PROBLEMA DA BESTEIRA[1]
O Eu individual adota formas exatas ou pelo menos adequadas à sua posição superior. Recolhe em si o que manda a consciência como pensamento reto. Afinal, este assume maior segurança frente ao caos, na medida em que se torna o pensamento humano. Um mundo imediato e visível (à frente) lhe outorga o sentimento de proprietário do tempo. É uma forte emoção, e se não a obtiver, pelo menos experimenta o prazer do roteiro da sua vida. “Este sou eu”. A base de tal sucesso é a convicção de que o mundo é isso aí, não sendo possível o impossível. As coisas caminham estáveis. No entanto, as formas do Eu, sem que se saiba, são fluidas e rotas. Enquanto esticava a mão até um semelhante, uma sensação de dever cumprido lhe roçou a alma, acariciou a visão de si como a de uma nave espacial a caminho de outros sistemas solares. Pensando em onde estariam tais sistemas, e onde ele estaria, acorda no meio da noite sob intensa sudorese. A hora perfura o íntimo. “Que houve querido?”, é a voz macia da esposa. Ele acorda, levanta-se, acende a luz, e de súbito, que se passa? O espelho não reflete a sua imagem. “Leôncia, você está me vendo no espelho?” “Eu vejo você, sim, querido”. A esposa não o entende. Para ela, ele é ele, uma identidade, quem duvidaria? Mas o Eu insiste em dizer que a sua imagem não aparece. Teria se tornado um vampiro? Nunca acreditou nessas coisas. Resolve, então, conferir uma a uma as superfícies-reflexos da casa. Em todas ele não está. Por fim, tenta se enxergar no brilho dos olhos de Leôncia, mas aí só encontra o reino do Opaco. Então, quando o Eu enfim vacila e as palavras lhe chegam desconectadas, o nosso herói começa a descida aos infernos. Seus intestinos misturam-se aos demais órgãos das profundezas. O Eu se torna uma busca especular. No caminho do corpo despedaçado acaba por se perder em labirintos insondáveis. Jamais se encontra se não em átomos, resíduos, cloacas fétidas. Passaram-se milênios. No retorno das entranhas, o nosso herói foi ajudado (por quem?) e se tornou o homem superior. Adota o Eu e a máscara de formol. Hoje, quando fala, abre-se, à sua frente, um Gigantesco Espelho. São as massas que o ouvem atentamente, o aplaudem sem cessar, prontas para o abate.
Antonio Moura
[1] Ver Deleuze, G., in Diferença e repetição ,Rio, Graal, 1988, cap. III, p.247
Antonio Moura
[1] Ver Deleuze, G., in Diferença e repetição ,Rio, Graal, 1988, cap. III, p.247
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