Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
quarta-feira, 31 de julho de 2019
O MÉTODO DA DIFERENÇA
Um exame do humor pode explicitar o roteiro da diferença. Os afetos precedem o humor. Este é um tipo de afeto resultante de forças múltiplas : bioquímicas, psíquicas, sociais, coletivas, etc. O pesquisador (obtuso) da mente prioriza a primeira força em nome do ideal asséptico da ciência positivista. Tudo é cérebro como origem. Trata-se de um reducionismo fabricado em nome da razão médica. Ao inverso, buscamos detectar afetos sutis que só se expressam (grosseiramente)como depressão, e daí se inscrevem num rebaixamento da vitalidade. Isso pode ser a depressão como “doença” ou tão apenas uma síndrome ou uma reação depressiva às circunstâncias sócio-metafísicas. De todo modo, o encontro com os afetos busca a intensidade dos mesmos a partir das condições subjetivas do paciente. Qualquer um pode deprimir à medida em que vivencia a cultura da culpa inscrita na carne. Somos todos cristãos e deprimidos. O paciente traz o humor como um dado que muitas vezes lhe foi inculcado: “sou bipolar”. Trata-se de um processo de subjetivação psiquiátrica que se impõe como verdade diagnóstica. Devires são cortados. O humor hipotímico “evolui” para um grau de vitalidade compatível com a doença psiquiátrica: ausência da vontade de viver. Como recusar o grito desesperado do paciente? Claro que há outras depressões, talvez não tão graves, mas necessitadas de atenção e acolhimento. No ato do encontro é possível diferenciá-las em função da demanda por ajuda. O humor não é como a “glicose”, portanto a sua medição não é a “glicemia”. O humor é o desejo em uma de suas expressões traduzidas num contexto.
(...)
A.M. in Trair a psiquiatria
terça-feira, 30 de julho de 2019
segunda-feira, 29 de julho de 2019
PRODUZIR UM CONCEITO - IV
Será capaz o técnico em saúde mental de desenvolver um trabalho afirmativo? Vejamos: em primeiro lugar ele se implica ao Caps via cuidado ao outro, o paciente. O cuidado é que o move. Em segundo, funciona no interior da equipe num regime de trocas e conexões produtivas não hierarquizadas. Trabalhar em equipe é o sentido da sua prática. Em terceiro, busca inventar novas éticas ao sabor dos encontros clínicos, mesmo e principalmente os mais insólitos. Em quarto, extrai de cada um dos papéis profissionais (colegas) aprendizados do dia-a-dia. Ser com o outro, tornar-se outra coisa, um terceiro que não é ele nem o outro: eterna mutação. Em quinto, fabrica uma ética da produtividade e da autonomia existencial como os objetivos terapêuticos maiores. Em sexto, usa da arte a capacidade de fabricar uma estética do mundo no interior da própria clínica, ainda que esta possa ser feia. Não teme o horror dos tempos. Em sétimo, sai à rua, não só em visitas domiciliares, mas deixa entrar em si mesmo a rua, o mundo social quando das perguntas: onde? quando? por que? para que? etc. Em oitavo, trabalha na espreita do que acontece de modo inesperado, invisível e traça uma percepção fina do Caps como serviço público e lugar do coletivo-em-nós. Em nono, usa o diagnóstico psiquiátrico apenas como função de ajuda ao paciente e não como função-de-controle. Em décimo, pesquisa os mil afetos (bons e maus) que constituem a sua relação com o paciente e a dele consigo mesmo.
A.M.
domingo, 28 de julho de 2019
PRODUZIR UM CONCEITO - III
O conceito de "técnico em saúde mental" é gestado no contexto do Caps. Sendo a psiquiatria a instituição hegemônica em saúde mental, é importante registrar que no manicômico funciona o psiquiatra-magarefe, no ambulatório o psiquiatra-burocrata e no consultório o psiquiatra-burguês. Assim, estendendo a proposição aos demais técnicos, só no Caps é possível a existência de um técnico em saúde mental. Fora dele isso não faz sentido em face das suas características clínico-institucionais e dos seus objetivos práticos. Acessar a mente (modo de subjetivação) é acessar o mundo social em sua crueza, em sua realidade "real" tecida por complexas relações institucionais. Exemplo didático: o cérebro também é uma instituição relacionada a outras instituições como a medicina, a neurologia, a clínica, o médico, etc. O técnico em saúde mental é, pois, um ser das relações, inclusive consigo próprio. Nomeado centro de atenção psicossocial, o Caps é o campo por excelência da experimentação clínica para um cuidado ao paciente. Não um cuidado abstrato, regido por protocolos da saúde oficial, mas o cuidado inserido no Encontro. Sabemos não ser fácil...
