sexta-feira, 30 de novembro de 2018

fluidos

tornei-me assim liquefeita
quando daquela feita
despi-me de nãos e sins

de mim então me perdi
nessa vontade inconclusa
acumulada no rim

ficou a mágoa comigo
fincada dentro do umbigo
quase criava raiz

minha tristeza de chuva
esta amargura profusa 
tem olhos túmidos

sou tal e qual o dilúvio
derramo transbordo enxurro
sangro os pulsos


Líria Porto
PORQUE O DIAGNÓSTICO

O diagnóstico psiquiátrico, segundo uma clínica da diferença em psicopatologia, é função clínica 1-de controle; 2-de tratamento. Tal ótica retira-o do campo teórico da essência (uma identidade: "ele é borderline") e o coloca como ferramenta, tanto para controlar como para tratar. A escolha prática vai depender da análise do contexto (social, familiar, político, econômico, institucional, etc) onde se insere o paciente. Desse modo, nenhum diagnóstico (mesmo com as besteiras epistemológicas da CID 10) é desprezível. Ele serve, sim, sempre serve. Resta saber para que, para quem e com que objetivos. Este é o desafio para o psiquiatra que trabalha o desejo do paciente.

A.M.

A fúria da beleza

Estupidamente bela 
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa 
soca meu peito esta manhã! 
Estupendamente funda, 
a beleza, quando é linda demais, 
dá uma imagem feita só de sensações, 
de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo, 
naquele instante não nos falta nada. 
É um pá. Um tapa. Um gole. 
Um bote nos paralisa, organiza, 
dispersa, conecta e completa! 
Estonteantemente linda 
a beleza doeu profundo no peito essa manhã. 
Doeu tanto que eu dei de chorar, 
por causa e uma flor comum e misteriosa do caminho. 
Uma delicada flor ordinária, 
brotada da trivialidade do mato, 
nascida do varejo da natureza, 
me deu espanto! 
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo 
e me pôs a mesa... 
é a porrada da beleza! 
Eu dei de chorar de uma alegria funda, 
quase tristeza. 

Acontece às vezes e não avisa. 
A coisa estarrece e abre-se um portal. 
É uma dobradura do real, uma dimensão dele, 
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum. 
Porque é real. 
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força 
que eu dei de soluçar! 
O esplendor do que eu vi era pancada, 
era baque e era bonito demais! 

Penso, às vezes, que vivo para esse momento 
indefinível, sagrado, material, cósmico, 
quase molecular. 
Posto que é mistério, 
descrevê-lo exato perambula ermo 
dentro da palavra impronunciável. 
Sei que é desta flechada de luz 
que nasce o acontecimento poético. 

Poesia é quando a iluminação zureta, 
bela e furiosa desse espanto 
se transforma em palavra! 
A florzinha distraída 
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã, 
doeu profundo como se passasse do ponto. 
Como aquele ponto do gozo, 
como aquele ápice do prazer 
que a gente pensa que vai até morrer! 
Como aquele máximo indivisível, 
que, de tão bom, é bom de doer, 
aquele momento em que a gente pede pára 
querendo que e não podendo mais querer, 
porque mais do que aquilo 
não se agüenta mais, 
sabe como é? 

Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é! 

Elisa Lucinda
RIO QUE NÃO É RIO

As viaturas da Polícia Federal que deixaram o Palácio Laranjeiras carregando no banco de trás de uma caminhonete o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, escreveram nesta quinta-feira o mais recente capítulo do roteiro que levou o cartão postal do Brasil do topo do mundo ao fundo do poço. Apenas dois anos após sediar de forma bem sucedida as Olimpíadas, o Rio assiste, pela primeira vez, a um governador em pleno exercício do cargo ser preso –para se unir a uma coleção de outros três ex-governadores já detidos. O emedebista Pezão, vice de Sérgio Cabral e seu sucessor, deixa o governo pela porta dos fundos a apenas um mês de concluir seu mandato. É mais um golpe que a Operação Lava Jato, não sem angariar críticas pela espetacularização, desfere contra um esquema que os investigadores sustentam existir há décadas, com múltiplos tentáculos nos poderes do Estado e com disposição para seguir com os desvios mesmo com boa parte da elite política fluminense atrás das grades.


Pezão, cuja prisão foi autorizada pelo Supremo Tribunal de Justiça a pedido da Procuradoria Geral da República, foi acusado por um delator de ter recebido uma mesada mensal de 150.000 reais entre 2007 e 2014, propina que incluiria décimo terceiro salário e dois bônus, pagos em 2013, de 1 milhão. No total, segundo os procuradores, ele teria recebido 40 milhões em propina. Tudo como parte de taxas pagas pelas empresas para obter os mais variados tipos de contratos públicos. Tudo ainda em pleno funcionamento, segundo a Lava Jato. 
(...)

Caio Barreto Briso e Marina Rossi, El País,Rio/São Paulo, 30/11/2018, 01:29 hs

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

PRODUZIR O IMPOSSÍVEL

ESTA CIDADE ME ATRAVESSA

RIO - Três semanas depois de prenderem dez deputados estaduais acusados de corrupção , agentes da Polícia Federal e procuradores da República voltam às ruas na manhã desta quinta-feira para cumprir ao menos nove mandados de prisão,  cujo principal alvo é o governador Luiz Fernando Pezão . A ordem para esta nova fase da Lava-Jato foi dada pelo ministro e relator do caso Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que também relatou a Operação Quinto do Ouro, que prendeu cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) em março do ano passado. O pedido de prisão foi feito pela PF do Rio, com aval da Procuradoria Geral da República (PGR), a um mês do sucessor de Sérgio Cabral terminar o mandato. Os carros da PF entraram há pouco no Palácio Laranjeiras, onde fica a residência oficial de Pezão, com mandados de busca e apreensão. Há também agentes no Palácio Guanabara.
(...)

