Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
PENSAMENTO COMPLEXO
Os psicofármacos muito avançaram em termos de tecnologia científica. Contudo, há , no mínimo,dois dados a serem considerados: 1- os psicofármacos só produzem efeitos sobre o sintoma, sempre o sintoma, nada mais do que sobre o sintoma ; 2-os mecanismos de ação dos psicofármacos que ainda não foram devidamente compreendidos; portanto, achatar toda a complexidade das interações psico-neuro-químicas à " recaptação de serotonina", por exemplo, ou outros enunciados menos simplórios, é um atentado à inteligência da metodologia científica. Em todo caso, os problemas não estão aí, não estão na esfera da ciência, mas na da política. Ma, e o que a doença do paciente tem a ver com a política? O que?
Antonio Moura
SOBRE A CLÍNICA DA DIFERENÇA
Voltemos à rostidade. O paciente é vestido pela moral (o eu-consciência) e pela química (o cérebro). Passa a ser um produto-organismo disponível para ser tratado, consertado, adaptado, normalizado. É o trabalho (duro) do psiquiatra na linha de frente. Há, porém, outras linhas que chamamos de devires. Elas não fabricam o paciente, mas as condições para alguém deixar de ser paciente. Tal perspectiva inclui o psiquiatra em outra concepção de doença. Destacamos: 1-O paciente não é um individuo, e sim uma multiplicidade; é irredutível ao eu e à consciência, mas plugado no coletivo. É do mundo, é o mundo. 2- Na entrevista, a sua fala chega misturada a falas não verbais (semióticas); mil falas estão presentes em uma fala. 3- A inteligibilidade do discurso está inscrita na Vivência, e não o contrário; 4- O uso prévio e exclusivo de fármacos - por aparelhos de medicar - produz um rosto-clichê que enevoa a percepção clínica; 5- Antes de “ser” um diagnóstico, o paciente é um processo afetivo; pode estar abortado, mas é um processo; 6- O delírio (se houver) e o comportamento estão submetidos ao contexto onde ele vive. Como então, funcionam essas linhas? (...)
Antonio Moura
terça-feira, 29 de novembro de 2011
LIDAR COM O CAOS
Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras , que também não dominamos (...)
G. Deleuze e F. Guattari - do livro O que é a filosofia?
TUDO É POLÍTICA
Reconhecer uma dimensão politica constitutiva das ciências é, antes de tudo, compreender por que o conflito entre as ciências, é, antes de tudo, compreender por que o conflito entre as ciências e seus intérpretes é previsível assim que esses últimos comecem a julgar, ou seja relativizar, a distinção entre ciência e não-ciência. Os cientistas, ao longo de sua história, mostraram-se notavelmente intolerantes, ou mesmo indiferentes, para com os meios utilizados por seus intérpretes para dar conta desta distinção. Eles mesmos adiantaram a esse respeito toda sorte de interpretações, do positivismo puro à busca mística (...)
Isabelle Stengers in A invenção política das ciências
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
O QUE É SAÚDE?
A saúde não é assunto só da medicina, muito menos a saúde mental. Não é possível falar de uma saúde mental oficial. Não há decreto para o conceito, porque não há o conceito e sim conceitos criados sob contingências sociais e políticas. O conceito oficial de saúde mental é uma instituição, modelo abstrato de intervir sobre o outro, o paciente. A saúde mental deixa de ser um processo para se tornar um aparelho. Daí, trabalhar a partir da experiência do paciente, mormente na psicose, requer do técnico ir “além” desse aparelho. Este não dá conta da complexidade das crenças e dos afetos. Usamos a loucura como uma espécie de não-conceito, campo de intensidades fluidas. Ele segue o fluxo dos devires, empurra e isola a saúde mental para o campo da repetição serial do diagnóstico. Enfim, libera um espaço de criação e redefine o propósito de encontrar o paciente e não o de examiná-lo. Sabemos que isso é difícil pois a saúde mental opera num regime binário de significação: normais ou doentes. É uma marca de poder. Conta com dispositivos reducionistas para chegar ao paciente. Entre eles, o exame psíquico. Este enquadra a expressão do outro como doença, patologia, síndrome, transtorno, tanto faz (...)
Antonio Moura
ARTE E CLÍNICA
A criação e o sexo, portanto, nos remetem a um "outro plano" - tentativa de aproximação deste "outro plano" tem marcado a obra de Deleuze e Guattari e tem recebido várias denominações: plano de imanência, virtual, inconsciente, caos...