A.M.
sábado, 27 de julho de 2019
ELA E SUA CIDADE
Vai buscando as nuvens compactas,
como um samba perfeito,
nesta tarde de sol em que a poesia
é menos que a poesia.
Sabe onde estão os vidros da noite.
Tem dedos infinitos,
narinas transparentes,
imperfeitas sobrancelhas intocadas.
Nos seus quadris começa o mundo.
Seu passo aperfeiçoa o amor.
Há redes grávidas, amarelas
em toda a costa do mapa.
De cada bicho rouba uma surpresa.
Pantera branca, garota de colégio
(jamais um tigre de Bengala
desbotado); brancura acinzentada
do cinema em preto e branco.
E as palavras vivas, na boca viva,
são um pensamento livre.
(Ela deveria ter sido poupada para o mundo justo.)
Antes de se cansar, desaparece.
Depois amanhece.
Viver para ela deve ser bom.
Fabrício Corsaletti
sexta-feira, 26 de julho de 2019
PRODUZIR UM CONCEITO - II
Continuamos a tentar produzir o conceito de "técnico em saúde mental". Como foi dito, trata-se de uma necessidade básica para a prática clínica. Daí só poder ser criado, inventado sob as condições do próprio Caps. Este é uma singularidade institucional que define o cuidado ao paciente. Assim, a construção começa desconstruindo o"mental". A "mente" não é o "cérebro", mental não é cerebral. E o que é a mente? Mente é um artifício teórico (alguém já a viu? alguém já pegou nela?) que busca dar conta (explicar) das linhas existenciais inseridas no mundo. Interiorizado como subjetividade, o mundo se expressa numa subjetivação incessante ou num modo de subjetivação singular. A mente é um modo de subjetivação que antecede a divisão psico/soma, homem/sociedade, louco/normal, etc., estando fora dos dualismos da linguagem. Isso expressa a realidade do paciente. Acessá-la num Caps é tarefa do técnico em saúde mental. Seu objetivo é o de promover a saúde dos modos de subjetivação, entendendo saúde como a capacidade de criar a si mesmo num regime de autonomia psíquica (desejante). Não é pois, um estado de equilíbrio a se obter, a chamada cura, mas uma produtividade existencial. Para ficar claro: o velho manicômio e o manicômio-em-nós promovem o inverso dessa proposta.
A.M.
em construção
a casa que não construí pra mim
era habitada por fantasmas
aquele velho clichê
mas os fantasmas que habitavam
a casa que não construí pra mim
não tinham correntes nem toalhas
encharcadas de lençóis dormidos
não pregavam os olhos pelas paredes
não traziam cabeças em bandejas
porcelanatos, velas, alho, vinho
vi um lenço — acho que vi
mas nada de retrato, espectros
bolor, visco, esparadrapos
pegada alguma, nada
sabia que um dos fantasmas
devia ser uma menininha
pois num quarto as bonecas
viviam espalhadas pelo soalho
já o outro fantasma, nem sei
não derrubava pratos, panelas
escutava-se apenas o pranto
dum ventre em decomposição
como se me bastasse
pois aquele cheiro
aquele velho cheiro
era o cheiro de casa
a casa que não construí pra mim
habitada por fantasmas que
todos sabemos bem
não existem
Caco Ishak
SEM TROCA
A generalidade apresenta duas grandes ordens: a ordem qualitativa das
semelhanças e a ordem quantitativa das equivalências. Os ciclos e as igualdades são seus
símbolos. Mas, de toda maneira, a generalidade exprime um ponto de vista segundo o
qual um termo pode ser trocado por outro, substituído por outro. A troca ou a substituição
dos particulares define nossa conduta em correspondência com a generalidade. Eis por
que os empiristas não se enganam ao apresentar a ideia geral como uma ideia em si
mesma particular, à condição de a ela acrescentar um sentimento de poder substituí-la por
qualquer outra idéia particular que se lhe assemelhe sob a relação de uma palavra. Nós,
ao contrário, vemos bem que a repetição só é uma conduta necessária e fundada apenas
em relação ao que não pode ser substituído. Como conduta e como ponto de vista, a
repetição concerne a uma singularidade não trocável, insubstituível. Os reflexos, os ecos,
os duplos, as almas não são do domínio da semelhança ou da equivalência; e assim como
não há substituição possível entre os verdadeiros gêmeos, também não há possibilidade
de se trocar de alma. Se a troca é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os
critérios da repetição. Há, pois, uma diferença econômica entre as duas.