O Globo, 29/11/2018, 05:51 hs

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O SOLITÁRIO

Entrou num bar
e permaneceu
três horas
conversando apenas
com a boca de um copo.

Depois
com as bocas de algumas garrafas.

E aqueles objetos
entendiam tudo perfeitamente
-o que é mais grave.


Luis Sérgio dos Santos

HENRY ASCENCIO


FORMAS DE NIILISMO

Como negar a vida? Ou melhor, como fazer da negação uma forma de vida?

O niilismo é o caminho que leva o homem para o abismo, e hoje lentamente marchamos entorpecidos para nosso destino final. O niilista é o acusador: dos outros, de si, da existência, de tudo. O sacerdote, o utópico, o sonhador, o crente, o fascista, o iludido, todos criam ficções para justificar suas acusações a este mundo e assim tornar a vida mais (in)suportável.

Pobres negadores, eles preferem querer o nada à nada querer! Ou seja, o niilista quer viver, mas só pode fazê-lo de modo doentio, impotente, estendendo uma grande cortina negra sobre a realidade para não encará-la.
(...)

Do site Razão Inadequada, acessado em 28/11/2018

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Fala

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser

Tudo será
Capaz de ferir. Será
Agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
E nem no amor: o ser
É excessivamente lúcido
E a palavra é densa e nos fere
(toda a palavra é crueldade)


Orides Fontela

Chick Corea & Gary Burton - Armando's Rumba

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

No meu julgamento, o sexo foi mais bem entendido, mais bem expressado no mundo pagão, no mundo dos primitivos e no mundo religioso. No primeiro, era exaltado no plano estético; no segundo, no plano mágico, e no terceiro, no plano espiritual. Em nosso mundo, onde apenas o nível bestial impera, o sexo funciona num vazio.
(...)

Henry Miller

domingo, 25 de novembro de 2018

ALEGRIA FUTEBOL

Por que o futebol suscita tantas paixões? Simples: ele se aproxima das leis da vida. Vejamos algumas hipóteses: 1-Suas regras são imprecisas; muitas vezes é difícil dizer se um lance foi falta, penalty ou não. O torcedor torce. O juiz tem que decidir em segundos. 2-Os órgãos (dos atletas) usados para a condução da bola são os membros inferiores (pernas e pés) também imprecisos em suas expressões motoras. 3-Há 22 jogadores em campo, o que torna impossível o controle das variáveis sobre o que vai acontecer. Sem contar os juízes... E o VAR... 4- São grandes as dificuldades operacionais para se fazer um gol. Mais de 100 anos depois da criação do futebol, os resultados não variam muito: 2x1, 1x0, 1x1, etc, exceto goleadas esparsas. 5-Por que um time é melhor que o outro? A resposta de que "há melhores jogadores" não satisfaz. O Brasil perdeu a Copa em 1950 e era muito melhor que o Uruguai. Os exemplos são numerosos. Em suma, nem sempre vence o melhor.6-O fator psícogênico interfere no rendimento dos atletas. Certo. Em outros esportes também sim, mas o que dizer das 50 mil pessoas vaiando o adversário num alarido ensurdecedor? Há mil exemplos.7- Uma posição-chave como a do goleiro, o único jogador autorizado a pegar a bola com as mãos. Sendo assim, é figura-chave no desempenho do time. Dir-se-ia: será um goleiro ansioso, emocionalmente frágil, ou apenas um "frangeiro"? Isso pode estragar tudo. Mas quem saberá antes da partida? O futebol é pura experimentação. 8-Devido ao poder das intensidades afetivas (paixões) para fora do campo de jogo, o futebol tornou-se um Mercado de ambições mundiais e estratosféricas. Como isso incide subjetivamente no desempenho do jogador?  Impossivel saber. 9- A tradição das "zebras" na história do futebol exerce influencia sobre o treinador e suas instruções aos comandados. Ou seja, "respeite o adversário". No entanto, na prática, na hora do "vamos ver" o adversário é subvalorizado e o resultado é uma surpresa. Assim como na vida. 10- A mídia fabricou e fabrica a ideia de que "camisa ganha jogo" mas o que vemos e constatamos é que essa ideia fracassa quando os "sem-camisa" enfrentam o adversário e vencem contra tudo e contra todos. Seria preciso citar exemplos históricos? O futebol é um enigma a ser conhecido.

A.M.

O INCONSCIENTE PRODUZ

O voo sem estantes

Como seria o poeta
Se nunca tivesse lido
Shakespeare, Bukowski
Ou Whitman? 
Ana Cristina, Pizarnik 
ou Frida?
Iria querer hoje 
ler Proust, avencas ou ayahuasca?
E o que dizer de Cervantes
sem o qual não saberíamos
quem foi o verdadeiro amante
Da história e Da utopia
o seu irreal inventor:
Começar do zero significa perder
Drummonds & Cecílias, E todos 
os séculos e séculos
que aglutinam 
nossa humanidade cajuína:
– Pra que começar do zero
se podemos começar do amor!

Lou Albergaria 
A  LIBERDADE, ENFIM


Para fugir do estresse, visitantes pagam para se hospedar em presídio simulado na Coreia do Sul
Participantes pagam cerca de R$ 340 para passar 24 horas em uma cela de 5m². Celulares são proibidos.

Pessoas cansadas da correria do dia-a-dia na Coreia do Sul procuram prisão para fugir da rotina cansativa. Um estabelecimento na região de Hongcheon imita um presídio, e já recebeu mais de 2 mil "detentos voluntários" desde 2013.

O presídio, chamado "Prisão Dentro de Mim" recebe principalmente trabalhadores de escritórios exaustos e estudantes em busca de descanso do duro sistema educacional sul-coreano.

