PAULO FREIRE: 1964 OU 2019?
Quando os militares tomaram o poder em 1º de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na capital. Apenas dois dias antes, Carmita havia sugerido que ele voltasse a Brasília de imediato, porque as tensões pareciam se agravar decisivamente. Retornado às pressas, Paulo se surpreendeu ao procurar Júlio Furquim Sambaqui e ser convidado a acompanhar a leitura de uma conferência que o ministro daria dali a alguns dias. O chefe queria sua opinião. Incrédulo com a ingenuidade de Sambaqui, Paulo o alertou para o que lhe parecia um quadro de grave instabilidade institucional — e para a improbabilidade de ocorrer qualquer nova atividade do governo que representavam. No dia seguinte, os militares se instalariam no poder.
O ambiente político tornou-se tenso, com notícias desencontradas de todos os lados: haveria resistência da população? O Governo deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.
Com lançamento previsto para 13 de maio, o Programa Nacional de Alfabetização seria extinto em 14 de abril, treze dias depois do golpe militar. O novo Governo aproveitou a ocasião para fazer duras acusações ao trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país. Acabava ali o sonho de lançar 60.870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em 1964, 8,9% do total na faixa de quinze a 45 anos que não sabiam ler nem escrever. A preocupação maior de Paulo era agora com o imponderável, um futuro incerto e perigoso para ele e sua família diante de tais acusações e do clima de perseguição política que se instalara.
Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar cada vez mais complicada.
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Sérgio Haddad, El País, 23/10/2019, 19:36 hs
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