(...)
Gilles Deleuze in Diferença e repetição
Obs.: grifos meus
quinta-feira, 25 de julho de 2019
PRODUZIR UM CONCEITO
No Caps consideramos a equipe técnica composta por todo e qualquer profissional que trabalhe direta ou indiretamente com o paciente. Sendo assim, o termo “técnico” remete tanto aos profissionais especializados na área (psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, etc) quanto aos profissionais que servem de apoio ao trabalho (recepcionistas, funcionários em geral), bem como os demais responsáveis por dispositivos administrativos (gerentes, coordenadores). Tal enfoque visa alargar o espectro de compromisso com a natureza do trabalho, bem como o de estabelecer uma deshierarquização técnico-funcional para o Encontro com o paciente. Isso leva a que sejam postas questões institucionais no âmago da própria clínica.Elas são campos de forças que gravitam em torno das práticas sem que sejam notadas ao nível dos seus efeitos concretos nos modos de subjetivação. Quem sou? Ora, como eu vejo e concebo o paciente está embutido no significado que esse tipo de trabalho tem para mim. Esta é uma perspectiva dos afetos na inserção do técnico em saúde mental, pois está ancorada nas condições reais do funcionamento do serviço. Instituição (o próprio serviço) e técnica(a prática) se misturam e se somam, tendo a produção de uma ética (qual?) o escopo básico para empreender clínicas múltiplas e inventivas. Neste sentido emerge o conceito de técnico em saúde mental como uma necessidade básica para o trabalho com o paciente.
A.M.
HISTÓRIA DAS DEMOLIÇÕES
A história das demolições
a história trágica das demolições
não acontece como no cinema
a vida não tem trilha sonora
as paredes caem silenciosamente
(no máximo a pancada dos martelos)
o chão varrido fica melhor
(o passado não voltará no ladrilho novo)
lembrar o que quer que seja é inútil
as imagens da memória são ruins
o que ficasse em nós seria a esperança
mas o que existe não exige lembrança
o que morreu está definitivamente morto
não há sequer a vontade de chorá-lo
o luto mesmo é impossível
Fabrício Corsaletti
quarta-feira, 24 de julho de 2019
FUTEBOL IRRACIONAL?
"Decisão" da Série D recebe mais pagantes que qualquer jogo da Série A e bate recorde na rodada.
Goleada do Manaus sobre o Caxias-RS, que culminou no acesso à Série C de 2020, recebeu 35.689 pessoas, superior a São Paulo x Chape, Inter x Grêmio e Corinthians x Fla, respectivamente.
Globo.com, 24/07/2019 16h52 Atualizado há uma hora
GRANDE RUTGER
RIO - O ator holandês Rutger Hauer, conhecido por interpretar o antagonista Roy Batt em "Blade Runner" (1982), morreu no último dia 19, aos 75 anos, em sua casa na Holanda. Ele não resistiu a uma "curta doença", segundo seu agente.
Hauer construiu uma carreira de seis décadas na televisão e no cinema, trabalhando em mais de 170 produções. Entre elas, a fantasia medieval "O feitiço de Áquila" (1985), em que fez o par romântico de Michelle Pfeiffer; "Batman begins" (2005), como um executivo da empresa de Bruce Wayne; e "Sin City: A cidade do pecado" (2005), no papel do cardeal Roark, religioso corrupto que detinha o poder em Basin City.
O GLOBO, 24/07/2019, 14:02 hs
terça-feira, 23 de julho de 2019
A DOENÇA-HOMEM
Entre as forças mortíferas que massacraram e massacram o desejo na história da humanidade, há muitas, tantas, tantas mesmo que não caberiam neste pequeno escrito.Mas, como não citar, pelo menos, a Religião, o Estado, a Escola e a Família? A sensualidade, a alegria de viver os encontros, alegria gratuita, a arte de criar, criar a si mesmo, criar uma ciência, uma ciência menor atenta aos devires, a generosidade para além das fronteiras mesquinhas do Estado-nação, o acontecimento-amar, o anti-mercantilismo, o sentimento de cidadania terráquea, o salto sobre o abismo do nada, a aliança com a natureza (que somos nós), a prevalência da ética sobre a política, a política como substituição dos rebanhos humanos e dos zumbis vagando pela superfícies do mundo por subjetividades múltiplas,singulares, enfim, tudo isso e muito mais é capturado por forças que estão por toda a parte, nem sempre visíveis, mas sempre atuantes e devastadoras. O fascismo, hoje. Ele constitue o Inconsciente representativo, edipiano, familiar e molar que trabalha no interior de todos nós, inclusive nas esquerdas. Nem falaremos das matanças explícitas de milhões. Nem falaremos das invasões bárbaras. Ou do anarquismo humilhado nem dos libertários torturados.O fato inequívoco é o de que basta alguém querer, basta alguém ir indo, basta alguém querer experimentar por sua conta o milagre da vida, basta alguém querer experimentar no seu canto para que o muro se mostre como fronteira não ultrapassável da racionalidade mais torpe, arrogante e sedutora. No caso verde-amarelo, avançamos... para onde? Para onde, José?