Park Hye-ri, uma mulher de 28 anos que trabalha em uma start-up, pagou o equivalente a cerca de R$ 340 para passar 24 horas trancada em um presídio de mentira.

"A prisão me traz a sensação de liberdade", disse Park.
A mulher contou que foi colocada em uma cela de apenas 5m². "Eu estava muito ocupada. Eu não deveria estar aqui, agora, com o trabalho que eu preciso fazer. Mas eu decidi fazer uma pausa e olhar para dentro de mim para uma vida melhor", contou.

O regulamento do presídio é rigoroso. Não se pode falar com outros "internos". Celulares ou relógios também são proibidos.

Os clientes recebem um uniforme prisional azul, um tapete de yoga, um jogo de chá, uma caneta e um caderno. Eles dormem no chão. Há um pequeno banheiro dentro da cela, mas nenhum espelho. 
(...)

Por Reuters, G1,  25/11/2018, atualizado há 7 hs

sábado, 24 de novembro de 2018

ANDRE KOHN


As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem; palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou quando estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.
(...)

Stephen King
Da poesia

Um
gato tenso
tocaiando o silêncio


Eurides Fontela

VENEZUELA DEPRIMIDA

O telefone toca cinco vezes. Duas das ligações caem. Na linha de atendimento psicológico também é preciso lidar com a instabilidade das redes de telecomunicação da Venezuela. “Era uma senhora pedindo ajuda para um filho com transtorno bipolar e outro depressivo”, explica Jenny Lozada, uma das operadoras do turno de sexta-feira no serviço, criado há um ano pela Federação de Psicólogos da Venezuela. Juntamente com os Psicólogos Sem Fronteiras, a federação trabalha para resolver um problema não tão evidente, muitas vezes esquecido pelas estatísticas e sem dados oficiais recentes, da profunda crise política, econômica e social que atravessa o país sul-americano, chamada pelos especialistas de “emergência humanitária complexa”.

A tristeza e a depressão são outros dos números vermelhos da Venezuela. Gisela Galeno coordena o serviço de ajuda telefônica (disponível em Caracas pelos números 4163116 e 4163118) que visa a dar os primeiros socorros psicológicos a uma população de luto. “São vividos muitos lutos ao mesmo tempo, o das pessoas que morrem e também o da perda econômica, da perda da saúde, do emprego, da qualidade de vida, dos espaços para recreação e reunião, dos afetos pelas pessoas que emigram. Por isso, nós nos concentramos em tratar os lutos não resolvidos que, quando se acumulam, podem levar à depressão”, diz a psicóloga clínica.
(...)

Florantonia Singer, El País, Caracas, 24/11/2018, 11:55 hs

UMA HISTÓRIA REAL - David Linch, 1999

PSIQUIATRIA BIOLÓGICA E TCC : A CUMPLICIDADE

Enquanto isso, num consultório médico...

Dr., acho que estou com Doença do Pânico.
Ah, sei,  tome aqui umas amostras de Citta e volte com 90 dias.

E se eu não melhorar?
Dobre a dose.

E se, ainda assim,  eu não melhorar?
Procure uma TCC.

O que é isso, dr.?
É a  Terapia Cognitivo-Comportamental.
É muito prestigiosa na Academia.

Como funciona essa terapia?
Funciona lhe adaptando ao mundo.

Como assim?
Criando um repertório de ações que irão substituir os seus sintomas.

Poderia explicar melhor?
É simples: você vai eliminando um a um os sintomas.
Assim como na escola primária,
você irá fazer tarefas em casa.

Até desaparecerem todos os sintomas?
Talvez. Depende do pacote relativo ao contrato de ajuda.
Três sintomas em seis. Quatro em nove. Sete em oito, etc...
Também vai depender da redução do sofrimento.

Vai  resolver  o meu problema?
Não, não, não resolve, nunca resolve, mas alivia. 

Como assim, dr.?
Você vai  aprender  a conviver com o  Pânico
sem sentir pânico.
Você vai aprender a ser vivo sem estar vivo.
Você vai aprender a ser feliz sem estar feliz,
A ser normal, mesmo sendo louco.
E assim por diante...

Não entendi...
É assim mesmo. Não precisa entender. É só obedecer.

Obrigado, dr.
Nem por isso. Passe na secretaria.


A.M.

ED MOTTA - Smile

Automundo

Pessoas apressadas
Cidades apressadas
Mundo apressado

Aonde vocês estão indo com tanta pressa?
A vida fica a 450º Oeste


Narlan Matos

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A diferença entre uma democracia e uma ditadura consiste em que numa democracia se pode votar antes de obedecer às ordens.
(...)

Charles Bukowski

VICTOR BAUER


ISSO NÃO PÁRA: O QUADRILHÃO DO PT

O juiz Vallisney Oliveira, da 10ª Vara Federal do Distrito Federal, recebeu denúncia e abriu ação penal por suposta organização criminosa envolvendo integrantes da cúpula do PT. Passam a ser réus na ação os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, os ex-ministros Antônio Palocci e Guido Mantega, além do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto.

O caso é conhecido como "quadrilhão do PT", porque se originou de um inquérito no qual integrantes de diversos partidos eram investigados por organização criminosa, mas depois foi dividido por partidos.
(...)

Por Mariana Oliveira e Rosanne D´Agostinho, TV Globo e G1, Brasília, 23/11/2-18, 16:12 hs, atualizado há uma hora
DESEJAR É CONSTRUIR

(...)
Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam em ser objetivos, tão somente objetivos: sabem que o desejo abraça a vida com uma potência produtora e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos necessidade eles tem. Pior para aqueles que acreditam que isso é fácil de dizer, ou que é uma ideia livresca. “Das poucas leituras que tinha feito, tirei a conclusão de que os homens que mais mergulhavam na vida, que eram a própria vida, comiam pouco, dormiam pouco, possuíam poucos bens, se é que os tinham. Não mantinham ilusões em matéria de dever, de procriação voltada aos limitados fins da perpetuação da família ou da defesa do Estado... O mundo dos fantasmas é aquele que ainda não acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Caminhar agarrado ao passado é arrastar consigo os grilhões do condenado” (*)
(...)

