sexta-feira, 7 de junho de 2019

ESQUIZOFRENIA, O QUE É?

Era 18 de abril de 2009. A casa da Rede de Atenção e Defesa à Criança e ao Adolescente, em Vitória da Conquista, estava lotada. Estudantes de Psicologia e de diversas outras áreas, na expectativa de ouvir um psiquiatra questionar a Psiquiatria. Convidado pelo psicólogo e professor Valter Rodrigues, através do grupo coletivo Usina, o psiquiatra Antonio Moura proferiu a palestra “Esquizofrenia, o que é?” e chamou a atenção por sua análise plural, prezando pela quebra de paradigmas e de preconceitos, numa visão em que desconstrói os padrões impostos principalmente pela Psiquiatria e em que rejeita conceitos “engessados”.

Antonio inicia apresentando os conceitos de esquizofrenia traçados pela Psiquiatria. Então, de acordo com essa conceituação, esquizofrenia seria a doença mental psicótica caracterizada por sintomas como delírio (recusa da realidade), alucinação e incapacidade do indivíduo em atender às demandas sociais. Segundo o psiquiatra, durante a sua formação em Medicina, a definição apresentada era a de uma doença mental grave, incapacitante, onde o doente caminha para a invalidação mental e incapacidade social, numa forma de patologia que tem o seu curso irreversível. 

O psiquiatra percebeu que os sintomas que se relacionavam com a esquizofrenia eram muito diversos, que além dos sintomas tido como clássicos, citados pela literatura médica, ainda se poderia considerar mais outras inúmeras situações, com grande variedade de manifestações clínicas e daí uma dificuldade em nível de diagnóstico. Ele argumenta que para a Psiquiatria a esquizofrenia pressupõe irreversibilidade, pessimismo diante de possibilidade de cura. “Quando um indivíduo tinha um sintoma e logo depois esse sintoma desaparecia, então se considerava a possibilidade de outras patologias, que não a esquizofrenia”. Para ele se tinha assim o que vem a chamar de esquizofrenia residual, quando não se admite cura mesmo, ou seja, se houver melhora, então não será esquizofrenia.

O psiquiatra comentou que, ainda durante a sua formação, a esquizofrenia lhe foi apresentada como uma “assombração” no campo da psicose. E nesse sentido ele afirma que o conceito da psicose admitido pela Psiquiatria é ainda um conceito impreciso e que então, evidentemente, o conceito de esquizofrenia também seria impreciso. 

Antonio Moura comentou que nos anos 60 e 70, já existia no caldo da contracultura uma contestação com relação ao tratamento aplicado até então pela psiquiatria, aos pacientes diagnosticados como esquizofrênicos. Ele lembra que naquele período, a esquizofrenia era apresentada como o que há de pior no campo das psicoses e que os tratamentos eram elaborados diante da ótica da exclusão social e da negação total da fala do paciente, ou seja, num ambiente onde os seus relatos não eram levados em conta. Para o psiquiatra era como se a configuração de uma doença como a esquizofrenia representasse uma necessidade da Psiquiatria, para a sua execução prática. 

Moura apresenta ainda uma visão baseada em Michel Focault, onde a doença mental figura como uma produção da Psiquiatria, a psicose, que depois produziu uma entidade clínica chamada esquizofrenia. Essa abordagem vem confirmar uma relação de poder cristalizada. “O que seria da Psiquiatria se não fosse a psicose?”.

Então continua falando que o conhecimento de psicopatologia que se tinha nas faculdades de Medicina nas décadas de 60 e 70, era o pacote psiquiátrico carregado da ideia da esquizofrenia como o que havia de mais importante, de mais sério, de mais grave. Então, quando começa a lecionar no curso de Psicologia, passa então a perceber a necessidade de encarar essas patologias com outros modelos que não apenas os apresentados pela Psiquiatria. “Isso porque os pacientes não eram escutados, os profissionais atuavam apenas estabelecendo diagnósticos”. Então ele passou a ensinar as psicopatologias rompendo com o modelo psiquiátrico e aproveitando dele apenas o que fosse de mais pertinente. Comenta então que sempre lhe vinha a pergunta: “e esquizofrenia, o que é?”

A partir daí faz um comentário sobre os anos 90, considerados como os anos do cérebro, período em que, segundo ele, os conceitos iriam se convergir para o que hoje se aplica à esquizofrenia, como uma sendo uma doença do cérebro, e aí numa visão onde se pode colocar ainda como uma doença da mente. Mas ainda assim, passado o século XX e a pergunta ainda se fazia latente: “Esquizofrenia, o que é?”

Voltando a se remeter a Focault, agora citando 'História da loucura', Antonio Moura fala então da construção do conceito de esquizofrenia em prol da consideração do conceito de loucura, que vai desembocar na idéia da Clínica da Diferença. A partir daí é trabalhada a lógica de que não existe uma esquizofrenia, mas de que ela seria o resultado de uma produção político social que se perpetuou e que hoje adquire um foro de legitimidade diante das atuais pesquisas sobre o cérebro. Antonio Moura, no entanto, não deixa de admitir que a esquizofrenia pode causar prejuízos no cérebro, ele ao contrário, afirma acreditar sim na contribuição neurocientífica, mas pondera que não se pode aceitar a indução de toda a complexidade da esquizofrenia apenas ao aspecto neurológico, tendo também que se considerar as alterações maiores no centro da subjetividade. 