A.M.
segunda-feira, 22 de julho de 2019
"O PIOR É O DO MARANHÃO"
O GLOBO: O que o sr. achou da fala do presidente?
FLÁVIO DINO (governador do Maranhão): Foi a prova que tem um insano no comando do país. Há um método instalado no poder central. É um método de discriminação, de perseguição e de preconceito.
O presidente externou uma visão de preconceito, de ódio. E reiterou essa visão em outro vídeo, dizendo que todo nordestino é “pau de arara” e “cabeça chata” (em live com o ministro Tarcísio Freitas, na quinta à noite). Isso nada mais é que a repetição de tratamentos pejorativos para menosprezar uma região que concentra um terço da população brasileira.
(...)
Bernardo Mello Franco, O Globo, 22/07/2019, 18:32 hs
- QUESTÕES PSICOPATOLÓGICAS
- Num Caps a psicopatologia expressa formas estranhas às taxonomias oficiais, o que faz da clínica um emaranhado de signos a-significantes. Ou seja, à pergunta “O que isso significa?” sucede um vazio de hipóteses diagnósticas preenchido pelo juízo moral das avaliações biomédicas. O lugar do psiquiatra biológico e, portanto, remedeiro, é mantido à disposição, mesmo que não haja quem o preencha. Não importa. Todos, ou quase todos os técnicos tendem a preenchê-lo, já que a psicopatologia "tem que existir” para justificar e autorizar a ação dos dispositivos de controle sobre o paciente. Assim, uma clínica da diferença encontra dificuldades práticas importantes, na medida em que é também uma peça constitutiva da psiquiatria clínica no seu sentido territorial (não homogeneizante). Em outros termos, há um território dado que é o da clínica que a psiquiatria instituiu há muito tempo. Nele, os movimentos da diferença (devires) só brotam, só conseguem emergir na medida em que a psicopatologia funcione com elementos de fora da relação dual (técnico-paciente). Como foi dito, eles são os fluxos coletivos, as multiplicidades, o real em si mesmo, o combustível do desejo, aquilo que se torna uma psicopatologia clínica e não o contrário. Resumindo, a clínica de um Caps é urdida no socius, é captada fora do Caps, é buscada no mundo.Do contrário, será mais um disfarce do manicômio e a reprodução soft da forma-hospício... dentro de nós.
- A.M.
O amor de agora é o mesmo amor de outrora
O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.
Dante Milano
Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex (...) talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem junto para Paris (...) talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada.
CONSCIÊNCIA E PSICOPATOLOGIA
(...) É o plano da matéria. Assim, imagem é igual a matéria. Estendendo a equação: imagem= movimento=matéria=luz. Trata-se de abrir uma outra perspectiva, colocar a subjetividade como descentrada em relação à consciência, ao eu e ao indivíduo. No Encontro, o que se percebe do paciente? Se sairmos do âmbito estreito do exame psíquico e dispositivos correlatos, perceberemos algo que não sabemos o que é, mas intuímos conforme linhas moleculares. A clínica se constituirá, pois, como um campo de imagens. São vibrações, estremecimentos, fluxos de toda ordem não registrados em manuais e protocolos terapêuticos. Corpos em relação contínua, ação e reação uns com os outros.Como nem todos os corpos são visíveis, a realidade do paciente não é acessível pelos meios propedêuticos usuais. Acessá-la é traçar linhas perceptivas não marcadas por clichês. Temos então o problema de uma consciência considerada como produção e não como produto. A consciência não é um “estar aí” a priori mas o efeito de um movimento mais radical e profundo que a ultrapassa e a precede: o caos. Na verdade ela é uma tela. Uma clínica que problematiza a consciência começa pelo caos. Se ela se limitar a reproduzir a consciência, também será uma tela. Ou seja, os problemas reais de uma subjetividade “doente” não serão tocados.
(...)
A.M. in Trair a psiquiatria
domingo, 21 de julho de 2019
sábado, 20 de julho de 2019
felicidade alheia
A felicidade alheia me fere.