G. Deleuze e F. Guattari, in O anti-édipo, 1976

(*)  citação de Henry Miller


My Love Is You

Eros

Do amor
sei pouco
Dói 
é vermelho
e tem um enorme
sombrero 
azul:
me perdi 
entre
as suas tramas
e desapareci.
A quem souber 
como 
me encontrar 
ofereço recompensa.
-

Lou Albergaria 
O HOMEM QUE LEU A ALMA


República: O Código da Alma começa dizendo: "Há mais coisas nas nossas vidas do que admitem nossas teorias sobre ela". Ecoando Hamlet, o sr. nos convida a romper com os estreitos parâmetros do moderno racionalismo e põe no banco dos réus a psicologia moderna.
James Hillman: Exato. A psicologia moderna não está cumprindo sua missão. Então eu quero devolver à psicologia algo do seu senso comum e de suas raízes antigas O que quer dizer mais ou menos a mesma coisas: senso comum e raízes antigas. A psicologia tornou-se excessiva, hipervalorizada. Provocou um exagero de introspecção subjetiva. É preciso recuperar a conexão ecológica com o mundo. Voltar a perceber o que nos circunda, em vez dessa permanente auto-referência, da exagerada sensação de importância do indivíduo dada pela psicologia. Chorar no quarto de seu namorado quando deixa você ou porque sua mãe ou seu pai não a amam o bastante… Você pensa que isso é tão importante? Não, não é tão importante. Esse é o problema da psicologia: inflacionou os indivíduos e os sentimento individuais.

Pensei que seu livro fosse sobre o indivíduo.
Certamente. Mas não sobre o indivíduo psicológico, no sentido habitual. É sobre a importância de o indivíduo encontrar seu próprio destino, estar em contato com sua própria personalidade, o que não é absolutamente a mesma coisa que exagerar a subjetividade. As pessoas estão sempre fazendo alguma coisa. Não só meramente pensando sobre si próprias.

Acreditar que temos um destino tão singular e distinto dos outros … Isso não parece um tanto pretensioso, coisa para os grandes gênios da humanidade?
É a razão para estarmos vivos. Penso que o mundo coletivo, o mundo onde vivemos, não dá a ninguém uma razão para estar vivo. A idéia darwiniana de evolução das espécies, por exemplo, não fornece nenhuma razão para isso. Para a Igreja Católica, estar vivo é condição para que você possa ir para o céu (risos). Não me parece razão suficiente para estar vivo. Mas o sentido de possuir um daimon que quer que você faça alguma coisa, seja uma determinada pessoa, dá um sentido para estarmos vivos. trata-se de uma questão de fundamental importância com a qual a psicoterapia não soube lidar. Por que estamos aqui?
"As pessoas sofrem por idéias. Conseguindo fazer algumas mudanças nas suas idéias, elas se libertam" 

O sr. voltou aos gregos para encontrar essa explicação.
Voltei à história de Platão, ao mito Er que ele expõe no final da República. Diz que a alma de cada um de nós escolhe uma imagem ou desenho que depois será vivido aqui na Terra. Nossa ligação com aquele desenho original é um companheiro chamado daimon, o nosso destino. É um guia único, diferente de todos os outros. Olhando nossa biografia por meio do mito, somos levados a percebê-lo por meio das idéias de vocação, alma, daimon, destino, necessidade. São elas que nos abrem aos pouco o sentido das nossas vidas.

Os gregos sabiam de tudo?
Lógico que não. Essa história é universal. A idéia de que você vem ao mundo com um daimon ou um anjo, de que os anciãos da tribo olham para os jovens para ver o que de especial eles trazem, ou qual a direção desses novos espíritos, é conhecida em outras culturas. Mas os gregos a apresentaram de modo mais claro, mais bem articulado. É este o valor dos gregos: terem feito as coisas tão bem! Não fizeram tudo, mas fizeram tão bem!

Referindo-se ainda aos gregos, o sr. comenta uma frase de Jung dizendo que, na nossa cultura, "os deuses viraram doenças".
É uma das principais idéias de Jung e significa que, na procura pelos deuses, não é necessário ir à igreja, mas ter consciência das nossas profundas inquietações, do que nos move. Ele chama Deu àquele que indica seu caminho e faz você parar, pensar e criar uma solução apropriada. Deuses no lugar de meros sintomas, tragédias, insucessos.

Para explicar suas idéias sobre a psicologia, em O Código da Alma, em vez dos habituais casos clínico, o sr. lança mão da biografia de personagens famosos. Como chegou a essa decisão tão pouco ortodoxa?
As pessoas fora do comum tornam mais visível aquilo que nós comuns mortais não conseguimos ver. Por isso as autobiografias são um gênero tão apreciado. Eu as utilizo não com o intuito de admirar personalidades, mas como um observatório privilegiado para ver as manifestações do destino: de que modo ele chega e se revela; o que ele pretende das pessoas.

A revelação do daimon, do gênio, do anjo ou da vocação é mais clara durante a infância?
Nas histórias que eu conto, e em milhões de outras, os vislumbres de uma vocação ocorrem durante a infância. Mas isso não significa que depois o percurso seja linear. Na infância, podemos ver melhor os sintomas, as atitudes que podem ser reveladoras.
"Milhares de jovens ainda querem ser psicólogos, um desastre. Há coisas mais necessárias" 

O sr. usa as biografia de Judy Garland e Josephine Baker como exemplos opostos de daimon. A primeira sucumbiu ao próprio destino. A segunda, depois de todos os excessos da carne, passa a viver uma vida de dedicação ao próximo.
Trata-se da idéia de crescer para baixo (literalmente, growing down). Saber discernir e crescer dentro da vida. Como a árvore da cabala na tradição mística hebraica e cristã, meu modelo de crescimento imagina as raízes no céu com uma descida gradual para as coisas humanas.