Moura explica então em que consiste a Clínica da Diferença, que se insere no encontro com o paciente antes mesmo do exame médico. Para ele, a primeira coisa que deve ser feita é duvidar que a divulgação do diagnóstico vá ajudar o paciente. A realidade do diagnóstico e a sua confirmação só devem acontecer no encontro com o paciente. “Estar com o paciente, sem ser o paciente”. Ele explica que ainda que não se saiba se é ou não esquizofrenia, alguns sintomas por si só já são demasiadamente incômodos. Por isso é importante dissolver essa crença, todos esses preconceitos, já que não se tem um conceito claro. Então enfatiza que é justamente essa falta de clareza que sai do enquadre médico e que assim abre portas para a intervenção de outros saberes. “Isso é a loucura e esse conceito é muito grave para caber apenas à Psiquiatria”.

Na Clínica da Diferença há o questionamento de o que é a loucura. “Como você vai tratar algo que não sabe o que é?”. A proposta é dissolver o conceito de esquizofrenia e usar outro mais profundo relacionado à loucura. 

Antonio Moura também criticou veementemente a hierarquização do profissional de Psiquiatria no ambiente hospitalar, por exemplo. “Não adianta se ter uma teoria de uma equipe multiprofissional se na prática ainda permanece a autonomia do psiquiatra”. Ele comenta que imagina a possibilidade de oferecer um instrumental fisiológico para constituição de uma clínica desatrelada da clínica psiquiátrica, sem, no entanto, desconsiderar o que pode servir da Psiquiatria. “Claro que há o que sirva da Psiquiatria, a indicação farmacológica serve, mas não basta. O paciente está passível de outras formas de intervenção”. Diz que a Psiquiatria passou a mapear todos os comportamentos possíveis de “anormalização”, sendo que não haveria doenças e sim sintomas, não há um quadro clínico bem definido não apenas na esquizofrenia, mas de uma forma mais ampla.

Volta na questão de que a Psiquiatria fez da esquizofrenia uma espécie de seu símbolo sagrado, figura como uma espécie de necessidade para a especialidade médica. “Quem precisa mais de quem, a esquizofrenia da Psiquiatria, ou será que a Psiquiatria é quem precisa da esquizofrenia?” Dessa forma alega que a esquizofrenia se tornou então uma instituição social, enquanto forma social que se reproduz na vida social das pessoas. Antonio Moura defende a ideia de se ampliar a intervenção para técnicas que se incluam práticas como ir às ruas, à família, ao encontro do paciente, ao mundo... 

“Até o próprio termo loucura, quando usado pelo senso comum, admite um caráter ambíguo, ao mesmo tempo em que é usado para designar a desorganização mental, a anormalidade, também é usado para coisas maravilhosas, referentes à prazer, aventura etc”. Então, a partir daí questiona quais são então os vetores que caracterizam um paciente com delírio... Então, retorna-se à velha questão: “Esquizofrenia, o que é?”. Moura admite saber que existe algo estranho, uma experiência assombrosa que atravessa o paciente num determinado momento... Mas pondera que razões mais claras, como por exemplo, como isso começa, não são do seu conhecimento. “Então, como não sei o que é, eu vou acolher essa resposta delirante dele, enquanto subjetividade, com caráter imodificável, inacessível...”. Completa quando explica que o paciente fabrica um mundo para si mesmo e assim, para esse paciente, há no seu mundo uma consistência inserida em seus sentidos. “Já há uma dificuldade básica aí, ele não sabe dizer o que sente, talvez ele tenha sido impedido de estabelecer as suas possibilidades de vida”.

Então, vai ressaltar a importância do não conceito de esquizofrenia, afirmando que se precisa trabalhar com um conceito de loucura, muito mais amplo. Moura comentou ainda sobre o que ele chamou de “farmacologia generalizada”. “Há uma clínica rivotrilizada, (referindo-se ao medicamento de nome comercial Rivotril), os pacientes já são medicados antes mesmo de serem escutados, de forma que os remédios passam a ser usados para controlar e não para tratar”. Finalizando, Moura opina que há sobre esse assunto uma questão ética, que deve ser revista, com o pressuposto de que os conceitos devam estar sendo sempre construídos. “Eu sou psiquiatra, eu não sou psiquiatra! E eu não sei o que é esquizofrenia!!!”.


Joisa Ramalho, jornalista, psicóloga do Caps II, Vitória da Conquista,

3 comentários:

  1. Jó,seu olhar e sensibilidade só melhoram o mundo...

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  2. Joisa;

    Foi muito importante e comovente para mim lembrar de um fato e rever um pensamento que continua tão atual!
    um abraço.

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  3. Belíssimo trabalho da diferença."Multiplacar é preciso".
    Parabéns!

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