao desejo e ao poder.E isso não surpreende: pois o discurso - a psicanálise já nos mostrou - não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também o objeto do desejo; e porque - isso, a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas o pelo que e o para que se luta, o poder que se busca conquistar (...)

Michel Foucault- A Ordem do discurso -  da aula inaugural no Collège de France - 2/12/1970 - tradução de Antonio Carlos Cerezzo

DANTON - O PROCESSO DA REVOLUÇÃO

ARTE  EM  SAÚDE  MENTAL

A arte-terapia, conforme é usada em serviços de saúde mental, muitas vezes é transformada em técnica meramente adaptativa. "Há 3 anos  fazendo  esse tricô?" Uma espécie de fármaco-equivalente se estabelece como algo  bom para o paciente. Pensamos outra coisa:  a arte  como liberação de potências do corpo e da mente, adormecidas e /ou travadas pelas organizações repressivas, inclusive e principalmente o eu. Trata-se da  afirmação de um estilo de viver, mesmo o mais estranho...

Antonio Moura

CIA DE DANÇA CORPO-ALMA

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

MENSAGEM DA ASSOCIAÇÃO UNIVERSAL DE PSIQUIATRIA   CIDOLÓGICA   E   BIOLÓGICA

A psiquiatria atual corresponde a uma fase ímpar da evolução do conhecimento científico. Isto acontece  porque o avanço da neurociência possibilitou um entendimento cada mais apurado dos transtornos mentais e, por extensão, da mente. O sistema cérebro/mente veio para substituir  as elucubrações teóricas pseudo-científicas que dificultavam e/ou impediam operar terapêuticas efetivas e resolutivas  para o paciente. Afinal, estamos convencidos de  que os transtornos mentais são transtornos do cérebro. Paulatinamente, estamos certos, doenças como a esquizofrenia, terão elucidadas  suas causas cerebrais. E tudo será mais fácil.  Hoje, o otimismo reina em  nossas hostes profissionais. Pena que os demais setores de cuidado ao paciente não pensem como nós. É lamentável que  o  Estado, pelo menos no Brasil, enceta  políticas públicas equivocadas,  como é o caso da eliminação progressiva dos hospitais psiquiátricos. No entanto, a Nossa Mãe Serotonina e o Nosso Senhor Haloperidol  nos guiarão  pelos caminhos do Bem.

Dr. Emil Kraeplin - presidente

VANGE MILLIET - O MUNDO

PSICOFARMACOLOGIA: MAIS, AINDA...

A  crítica ao uso de psicofármacos pode ser apenas  superficial. Considerar que,  em geral,   muitos  remédios  são usados em  doses excessivas para as necessidades do paciente, é um fato quase óbvio. Isto    constitui a verdade   da psiquiatria atual (mesmo e principalmente se ela não admitir) e  é   o nível da crítica rasa a que aludimos.  Há, contudo,  entre os  vários enfoques,  um mais profundo . Pergunta-se: que pensamento teórico dá condição de possibilidade (e um vago sentimento ao psiquiatra de estar cumprindo com seu dever... de médico)    à psiquiatria para entupir  o paciente com remédios químicos, e pior, fabricar uma subjetividade farmacológica? Este  pensamento é o da física clássica, mecanicista, determinista,  e que busca cientificamente  a  linearidade  causa-efeito, mesmo que  às  custas  de uma  interrupção e/ou destruição  dos processos do desejo. Ou melhor, a própria negação e  sabotagem dos devires (afetos) é condição básica   para a psiquiatria atuar. Por acaso, ela, a  psiquiatria dispõe de uma teoria da afetividade? Dê um olhada nos seus compêndios e tratados... Quanto aos artigos atuais em revistas especializadas, nem olhe...

Antonio Moura

Thais Gulin - Choro bandido

ADEUS, WATSON

espatifei o copo na parede, atravessei a sala e agarrei aquela mulher. me sentia magoado. era linda. fomos pra cama. me lembro de uma chuvinha que entrava pela janela. deixamos que caísse em cima da gente. estava ótimo. tão bom, que repetimos a dose e quando pegamos no sono dormimos com a cara virada pra janela. ficamos completamente encharcados e de manhã os lençóis estavam úmidos e levantamos da cama espirrando e morrendo de rir: "puta merda! puta merda!"  foi engraçado e o coitado do Watson caído num canto qualquer, com a cara partida e inchada, enfrentando a Verdade Eterna, as lutas de 6 assaltos, as de 4, depois voltando pra fábrica comigo, matando 8 ou 10 horas por dia a troco de uma mixaria de salário, sem chegar a nenhum resultado, esperando a Morte, tendo que desistir da inteligência, perdendo o ânimo  aos poucos, indo tudo pras cucuias, e nós esperando, "puta merda" foi engraçado. e ela disse: "tu tá roxo, tudo ficou todo roxo! minha nossa, te olha no espelho!" , e eu morrendo de frio, ali parado na frente do espelho, e estava mesmo todo ROXO! ridículo! uma caveira esquelética de merda! comecei a rir, a dar tanta risada que acabei caindo no tapete e ela se atirou em cima de mim. e aí nós rimos, rimos, mas rimos tanto, tanto, que, puta merda, até pensei que tínhamos enlouquecido. e então tive que me levantar, me vestir, pentear o cabelo, escovar os dentes, nauseado demais pra comer; senti ânsias de vômito quando escovei os dentes, saí pra rua e caminhei na direção da fábrica de luminárias; só o sol se sentia bem, mas a gente tinha que se conformar com o que tinha.