Mas e toda a privação por que passa Josephine Baker no fim da vida? É a idéia de realização como redenção…
Acho que você está vendo isso com um olhar católico. Não vejo de modo penitencial o fato de que ela tenha perdido os cabelos, conseqüência das luzes e da vida que viveu antes. Acontece a muitos atores de Hollywood. Perdem o cabelo por causa das luzes. Betty Grable, por exemplo. Mas foi o processo de crescer para baixo, dentro da humanidade comum, que a fez, no fim, lutar pela causa negra, sustentasse 11 crianças e abandonasse a celebridade. Coisa que a Judy Garland nunca conseguiu, e foi trágico. Ela foi derrubada pelo daimon. Sofrimento? Ambas sofreram.

Pensei que a lição de Josephine Baker pudesse soar como algo moralista, não?
Não acho moralista, considero-a trágica. Judy Garland não podia parar porque ela estava identificada como o daimon, possuída. Continuou a representar e a cantar Somewhere over the Rainbow (Algum Lugar Além do Arco-Íris), caindo no palco, desesperada bebida e bolinha. Josephine Baker teve alguma atuação, mexeu com coisas no mundo que a salvaram de ficar obcecada pelo daimon.

Então, o daimon não é algo que recebemos já pronto. É algo ainda a ser realizado.
É dado, mas não de um modo absoluto. É sempre você. É o daimon, mas é você. A vida é essa relação. A forma como você vive define esse algo que está em você. Judy Garland era possuída por aquela força. Não tinha alternativa.

As idéias de vocação e destino mexem diretamente com nossa noção de livre-arbítrio. Afinal, somos ou não somos responsáveis por nossas vidas?
Acho que a distinção entre fado (sina, destino) e fatalismo pode ajudar a compreender. Fatalismo é acreditar no fado. Os gregos não usavam a palavra acreditar, que é uma palavra cristã, vem de credo: creio em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. O fado é a percepção de que há algo a mais no mundo que afeta a minha vida. Fatalismo é, como todos os "ismos", uma coisa mais fácil: "Não posso fazer de outro modo. O destino assim quis". São sentimentos muito diferentes, ainda que sejam próximos. O fado faz você refletir sobre a sua vida. O fatalismo diz que você não tem nenhum controle sobre ela.

O sr. declara que quer fazer a psicologia regredir 200 anos. Voltar ao momento em que o entusiasmo romântico desmantelava a Idade da Razão.
Os românticos tomavam muito seriamente o sentido de "chamado", que significa: diga-me o que almeja (longing to, no original) e eu lhe direi quem é. Não é: diga-me o que faz; mas perguntar qual é o seu desejo, o désir da moderna poesia francesa, desiderio, em italiano. O que é muito diferente de perguntar "o que lhe aconteceu quando era criança"? Por exemplo, os meninos do Colorado que mataram os colegas de escola: alguém perguntou a eles o que eles desejavam, o que imaginavam? Basta de cálculos estatísticos e classificações diagnósticas.

É o papel do imaginário na nossa vida cotidiana, é isso?
Essa é a razão de ser deste encontro aqui em Ferrara. É muito importante focalizar a imaginação contemporânea. Na escola, por exemplo, precisamos abandonar a matemática por instante. Continua-se a justificar o ensino da matemática para crianças pequenas dizendo-se que treina o cérebro. Mas treina o quê? Treina as mentes para fazer certos tipos de raciocínios que falsificam o mundo sensível. Esse é o grande problema. Trata-se logicamente de razões tecnológicas, comerciais, econômicas. E o que acontece com a imaginação? O que está acontecendo com as crianças? Por que elas hoje se suicidam como jamais fizeram antes? Por que elas estão matando nas escolas? O que elas querem? Por que a poesia, a arte, a dança foram cortadas da programação escolar? Porque não são consideradas economicamente importantes.

Ao mesmo tempo vive-se em um mundo de fantasia, videogames, realidade virtual.
Mas é uma imaginação que copia a violência, copia a tecnologia, sem desenvolvimento de uma estética. É importante o sentido de beleza. O que essas crianças estão fazendo é imaginação sem treinamento, sem oportunidade de desenvolvê-la adequadamente.

O sr. hoje ainda pensa em termos de terapia? Considera-se um psicanalista?
Felizmente estou salvo (risos). Não tenho mais que receber pacientes. Sou um terapeuta das idéias. As pessoas sofrem por idéias. Conseguindo fazer algumas mudanças nas suas idéias, elas se libertam. Hoje há um movimento para que os problemas sejam abordados como filósofos e não como problemas psicológicos pessoais. A morte, o dinheiro, o valor, as prioridades, o amor, a moralidade, a solidão e a depressão são problemas filosóficos profundos, não são exclusivamente pessoais. É preciso falar deles de um ponto de vista filosófico. No Brasil, os jovens não estudam filosofia na escola, não é verdade? Como nos Estados Unidos. Nossos países privilegiaram a psicologia e a sociologia.