As trajetórias contemporâneas no campo das artes plásticas envolvem principalmente a recusa ou a problematização da representação. O estudo da arte contemporânea é elucidativo para o estudo da subjetividade contemporânea, já que coloca questões que atravessam os dois campos problemáticos. Assim, algumas experimentações no campo da arte podem ser transmitidas à clínica, entendida enquanto prática também experimental(...)
Cristina Rauter - in Subjetividade, arte & clínica
domingo, 27 de novembro de 2011
JOGAR CONVERSA FORA
- Como você vê hoje a situação do Brasil?
- De que ponto de vista?
-Bem, sobre a Educação...
-Mal-educada.
-Resposta seca... e a Saúde?
-Doente grave.
- Você é azedo, hein?
- Não sou. São os fatos.
-Mas é como você interpreta os fatos...
-Não interpreto. Eles é que me fazem assim...
-Assim como?
-Um brasileiro.
-Não entendi.
-É pra isso mesmo...
-Você é louco?
-Ainda não.
-Procure um psiquiatra; ainda pode evitar a loucura...
-Eu sou psiquiatra.
-Ah, é?
-Sim...sou...
-Não parece...
-Ufa!
- Como você vê hoje a situação do Brasil?
- De que ponto de vista?
-Bem, sobre a Educação...
-Mal-educada.
-Resposta seca... e a Saúde?
-Doente grave.
- Você é azedo, hein?
- Não sou. São os fatos.
-Mas é como você interpreta os fatos...
-Não interpreto. Eles é que me fazem assim...
-Assim como?
-Um brasileiro.
-Não entendi.
-É pra isso mesmo...
-Você é louco?
-Ainda não.
-Procure um psiquiatra; ainda pode evitar a loucura...
-Eu sou psiquiatra.
-Ah, é?
-Sim...sou...
-Não parece...
-Ufa!
A PRODUÇÃO DE ARTE É IRREVERSÍVEL
O Encontro é antes de tudo uma produção do desejo de arte. Ou melhor, o desejo como arte precede a técnica. Mas, o que é a arte? Qual o significado da experiência da arte nesse percurso conceitual? Também poderíamos perguntar: como fazer arte? A arte é um estilo como também um exílio, um dom, uma potência de viver fora das normas prévias, inclusive as da linguagem verbal.Neste sentido, a clínica dos transtornos mentais , sob o atual paradigma (neuro-científico), nunca esteve tão distante da subjetividade do paciente. O paciente como subjetividade é um processo composto por linhas singulares que se misturam umas às outras. O sistema global dessas linhas compreende o que se chama de organismo, mais precisamente organismo visível. A medicina tecnológica referenda essa concepção exercitando a prova dos nove da patologia ao fazer “ ver” a doença ou até mesmo ver a “ sua causa” como nos exames por imagem, nas cifras de exames de laboratório, etc. São realidades clínicas úteis sem dúvida, mas que esbarram diante de linhas subjetivas abstratas, daí, sem formas (...)
Antonio Moura
sábado, 26 de novembro de 2011
O CÉREBRO-PET
A neurociência costuma reificar o cérebro. Eis a origem dos erros relativos aos estudos neurocerebrais sobre a subjetividade. Óbvio que esta não é uma coisa, tampouco uma coisa mecânica. No entanto, mantida tal premissa, estão justificadas manipulações/coerções sobre o comportamento humano: uma política do controle da alma cientificamente respaldada. Quem contesta?
Antonio Moura
CLÍNICA
Partimos do coletivo interiorizado em subjetivações. Desse modo, somos todos multiplicidades expressando maneiras de ser. Crenças, crenças, de onde vieram tantas? O cérebro é uma crença. Diga em que você acredita. Talvez no remédio para o seu mal, no seu próprio mal, ou em você próprio. Enfim, as crenças, tão frágeis, tão poderosas, norteiam e fazem consistir o real. Entre elas o delírio insinua-se como tecido de sustentação para um eu franzino. No entanto, é preciso viver. A psiquiatria não quer isso. Ela só quer sobreviver às custas da reprodução de uma dependência abjeta aos seus remédios. São tratores da mente. Desconsideram a finura existencial dos espíritos livres. Anseiam por um mundo clean. Ao contrário, há remédios não cadastrados que impulsionam a mente para um desmentido radical. O corpo “essencial” é invisível e não capturável pelos ardis da tecno-medicina. O coletivo é a abstração concretizada na carne, onde vasos, nervos, ossos e vísceras contém o infinito. Chame a aurora no lugar do médico. Confesse ao sol no lugar do psiquiatra. Brinque com a lua no lugar do hipnótico. Dá certo (...)
