sábado, 26 de outubro de 2019

QUANDO AS RUAS QUEIMAM

“Um mar de tranquilidade”. Fora assim que o presidente chileno Sebastian Piñera havia definido seu país, antes da população ir às ruas para não mais sair, queimar prédios, desafiar toques de recolher, decretos de emergência e ser assassinada pelo seu próprio governo. Até agora 18 mortos, sendo uma criança de quatro anos: algo que seria mais correto descrever como um puro e simples massacre. Depois do exército cometer tais assassinatos, vimos Piñera em cadeia nacional pedindo perdão pela insensibilidade diante dos problemas sociais que ele aparentemente sequer sabia existir.

De fato, os que nos governam parecem ter uma definição muito peculiar de tranquilidade. Isto já aconteceu outras vezes. Em 2011, os países árabes pareciam “tranquilos” até que um trabalhador tunisiano ateou fogo em seu próprio corpo, imolando-se em praça pública, abrindo uma sequência de mobilizações populares que derrubou governos e colocou novamente a política nas ruas. Essa sequência de insurreições acabou por chegar até mesmo ao Brasil, que em 2013 vendia para o mundo interior a versão de que era “um mar de tranquilidade” e de estabilidade tropical.

Agora, talvez estejamos diante de uma segunda onda de insurreições que parecem seguir, mais ou menos, o mesmo padrão, seja no Chile, no Equador, na França, no Líbano. Começa-se com uma rebelião contra um medida econômica punitiva para os mais pobres: aumento de imposto de gasolina, aumento de passagens de transporte público, criação de taxa em uso de Whatsapp. A pauta parece pontual mas ela rapidamente se alastra expondo um descontentamento profundo e estrutural com as condições econômicas e sociais. Os governos imediatamente agem mobilizando aparatos impressionantes de violência e controle. A França dos coletes amarelos conta presos em manifestações aos milhares. Cenas de jovens secundaristas de Mantes-la-Jolie de joelhos, em fileira e com as mãos na cabeça circundados por policiais rodaram o mundo. Não por acaso, elas pareciam saídas da Segunda Guerra.

Depois de compreender a ineficácia da violência extrema, os mesmos governos passam à negociação. Mas agora descobrem que de nada adianta voltar atrás nas medidas econômicas. A população quer o fim desses governos, ela sabe que as decisões serão sempre tomadas ouvindo interesses que lhes são contrários. Um setor fundamental da sociedade descola-se da sua aderência aos princípios gerais da governabilidade. Ela está disposta a seguir novos rumos.

Este é um ponto central para compreendermos essa segunda leva de insurreições mundiais: elas recolocam em circulação a experiência da luta de classes e de recusa a ser governado por quem tem compromisso com políticas de empobrecimento. Muitos analistas percebem termos dessa natureza como resquícios arcaicos de algum Museu das Ideias Perdidas. Sua aderência à crença de que a história terminou na defesa da democracia liberal tal como a conhecemos até agora os impede de compreender o sentido de processos de desidentificação generalizada com o poder. Processos que eles procuram colocar todas na conta do “populismo” e de formas de “regressão” das massas para fora dos acordos de gestão que pareciam aceitos por todos.
(...)

Vladimir Saflate, El País, 24/10/2019, 11:49 hs

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