No fim do livro As Palavras e as Coisas, Michel Foucault anunciava que o homem, como matéria de estudo científico, era um objeto recente cujo fim estaria próximo. Referia-se ao nascimento da psicologia e das ciências humanas no fim do século XVIII.
Acho que há tantos jovens que ainda querem ser psicólogos… Milhares ainda se inscrevem nas faculdades de psicologia. O que é um desastre, pois não ajuda a sociedade. Estamos em um planeta muito difícil do ponto de vista ecológico, moral, ético. Há muitas coisas mais difíceis no mundo do que estudar psicologia. E muito mais necessárias.
"O sofrimento tem a ver com a ignorância no sentido socrático. Nem Freud queria cancelar o sofrimento" 

Mas o sr. não acha que ajuda as pessoas nas dificuldades, no sofrimento…
Sinceramente, não. Acho que o sofrimento tem a ver com tragédia, tem a ver com ignorância, no sentido socrático. Porque, se não existe um entendimento mais profundo da tragédia, da ignorância, a terapia acaba fazendo o que a farmacologia faz: leva embora a dor de cabeça, leva embora a depressão, leva embora a importância, a obsessão. Não quero cancelar o sofrimento. Nem mesmo Freud queria. Em um certo nível, a psicologia ajuda. Seu marido foi embora de casa, e você está desesperada e não tem com quem falar… Mas por que ir a um profissional? É preciso restabelecer as relações que contemplem esses aspectos.
"Os pais têm com os psicólogos a mesma atitude de quem leva o carro ao mecânico" 

Mas e o papel ancestral desempenhado pelos sábios, pelos oráculos, pelos xamãs nas tribos?
Isso é bobagem. Os psicólogos que vão à universidade não são xamãs. A psicologia clínica mantém os problemas da alma no reino do humanismo secular. Como se fossem só problemas mecânicos. Quando os pais levam uma criança para um instituto, têm com as psicólogas profissionais a mesma atitude de quem leva o carro para o mecânico: quando volto para buscar?, quanto vai durar?, quanto vai custar (risos)? O que é isso numa sociedade? As crianças estão tão desesperadas. Não é significativo que 20% das crianças em idade escolar tenham problemas de asma? Como deve se sentir um ser de 8 anos de idade que não consegue respirar por causa da poluição, por causa dos problemas econômicos e sociais do capitalismo? E então? Vou para a terapia e digo que me sinto sufocado, que minha mãe não me deixa respirar. Quem vai ajudar as crianças? Olhe para as ruas do Brasil. Parece um pesadelo.

O sr. foi um discípulo direto de Jung. Como considero suas idéias em relação ao velho mestre?
Muito próximas. Jung dizia que a psique é feita de imagens. Ele sempre se interessou por comportamentos que são fora do comum, pelo problema do início em todas as cultura. No Egito, no Livro Tibetano dos Mortos, ele estava interessado nas imagens, não nos sintomas das pessoas. Teorizou os arquétipos, que eram originalmente mitos. Estou interessado exatamente nas mesmas coisas. A diferença está na minha posição em relação a sua teologia cristã. Jung tinha uma teologia da qual me sinto distante. Eu o sigo como psicólogo. A base de meu pensamento é fortemente devedora a Jung.

É particularmente difícil a parte do seu livro sobre o mal.
A "semente má". Acho que na nossa cultura falta imaginação sofisticada sobre o aspecto destrutivo. Não entendemos essas crianças no Colorado, não entendemos Milosevic ou a menina de 11 anos que mata o menino de 4, não sabemos imaginá-los. Falamos do Holocausto para falar de Hitler. Mas Hitler é o verdadeiro mistério. O que é extraordinário é a possibilidade de fazer que os alemães e grande parte dos europeus fizessem a mesma reverência. O que é isso? Nesse capítulo, eu me proponho a pensar sobre o mal. Há muitas teorias. Alguns dizem que é o diabo, outros que é uma deformação genética, todos tem teorias. Não estou interessado nelas. A questão é pensar sobre o assunto. Imaginar essa parte da vida que, se não pensarmos por medo ou por ânsia negar, vamos acabar queimando alguém.
"A psicologia exagerou a introspecção subjetiva. É preciso recuperar a conexão ecológica com o mundo."

James Hillman, entrevista a Revista República, julho de 1999

PRIMEIRO AS DAMAS!


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

TEM AQUELES QUE 

Tem aqueles que executam a vida de modo eficaz,
põem ordem em si mesmos e ao seu redor.
Têm resposta correta e jeito para tudo.

Adivinham logo quem a quem, quem com quem,
com que objetivo, por onde.

Batem o carimbo nas verdades únicas,
colocam no triturador os fatos desnecessários,
e as pessoas desconhecidas
em fichários de antemão destinados a elas.

Pensam só o quanto vale a pena,
nem um instante mais,
pois detrás desse instante espreita a dúvida.

E quando recebem dispensa da existência,
deixam o posto
pela porta indicada.

Às vezes os invejo
— por sorte isso passa.


Wislawa Szymborska
BORA BAEEA!

Uma mascote negra. Homenagens a Marielle Franco e Moa do Katendê, assassinados por motivações políticas. Criação do “Bolsa Ídolo”, que ampara ex-jogadores em dificuldades financeiras. Ronda Maria da Penha no estádio da Fonte Nova para proteger as mulheres. Solidariedade a Claudia Leitte após a cantora, torcedora tricolor, sofrer assédio machista do apresentador Silvio Santos. Ao inovar com seu Núcleo de Ações Afirmativas, o Esporte Clube Bahia pretende não apenas promover transformações sociais por meio do futebol, mas se consolidar como o time mais democrático e inclusivo do Brasil.
O desafio surgiu no fim do ano passado, quando o empresário Guilherme Bellintani, então secretário de ACM Neto (DEM), decidiu se afastar do trabalho na prefeitura de Salvador para concorrer à presidência do Bahia. Durante a campanha, ouviu apelos de sócios e torcedores para que o clube dialogasse mais com a torcida e se integrasse melhor à comunidade baiana, fazendo valer a fama de time da massa. Depois de vencer a eleição, não teve dúvidas em instituir, logo nos primeiros dias de mandato, o único departamento de ações afirmativas do futebol brasileiro. “O Bahia representa muito da identidade cultural e social do nosso Estado”, afirma Bellintani. “Por isso, temos obrigação de nos posicionar, frear extremismos e apoiar causas que vão além do campo de jogo.”
(...)