A felicidade alheia me oprime.
A felicidade alheia me faz pensar em desistir.
Passo horas na internet, investigando até onde vai a brincadeira.
Passo horas sofrendo, lendo posts e mais posts.
Um sofrimento gostoso.
Um sofrimento justo.
Um sofrimento necessário.
Às vezes penso em jogar a toalha,
mas a felicidade alheia me redime,
a felicidade alheia me alimenta,
a felicidade alheia me salva.
Só ela pode me salvar.
Tenho raiva de tudo o que não seja a felicidade alheia.
Tenho muita raiva.
Você não faz ideia.
Bruno Brum
VERDADE DOS SIGNOS
(...) O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Nem existem significações explícitas nem idéias claras, só existem sentidos implicados nos signos; e se o pensamento tem o poder de explicar o signo, de desenvolvê-lo em uma Idéia, é porque a Idéia já estava presente no signo, em estado envolvido e enrolado, no estado obscuro daquilo que força a pensar. Só procuramos a verdade no tempo, coagidos e forçados. Quem procura a verdade é o ciumento que descobre um signo mentiroso no rosto da criatura amada; é o homem sensível quando encontra a violência de uma impressão; é o leitor, o ouvinte, quando a obra de arte emite signos, o que o forçará talvez a criar, como o apelo do gênio a outros gênios. As comunicações de uma amizade tagarela nada são em comparação com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e a sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte. A criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos. A obra de arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai.
(...)
Gilles Deleuze in Proust e os signos
AGNES ETERNA
A filósofa húngara Agnes Heller, uma das grandes pensadoras do nosso tempo, dissidente do regime comunista da Hungria e opositora nos últimos anos ao primeiro-ministro Viktor Orbán, morreu nesta sexta-feira aos 90 anos em Balatonalmádi, a cerca de 100 quilômetros de Budapeste, informou a Academia Húngara de Ciências (MTA, na sigla em húngaro).
(...)
El País, Madri, 20/07/2019, 10:38 hs
ISSO NÃO PÁRA
O presidente Jair Bolsonaro disse nesta sexta-feira (19) que, "daqueles governadores de 'paraíba', o pior é o do Maranhão; tem que ter nada com esse cara". O uso de um termo pejorativo para se referir aos nordestinos provocou a reação de governadores da região, que manifestaram "espanto e profunda indignação".
A fala do presidente foi durante uma conversa informal com o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) assim que se sentou na mesa para dar início a um café da manhã com jornalistas da imprensa estrangeira no Palácio do Planalto, em Brasília.
A conversa foi registrada pela TV Brasil e viralizou nas redes sociais à tarde.
Em resposta, governadores do Nordeste divulgaram uma carta em que cobram explicações do presidente. Eles afirmaram ter recebido "com espanto e profunda indignação a declaração do presidente da República transmitindo orientações de retaliação a governos estaduais, durante encontro com a imprensa internacional". O comunicado conclui: "Aguardamos esclarecimentos por parte da presidência da República e reiteramos nossa defesa da Federação e da democracia".
(...)
Por G1, 19/07/2019, 20:49 hs
sexta-feira, 19 de julho de 2019
FAZER A DIFERENÇA
A.M.
A diferença é um conceito filosófico discutido em profundidade em duas grandes obras do pensador Gilles Deleuze. Trata-se de Diferença e Repetição (1968) e Lógica do Sentido (1969). Tal densidade conceitual pode (e deve) ser usada por não-filósofos para o exercício de uma atitude ética essencialmente prática. Quer dizer: o mundo não é uma substância mas torna-se problemático (oco) por sua própria natureza e não por uma instância que lhe seria superior (a razão, por exemplo). Assim, tudo é imanência, tudo está na terra. O corpo da terra se faz na arte dos encontros pessoais e impessoais. Aí reside a diferença como linha curva, incerta, perigosa e delicadamente potente. Não exige nem possui explicações. Para experimentá-la basta seguir o fluxo do devir (o conteúdo do desejo) em suas infinitas possibilidades de conexão com outros devires. É com a criança-em-nós e com o tempo não-cronológico que a diferença estabelece seu traço irreversível. Mas não é fácil. Sem que se perceba, as instituições sociais administram o Medo no interior de nós mesmos, naturalizando o conformismo, racionalizando a existência.
quinta-feira, 18 de julho de 2019
Os ursinhos cabulosos I
Rebeca, a lesma lésbica, rabiscava azulejos como se riscasse o vento ou roubasse beijos. Rebeca, posto que lesmas não voam, namorava lesmas, gosmas, gafanhotos do alto da asa delta. Rebeca conheceu o sexo numa noite de champanhe e champignon e, desde então, passou a distinguir o que é ruim do que é bom. Rebeca conheceu sonhos e desilusões da baixa madrugada; se drogava nas esquinas e voltava para casa. Rebeca, desde que lera Nietzsche, preferia mostarda a ketchup, e jamais supunha que, mesmo sendo um tanto kitsch, tudo isso renderia a alcunha que persiste: Rebeca, a beata beat.