C. Bukowski - do livro Fabulário geral do delírio cotidiano

CHAPLIN - Tempos modernos

O MISTÉRIO DA MERCADORIA

À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela, quer eu a observe sob o ponto de vista que satisfaz necessidades humanas pelas suas propriedades, como produto do trabalho humano (...) (...) O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso (...) (...) Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém, como análise precedente já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias (...)

(*) grifos nossos

Karl Marx - do livro O capital, cap. 1, A mercadoria, ítem 4 - O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo.

CÉU - Malemolência

O SILÊNCIO FALA

É preciso, assim, reconhecer no rosto uma linguagem do silêncio. Ele fala a língua universal das paixões, que ultrapassa a própria palavra, pois é mais imediato e mais eficaz. O rosto se oferece em uma legibilidade primeira, antes dos códigos e dos saberes. Talvez até essa linguagem do corpo revele o estado primeiro da língua, sua condição de possibilidade, a origem de toda retórica. Talvez ele dê acesso a uma dimensão simbólica anterior às palavras, a uma semiótica do silêncio que a palavra já não viria confundir (...)

Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche -  extraído do texto de apresentação do livro A arte de calar de Dinouart

KIEV

USAR PSICOFÁRMACOS? (*)

                                                                                                    
                                                                                                  Antonio Moura


Desde 1952   nos  acostumamos a ver o paciente mental sob  o   efeito de algum remédio químico. Este  se   tornou peça indispensável, não só  para o tratamento, mas na constituição de uma  subjetividade enferma.  Na década de 90 os fármacos avançam e substituem   a psicopatologia.  Torna-se  um hábito   ver o paciente mental como  expressão-efeito   da química.  A indústria  produz  o  pensar  medicamentoso   como  campo por excelência  do desejo. O objetivo  maior é o de     manejar   os sintomas. Como tudo é sintoma, ou    passou a sê-lo, incluindo  o paciente,  o objetivo  de  passar  remédio  tornou-se o de excluir  o pensamento e a  existência.
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Em psiquiatria clínica, é   possível    usar  poucas  associações medicamentosas?  Elas embotam o paciente e o psiquiatra. Nestes casos   um diagnóstico  revelador  do que se passa,  costuma ser  descartado. Se, além do mais,    for   difícil   captar a vivência mórbida,  ficar  na  espreita do acontecimento   é um ganho ético.  Escutar  o vento nas orelhas do paciente. Ou  apenas  contemplar o que ele diz e o que  se vê.   Isso basta para começar o trabalho de   garimpagem dos signos. Percutir  as   linhas do   desejo  talvez   faça    surgir   algo  que   não  anseie  por  fármacos.  

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O psiquiatra envia signos significantes  que o paciente decodifica de acordo com  pelo  menos  duas  máquinas: uma  de subjetivação e  outra  de semiotização [1]. Daí ele  pede remédios, sempre mais remédios   que lhe ajudem.   Isso ocorre  nos casos  em que há ou não   sentimento de estar doente. O que  importa é que a  necessidade de  psicofármacos  está atrelada ao poder concentrado na figura do psiquiatra. A prescrição é uma palavra de ordem.

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Quando o psiquiatra prescreve uma droga, ele vai junto com a droga, dissolvido nela, adentrando ao universo subjetivo do paciente. Chamamos  de “universo subjetivo” o corpo intensivo que produz um mundo, mesmo que seja produção de destruição, como no caso das depressões.  Na clínica, já que o médico, como figura simbólica,  é  o comprimido, ele constitui o paciente como modo farmacológico de subjetivação.  Esse fato começa a ser danoso quando o paciente é  reduzido  a uma boca que consome drágeas  em horários posológicos.

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A relação psiquiatra-paciente está marcada pela história do poder psiquiátrico  consolidado  no  século XIX [2].  Nos dias  que  correm, são muitas as suas  máscaras. Existe, por exemplo,  a psiquiatria biológica em sua versão humanista.  Ela concebe o paciente como um organismo avariado. O psiquiatra   prescreve remédios à mão cheia. Isso lhe garante uma estabilidade existencial, para não dizer material. Antes da técnica, o prestígio da ciência lhe confere  um lugar diferenciado. Por isso o ato de medicar se reveste de nuances quase sempre  desconhecidas. A academia comparece  com o seu aval.

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O remédio químico parece ser  a saída  dos males civilizatórios. Do admirável mundo novo  aos dias atuais,  a psiquiatria desponta como representante de  um  conservadorismo,  com ares de ciência exata.  A  capacidade de manobra política junto ao estado e ao mercado não deixa de impressionar. Há uma espécie de imbecilidade programada que  circula como  verdade. O paciente, situado na ponta dos efeitos subjetivos do capital, responde  ok  à fabricação de si mesmo. Uma tarefa do  técnico  em  saúde mental se mostra, pois,   um   desafio  impossível   e   lúcido [3].

(*) Do livro Trair a psiquiatria

[1] São máquinas do desejo: 1-ser semelhante ao seu psiquiatra; 2-acreditar no que  seu psiquiatra acredita.
[2] Ver Foucault, M., O poder psiquiátrico, S. Paulo, Martins Fontes, 2004.
[3]Referimo-nos ao trabalho  técnico na equipe  multidisciplinar atuando nos Caps e em  outros serviços.