Breiller Pires, El País, 21/11/2018, 20:51 hs

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O CÉREBRO MENTE

A psiquiatria é uma especialidade médica híbrida. Funciona na zona de fronteira entre as ciências humanas e as biológicas. Contudo, mais importante para a prática clínica (ou seja, aos efeitos sobre o paciente) é  o fato de ser ela uma forma social que se nutre dos códigos sociais estabelecidos. Exemplo simples é o da moral. A psiquiatria guia-se pela moral como pressuposto implícito dos seus enunciados diagnósticos, os quais inscrevem-se no fenômeno mais amplo de medicalização da sociedade. Para que tal empreendimento "dê certo",  conta com a reverência das pessoas em geral a uma neurocientificidade reducionista e à figura do psiquiatra como ponto de subjetivação mantenedor da ordem. São linhas semióticas (produzem significados) que circulam entre os técnicos de saúde mental num circuito de naturalização a-histórica da medicina, e por extensão da própria psiquiatria. Daí, a assepsia tecnocientífica da psiquiatria biológica esconder a função da clínica-do-remédio-químico como produtora social de fármaco-subjetividades. Para o paciente e familiares, vulneráveis aos fluxos da loucura, a saída terapêutica passa a ser o psiquiatra que apenas medica, ainda que isso mortifique o desejo. Ou justo por isso. O chamado paciente crônico é produzido, estigmatizado como crônico pelas vias do diagnóstico "cidológico" e pela farmacoterapia contensora dos processos subjetivos singulares.

A.M.


P.S. - Texto republicado
Ainda é tarde…

Ainda é tarde
para saber
Ainda há facas
cruas demais para o corte

Ainda há música
no intervalo entre as canções

Escuta: 
é música ainda

Ainda há cinzas
por dizer


Ana Martins Marques
Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados.


Tennessee Williams
AFETOS DE AFETOS

A princípio, pensamos que nosso comportamento é racional, que nossa sociedade é apenas um sistema de normas, leis e regras, e por isso deixamos as paixões de fora. Essa concepção é muito mais arraigada do que percebemos. Mas podemos também considerar a vida social como uma instauração de afetos, sua reprodução e a maneira como eles circulam. Através dos afetos (bio)políticos, algumas coisas podem ser vistas, outras não, algumas podem ser percebidas, outras não, alguns afetos e modos de vida são instaurados, outros são reprimidos, escondidos, nem mesmo percebidos.

Discutir os afetos é fundamental para a filosofia política. As questões psicológicas são sempre negligenciadas como menores, sem importância, não científicas. Mas ainda temos muito a aprender com os afetos, e isso está longe de ser irracionalista! Uma razão precisa considerá-los seriamente, não somos uma cabeça descolada do corpo. Ignorar isso é tornar-se cego para os bloqueios e ampliações do horizonte da experiência comum. Que afetos circulamos, trocamos, produzimos? Como a implicação dos sujeitos na vivência política acontece?

O que acontece na política é também o que acontece em nossas vidas psicológicas! Ou seja, agimos como agimos em consequência de uma instauração de afetos, eles circulam e nos moldam, canalizam o corpo, lhe dão um curso. Enquanto formos afetados da mesma maneira, agiremos e repetiremos sempre as mesmas coisas. Só é possível ter outra experiência da vida social se formos afetados de outras formas. Transformações não são questões de novas ideias, são questões de novos afetos.
(...)

Do site "Razão Inadequada", acessado em 21/11/2018, às 16,30 hs

VICTOR BAUER


IMPRESSOS INÚTEIS

Não sei por que os guardo
nessa gaveta íntima.
O certificado de reservista.
O diploma de pós-graduação.
O mapa esperto pra uma festa chata
que rolou uns três meses atrás.
Felizmente não compareci.


Eudoro Augusto
A ALMA TUCANA

Além do controlado Doctor Jekyll e do incontido Mister Hyde, há uma terceira personalidade dentro dos tucanos: Mister Chongas. Nem bom, nem mau: indiferente. Enquanto Doctor Jekyll busca a fórmula da virtude e Mister Hyde é pilhado com a mão em todas as cumbucas, Mister Chongas se faz de morto. Ao desarquivar nesta terça-feira um dos inquéritos protagonizados por Aécio Neves, o Supremo levou o PSDB a cultivar novamente o seu Mister Chongas.

Com um voto de desempate de Ricardo Lewandowiski, a Segunda Turma do Supremo ressuscitou inquérito que Gilmar Mendes arquivara em junho. Nele, apura-se a suspeita de que Aécio recebeu propina desviada da estatal elétrica Furnas e depositada numa conta aberta no principado de Liechtenstein. O que fez o PSDB? Chongas. A Procuradoria obteve 60 dias de prazo para apalpar dados bancários obtidos no estrangeiro. O que disse o tucanato? Chongas.

O Supremo devolveu Aécio às manchetes num instante em que o presidente do PSDB, Geraldo Alckmin, organiza um congresso para virar o partido do avesso, remodelando-o para o futuro. Os tucanos falam em renovação com a cabeça na lua e os pés no lodo. Ainda conservam na Executiva Nacional do PSDB o encrencado Aécio e o condenado Eduardo Azeredo, que puxa em Belo Horizonte uma cada de duas décadas (veja abaixo a imagem extraída do site da legenda). É como se Mister Chongas tivesse assumido o controle da alma tucana.

