sexta-feira, 9 de novembro de 2018

POR QUE ESCREVER?

O fim, a finalidade de escrever? Para além ainda de um devir-mulher, de um devir-negro, animal etc., para além de um devir-minoritário, há o empreendimento final de devir-imperceptível. Não, um escritor não pode desejar ser "conhecido", reconhecido. O imperceptível, caráter comum da maior velocidade e da maior lentidão. Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, limá-lo pacientemente, escrever não tem outro fim. O que Fitzgerald chamava de verdadeira ruptura: a linha de fuga, não a viagem nos mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (mesmo se se deve tornar-se animal, tornar-se negro ou mulher). Ser, enfim, desconhecido, como poucas pessoas são, é isso trair. É muito difícil não ser mais conhecido de ninguém, sequer do porteiro, ou no bairro, o cantor sem nome, o ritornelo. No final de Tenra é a noite, o herói se dissipa literalmente, geograficamente. O texto tão bonito de Fitzgerald, The crack up, diz: "Eu me sentia parecido com os homens que via nos trens do subúrbio de Great Neck, quinze anos antes..." Há todo um sistema social que poderia ser chamado de sistema muro branco – buraco negro. Estamos sempre dependurados sobre o muro das significações dominantes, estamos sempre mergulhados no buraco de nossa subjetividade, o buraco negro de nosso Eu que nos é mais caro do que tudo. Muro onde se inscrevem todas as determinações objetivas que nos fixam, nos enquadram, nos identificam e nos fazem reconhecer; buraco onde nos alojamos, com nossa consciência, nossos sentimentos, nossas paixões, nossos segredinhos por demais conhecidos, nossa vontade de torná-los conhecidos.
(...)

G. Deleuze e C. Parnet in Diálogos

Nenhum comentário:

Postar um comentário