Bruno Brum
O QUE É PENSAR?
Trabalhar com pacientes num Caps implica em sair das grades do manicômio, do ambulatório, do consultório, estes por sua vez marcados pela forma-hospício. Significa explorar linhas de multiplicidade, mesmo e principalmente no paciente identificado ao portador de transtorno mental. É que há linhas não percebidas, talvez invisíveis. Pacientes registrados, cadastrados, codificados, rotulados sob o efeito de formas sociais (instituições) como a família, a clínica, a escola, o trabalho, o direito, o estado, a polícia, o casamento, entre outras, estão enfiados em buracos negros onde o devir-pensamento foi relegado a uma atividade cognitiva mínima, rasteira, como consta nos manuais psiquiátricos. Curso, forma, conteúdo, raciocínio, juízo, são categorias semiológicas usadas num exercício de mortificação do devir-pensamento. Elas compõem o mundo da representação. Tornar o pensamento visível e frear a sua velocidade infinita é assunto e tarefa de psiquiatras torturadores e adquire na clínica atual o requinte das tecnologias de ponta. Subjacente à técnica, existe a crença de que o paciente não pensa, ou se pensa, é para responder qual o nome, que dia é hoje, onde estamos, que veio fazer aqui, etc. Insistimos no dado de que o pensamento não é só o que é falado, mas o que é experimentado via sensações, intensidades, afetos. A alma é o pensamento. O que muitas vezes não pode ser dito, não chega a ser dito, não consegue ser dito. Mas existe.
(...)
quarta-feira, 17 de julho de 2019
O QUE EXISTE
Não existe a "esquizofrenia". Existe a experiência esquizofrênica em seu dilaceramento existencial, seus delírios, sua profunda mudança na percepção da realidade de si e do mundo. Não existe o "transtorno do pânico". Existe a experiência da angústia, do medo ampliado aos confins do infinito e da morte insistente nas batidas do coração. Não existe a "depressão". Existe a experiência da recusa em viver e, simultaneamente, da impossibilidade de morrer como sensação inscrita nas entranhas do corpo supliciado. Não existe o "toc". Existe uma corrosão da invenção de si mesmo em meio a um mundo automatizado pelas máquinas em condutas iguais e voltadas à repetição estéril. Não existe o "transtorno de ansiedade". Existe a experiência de um mal estar indefinível, da fobia, do desconforto subjetivo concretizado no aprisionamento dos processos do desejo. Não existem diagnósticos. Existem dores da alma.
A.M.
A DISFUNÇÃO
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de a menos.
Sendo que mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas nos poetas dessa disfunção lírica.
1 - Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.
2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 - Percepção das contigüidades anômalas entre verbos e substantivos.
4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.
6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.
7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância
aos passarinhos do que aos senadores.
Manoel de Barros
terça-feira, 16 de julho de 2019
A NECROPOLÍTICA COMO REGIME DE GOVERNO
Brasil e Colômbia disputam a miserável primeira posição de país mais arriscado para ser um defensor de direitos humanos no mundo. Se a questão for terra ou meio ambiente, Colômbia é o país mais violento; se forem os direitos das mulheres ou população LGBT, Brasil lidera o ranking de homicídios. A fronteira entre as questões de direitos humanos é uma tentativa de classificar onde estão os temas de maior risco em cada país, porém histórias concretas de ativistas ameaçados ou mortos mostram como a fronteira é nebulosa. Yirley Velasco é campesina, sobrevivente do Massacre El Salado, na Colômbia, foi vítima de violência sexual em 2000. Sofre ameaças de morte pelo trabalho político em defesa dos direitos das mulheres em Montes de María, onde María del Pilar Hurtado foi morta na frente dos filhos. Talíria Petrone é deputada federal, amiga de Marielle Franco, vereadora assassinada por milícias no Rio de Janeiro. É voz ativa pelos direitos humanos na política nacional brasileira e vem sofrendo ameaças de morte.
(...)