Do Blog do Josias de Souza,21//11/2011, 02:41 hs

terça-feira, 20 de novembro de 2018

O QUE É DESEJAR

O desejo não é natural. Ele é, sim, compósito de linhas existenciais produzido pela cultura. Traduz-se em corpos de corpos funcionando através de ligações infinitas na continuidade das superfícies. Do mundo. Aí onde se diz "quero". Trata-se de uma impessoalidade. Algo insiste em fazer valer territórios ainda mais velozes que o mais veloz pensamento de uma criança. Olhar para o sem-forma. Viver de sensações. Tudo vaza entre os lados de uma carta de baralho ao estilo Lewis Carrol. Valete de ouro. Sim, o desejo não é natural. Não está nem aí para as entranhas dos órgãos exaustos do organismo. Porque ele não tem órgãos. Porque ele é órfão. É liso como a pele de um bebê e se expande aos quatro cantos da Terra num grito silencioso. Verdeja na floresta o puro acontecimento. Talvez por isso a cidade dos sonhos esquecidos lhe seja tão hostil.


A.M.

OS TINCOÃS - Deixa a Gira Girar

NA BEIRA

Muito bem. Agora sou um homem sem comida, com dois dedos a menos na mão e um a menos no pé do que tinha quando nasci; sou um pistoleiro com balas que não podem disparar; estou passando mal por causa da mordida de um monstro e não tenho medicamentos; tenho água para um dia com sorte; posso conseguir andar talvez uns vinte quilômetros se puser em ação minhas últimas forças. Sou, em suma, um homem à beira de qualquer coisa.
(...)

Stephen King
SÓ A NATUREZA É DIVINA, E ELA NÃO É DIVINA...

Só a natureza é divina, e ela não é divina...
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às coisas,
E impõe nome às coisas.
Mas os coisas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o Sol.


Fernando Pessoa

The Hole - Ohad Naharin (NDT 1 | The Hole) - NDT version

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

QUAL PRISÃO?

Surpreende que as peculiaridades do cumprimento da pena do ex-presidente Lula ainda surpreendam. Tudo ali foge do usual, do padrão, do correto. A começar pelo lugar onde está preso, uma sala na Polícia Federal em Curitiba. Preso condenado — e até os provisórios, que representam 40% dos detentos do país — tem de cumprir a pena numa penitenciária.

Lula dispõe de 15 metros quadrados em sua, digamos, cela, um luxo inconcebível para a maioria dos presos. A Lei de Execução Penal determina um mínimo de seis metros quadrados por preso, o que é um latifúndio na maior parte das cadeias do país, superlotadas como abatedouros. O ex-presidente se espalha numa área onde caberia uma pequena facção do crime.

Lula usa uniforme dado pelo Departamento Penitenciário do Paraná? Come a comida que os presos dos presídios paranaenses comem? Sofre as restrições à entrada de produtos, alimentos etc. pelas quais os demais detentos passam? O Complexo Médico Penal de Pinhais, um os lugares onde Lula poderia estar, impõe restrições severas para a entrada de produtos. Estão limitando as escovas de dentes de Lula? Seus sabonetes? O ex-presidente está usando manta tipo paraíba? Vem comendo miojo?

Bom, isso sem falar nas 572 visitas. Nos presídios paranaenses, são quatro, cinco visitas por mês aos detentos. Para o ex-presidente são três por dia, em média, contando fins de semana e feriados. Sem falar nos 21 advogados cadastrados. Sem entrar no mérito das visitas sociais de artistas, músicos, políticos, pai de santo. Sem discutir o dia exclusivo, às quintas-feiras, para receber as 116 visitas de parentes, enquanto os demais presos da carceragem da PF recebem a família às quartas.

Esse cumprimento de pena recheado de privilégios, rapapés, salamaleques zomba da cana dura enfrentada pelos ferrados, os sem-claque, socados feito bichos em buracos escuros país afora. Fica aqui uma sugestão para melhorar o sistema penal brasileiro: um road show com Lula, uma caravana marginal estacionando em um presídio por mês. Melhoraria sobremaneira a qualidade das penitenciárias. Afinal, como escreveu Orwell na Revolução dos bichos, todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros.

Giampaolo Morgado Braga, Época, novembro/2018
A EXPECTATIVA
(...)
Além dos antissistema e antipetistas, tem outro grupo de eleitores foi aumentando e que faz parte dessa base de saída dele, entre 6% e 10% do eleitorado. São pessoas que estavam extremamente insatisfeitas com as lideranças que tinham e que acreditam que seus valores religiosos e familiares estão sob ameaça. Você tem evangélicos insatisfeitos com a atitude de seus pastores, que negociavam apoio político em seu nome sem representá-los de verdade. E o mesmo com militares de baixa patente em relação ao seus comandantes, instâncias inferiores do judiciário em relação aos seus superiores, baixo clero do sistema financeiro em relação às grandes instituições financeiras, pequenos proprietários em relação aos campeões nacionais, agricultores com relação as lideranças ruralistas. Bolsonaro manipulou o medo dessas pessoas, dizendo "olha, você já perdeu seu emprego, sua autoestima, seu salário, e agora querem tirar sua vida, sua família e sua religião". É uma base de revolta, que se torna antissistema e antipetista, tudo misturado, que é uma base a partir da qual ele consegue ir acrescentando eleitores. São vários interesses difusos aos quais ele não tem condições de atender. Porque, ao mesmo tempo em que ele não foi exposto ao contraditório e teve uma cobertura midiática favorável, ele também não realizou uma operação que é fundamental em qualquer eleição, que é calibrar as expectativas. No momento em que ele ganha a eleição sem ter prometido nada, isso até pode aparecer o ideal, afinal não está comprometido com nada. Mas é o contrário. Porque todo mundo tem o direito de sonhar com tudo. As pessoas vão querendo resultados gigantescos.
(...)

Marcos Nobre, trecho de entrevista ao El País, 16/11/2018, 20:01 hs