terça-feira, 4 de outubro de 2011


PROBLEMA DA BESTEIRA[1]
                                                                                     
                                                                        
                                         
                  O  Eu individual  adota  formas exatas ou pelo menos  adequadas à  sua  posição  superior. Recolhe em si  o que  manda  a consciência como   pensamento reto.  Afinal, este assume  maior segurança  frente  ao caos, na medida em que se torna  o  pensamento humano. Um mundo imediato e visível  (à frente)  lhe outorga o sentimento de  proprietário do tempo.  É uma  forte  emoção, e se não a obtiver,  pelo menos experimenta  o prazer  do roteiro  da  sua    vida.   “Este sou  eu”. A base  de  tal   sucesso é  a convicção de que  o mundo é  isso aí, não  sendo  possível o impossível. As  coisas  caminham estáveis.   No entanto, as  formas  do Eu, sem que  se  saiba, são   fluidas   e rotas. Enquanto  esticava a mão  até um semelhante,   uma  sensação de  dever  cumprido  lhe  roçou  a alma,  acariciou  a  visão de si   como a  de uma nave  espacial a  caminho de  outros  sistemas  solares. Pensando em onde  estariam tais   sistemas, e  onde  ele  estaria,   acorda  no meio da noite  sob    intensa  sudorese.  A  hora   perfura o íntimo. “Que  houve  querido?”, é  a  voz macia  da    esposa. Ele acorda, levanta-se, acende a luz, e de  súbito, que  se passa?  O espelho  não reflete a sua  imagem. “Leôncia,  você está  me  vendo  no espelho?” “Eu vejo  você,  sim,  querido”.  A   esposa não  o  entende. Para  ela, ele é  ele, uma identidade,  quem duvidaria?  Mas o Eu  insiste  em  dizer  que  a  sua  imagem  não aparece.  Teria  se tornado  um vampiro?  Nunca  acreditou nessas  coisas. Resolve, então,    conferir uma  a    uma    as  superfícies-reflexos  da casa.   Em todas ele  não está. Por  fim, tenta  se  enxergar no  brilho  dos  olhos de Leôncia, mas  aí só encontra  o reino do Opaco. Então, quando  o   Eu enfim vacila e  as  palavras  lhe  chegam desconectadas, o nosso  herói  começa  a descida aos infernos.  Seus intestinos misturam-se   aos  demais  órgãos das  profundezas. O Eu  se  torna   uma   busca  especular. No caminho do corpo despedaçado   acaba  por  se perder    em  labirintos  insondáveis.   Jamais   se   encontra  se  não   em átomos,  resíduos,  cloacas  fétidas.   Passaram-se  milênios.  No retorno das  entranhas,  o nosso herói foi ajudado  (por  quem?) e se tornou o  homem  superior. Adota o  Eu   e   a   máscara de  formol.  Hoje, quando   fala,  abre-se,  à  sua  frente,  um  Gigantesco   Espelho.   São  as   massas  que  o  ouvem atentamente,    o   aplaudem sem cessar,    prontas  para  o abate.




Antonio Moura


[1]  Ver   Deleuze, G., in Diferença e  repetição ,Rio, Graal, 1988, cap. III, p.247 

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