Debora Diniz e Gisele Carino, El País, 16/07/2019, 20:28 hs
(VEREIS QUE O POEMA CRESCE INDEPENDENTE)
Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
Jorge de Lima
segunda-feira, 15 de julho de 2019
REAL IRREAL
A.M.
O que é o real? A psicanálise (lacaniana) diz que o real é impossível pois vivemos num mundo essencialmente simbólico. Conforme essa doutrina, o real é lançado para os rumos da psicose, ou seja, rompido com a formação social no qual se inscreve. Quem tem acesso ao real é louco, é o louco em seu desvario. Uma insanidade. Ao contrário, pensamos ao modo deleuziano. O real não está dado, ele é produzido, sempre produzido. Resta saber por quem. Há toda uma questão ético-política de fundo... Os artistas, os videntes, os poetas, os revolucionários (não os esquerdistas), entre outros, sabem disso porque experimentam o mundo na própria carne, na própria pele, melhor dizendo, no corpo sensível, desejante, nutrido de mil sensações. Assim, se a psicose é o real, as "mil sensações" se tornam mil sintomas clínicos do transtorno que a psiquiatria biológica chama de "mental". A tecnologia moderna inundou o cotidiano com tal profusão de imagens que a psicose (e os seus mil sintomas) ocupou o lugar da esquizofrenia reeditando-a como "A" psicose, mesmo que não pareça. Depressões, neuroses, histerias, borderlines, retardos, paranóias, demências, drogadiçoes, fobias, pânicos, angústias, e tantos outros signos atuais do aniquilamento da subjetividade, se misturam numa espécie de sopa coletiva psicopatológica. No fim, tudo conduz à psicose (ou à loucura).Mas, se nem mesmo o psicótico sabe mais o que é o real, nos achamos em plena dissolução do sentido. Da clínica em saúde mental.
A.M.
domingo, 14 de julho de 2019
OFICINA DE POESIA
Trabalhe em dois livros, simultaneamente.
Dedique a maior parte do seu tempo ao livro 1.
É nele que você colocará os melhores poemas.
No livro 2, escreva o que vier à cabeça,
sem muitas preocupações temáticas ou estilísticas.
Ele vai funcionar como um caderno de exercícios
e provavelmente nunca será lido.
Enquanto isso, continue trabalhando com afinco
nos poemas do livro 1.
Ao final do processo,
jogue fora os poemas do livro 1
e publique o livro 2.
Bruno Brum
A MEDICALIZAÇÃO
O conceito de medicalização da sociedade é tributário do capitalismo industrial avançado. Possui um alcance planetário, na medida em que a tecnologia médica, sustentada pela ideia de progresso, avança como oferta de produtos a serem consumidos em meio ao estilo de vida contemporâneo. Tal estilo tem como base a produção subjetiva correlata à produção econômica. Ou seja, cada vez mais inexistem divisões entre os vários setores da vida social, fazendo desta uma mera extensão dos processos do capital (sempre mais lucro, mais domínio, mais controle e exploração...), no caso médico uma semiologia do organismo doente adaptada às necessidades de controle propedêutico pelos equipamentos de saúde. Daí as soluções de problemas sociais se afiguram através o uso da terapêutica médica precedida pelo diagnóstico cada vez mais estabelecido por imagens (exemplo da USG). A medicalização não é, pois, um fenômeno médico, pelo menos na sua origem, mas um produto do funcionamento científico das relações capitalísticas, totalizadas na figura subjetiva do consumidor-padrão. A medicina segue e “obedece” ao processo histórico-social porque ela mesma é uma forma social no sentido de uma instituição poderosa que emplaca um discurso humanitário às custas da produção-consumo de pacientes. Medicalizar é, pois, um ato político antes de ser técnico.
AM.
CONTRA A MARÉ
Quando a FIFA anunciou que o Brasil abrigaria a Copa do Mundo de 2014, iniciou-se uma corrida entre municípios e estados para apresentar candidaturas à sede do maior torneio de futebol do planeta. Sem grande tradição no esporte, Maceió e São Luís chegaram a cogitar a hipótese, mas, diante do exorbitante custo para cumprir requisitos de reforma e construção dos estádios, acabaram desistindo de sediar o evento. Agora, cinco anos depois da Copa, enquanto algumas cidades ainda não entregaram obras de mobilidade urbana prometidas ou congelam recursos na educação após investimentos milionários em arenas, as capitais de Alagoas e Maranhão driblam a crise econômica abrindo novas bibliotecas.
Em 2008, o então governador do Maranhão, Jackson Lago (PDT), avaliou a ideia de São Luís sediar a Copa. Porém, se assustou com as exigências do “padrão-FIFA”, que elevariam os gastos na reforma do estádio Castelão para uma cifra na casa das centenas de milhões de reais. A capital maranhense nem sequer pleiteou vaga entre as cidades-sede. Já no governo de Roseana Sarney (MDB) [2009-2014], as obras de restauração do Castelão foram concluídas a um custo de 28 milhões de reais. Apesar do lobby favorável de Fernando Sarney, dirigente da CBF e irmão da governadora, a cidade entendeu que não seria viável se habilitar para receber o Mundial.
(...)
Breiller Pires, El País, São Paulo, 14/07/2019, 9:55 hs
sábado, 13 de julho de 2019
FIM DE JOGO
Juiz - Você viu a novidade do VAR? Fantástico!
Torcedor- Sim, vi e não gostei.
Juiz- Como não gostou? O VAR torna o futebol mais justo. Premia o melhor.É um avanço tecnológico, um progresso imenso na interpretação das regras.
Torcedor-Mas o futebol não é justo.Basta, por exemplo, conferir a história das copas. Tantos resultados injustos...
Juiz- Então você acha que não deveria existir o VAR?
Torcedor-Sem dúvida. Trata-se de uma máquina anti-futebol, anti-vibração, anti-alegria. Desfigurou esse esporte demoníaco. Atingiu em cheio o seu DNA.
Juiz- Cara, nem acredito no que você diz. Então devemos continuar com erros de toda ordem? Penalties não marcados, penalties marcados que não foram, impedimentos que não foram mas foram, equívocos do bandeirinha, roubos do juiz, etc...
Torcedor- Mas tudo isso é o futebol. Esta é a sua essência e a sua estética. Estética do erro. Assim como na vida. Por isso o fascínio, o charme e a loucura que contamina tudo e todos.
Juiz - Então, vou lhe dar um cartão vermelho.
Torcedor - Tudo bem. Pode dar. Sem mim, o futebol morre.
A.M.
A.M.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável por ela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor. Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum `a esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.
(...)
Maurice Blanchot
OS SERTÕES, HOJE
A 17ª Festa Literária de Paraty (Flip) começou nesta quarta-feira bem ao estilo de seu homenageado, Euclides da Cunha: densa, dura e desbravadora de linguagens. Música e literatura misturaram-se em uma noite em que Walnice Nogueira Galvão, ensaísta e crítica literária, brindou o público com todos os seus conhecimentos de décadas da obra euclidiana. "Euclides viu de perto, pela primeira vez, o povo brasileiro. Viu que o povo brasileiro é mestiço, messiânico, analfabeto, e não os brancos ricos do Rio de Janeiro", afirmou, ao referir-se a Os Sertões durante uma conferência de mais de uma hora, ante uma plateia majoritariamente branca.
A atualidade da obra que narra a Guerra de Canudos (1896-1897) será debatida até este domingo (14) por 33 intelectuais —sendo 17 mulheres— de 10 nacionalidades, em áreas que vão da sociologia à fotografia e abordando temas como raça, gênero e pós-colonialismo. Os temas têm tudo a ver com o livro. "Os Sertões é uma colcha de retalhos de muitas outras narrativas", explicou Galvão, ao lembrar que, ainda que esconda o fato hermeticamente em sua obra-prima, o autor passou apenas três semanas em Canudos e valeu-se, em grande medida, do testemunho de terceiros para construir seu relato.
Euclides debruçou-se sobre o massacre de Canudos ao perceber a desonestidade dos relatos oficiais que publicavam-se à época. "Não foi Trump quem inventou as fake news. Os repórteres que cobriram Canudos eram militares, muitos deles combatentes, e publicavam notícias falsas sobre o suposto perigo que aquelas pessoas representavam", explicou a especialista. O próprio Euclides, no entanto, vinha de formação militar, o que supôs um conflito que, para Galvão, também ficou impresso no livro. "O leitor pode acompanhar na obra a tensão e o sofrimento de quem a escreve. Ele acreditava verdadeiramente em uma instituição que agora matava o povo que deveria proteger".
A especialista também compartilhou com o público detalhes curiosos do escritor. Os Sertões, publicado em 1902, bateu um recorde brasileiro à época ao ganhar três edições nos três primeiros anos de publicação. Isso deu rédea solta, de acordo com Galvão, ao "transtorno obsessivo-compulsivo emendador" de Euclides. De acordo com a especialista, durante esse período, o escritor apagou, uma por uma, cerca de mil "vírgulas vagabundas" da primeira edição.
(...)
Joana Oliveira, El País, Paraty, 11/07/2019,11:28 hs
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