Antonio Moura
POESIA DO DIA
O poema é antes de tudo um inutensílio.
Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.
Há que se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.
Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.
Ninguém é pai de um poema sem morrer.
Manoel de Barros
DEVIRES NO ESCREVER
É possível que escrever esteja em uma relação essencial com as linhas de fuga. Escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é forçado a seguir, porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos embarca nela. Escrever é tornar-se, mas não é de modo alguma tornar-se escritor. É tornar-se outra coisa. Um escritor de profisssão pode ser julgado segundo seu passado ou segundo seu futuro, segundo seu futuro pessoal ou segundo a posteridade ("serei compreendido dentro de dois anos, dentro de cem anos", etc). Bem diferentes são os devires contidos na escritura quando ela não se alia a palavras de ordem estabelecidas, mas traça linhas de fuga.
G. Deleuze e C. Parnet - do livro Diálogos
AS DEPRESSÕES: duas falas
Paciente 1- 19, homem, classe média alta, estudante de engenharia civil; havia tentado suicídio uma vez; tentou cortar o pulso; foi atendido em emergência e se salvou; perguntado sobre a tentativa, respondeu não ver sentido em nada no mundo atual; na presença da genitora, esta comentou: " meu filho, você não é uma pessoa triste; até que é um rapaz alegre", ao que respondeu: "sim, eu sou alegre, o mundo é que é triste".
Paciente 2- 45, mulher, com queixa de de "sempre fui pra baixo, meio deprimida; chorava muito"; classe média, emprego com boa remuneração, situação econômica estável, casada (classifica como "bom" casamento ), relaciona-se muito bem com duas filhas de um casamento anterior, goza boa saúde física; em geral tem uma "vida boa e arrumada" ; na segunda entrevista, disse: " tá tudo bem, tá tudo certo com o mundo; o problema sou eu; tem alguma coisa errada comigo".
Comentário: no primeiro caso, o paciente acusa o mundo; no segundo, a paciente acusa a si mesma; clinicamente poder-se-ia dizer que o diagnóstico é o de uma depressão? Mas, afinal, o problema é o mundo ou o sujeito? Claro que temos poucos dados anamnésticos para uma discussão; no entanto, queremos tão apenas pontuar o nexo irrecusável das depressões com o Mundo, ou , no que dá no mesmo, com a Ordem Socio-Cultural. Que se argumente: todas as patologias "mentais" tem esse nexo, claro. Ora, o caso das depressões se destaca por dois aspectos, no mínimo:1-há um claro aumento da sua morbidade nos tempos atuais; 2-a vivência depressiva incorpora a um só tempo, dados bioquímicos, psicológicos, sociais, culturais, econômicos, religiosos, metafísicos, entre outros... toda uma multiplicidade girando em torno da pergunta: a vida merece ser vivida? Este me parece o móvel para uma ampla pesquisa (não atrelada a um bioquimismo tosco) que pode esclarecer alguns enigmas do deprimido na contemporaneidade.
Antonio Moura
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
O PODER NÃO FALA, MAS FAZ FALAR
O diagnóstico está nas ruas. Há uma clínica das ruas. Pelo menos, ela começa aí. Ouve-se dizer: “ ele é um esquizofrênico” ; “está maluco” ; “ ele enlouqueceu” ; “ não está bom da cabeça” ; “ tem um parafuso frouxo”; “ ele é meio desmiolado” ; ‘trata-se de um caso de psicose esquizoafetiva”; “ é um bipolar com traços histéricos” , etc...; poderíamos enumerar centenas de enunciados que configuram um diagnóstico. Não importa que tais diagnósticos sejam pouco elaborados, imprecisos. O que conta é o fato de que o diagnóstico em psiquiatria é mais que um enunciado. É simultaneamente um ato que se inscreve no corpo do diagnosticado. Isso tem um efeito sobre a vida de alguém. Então, diferentemente da medicina somática, o diagnóstico psiquiátrico efetua-se sobre o comportamento, e até certo ponto chega a produzir tal comportamento (...)
Antonio Moura do livro Linhas da diferença em psicopatologia
COMO FAZER?
Antonio Moura
Fazer a diferença em psicopatologia é ESCUTAR o paciente. Tal escuta nada tem a ver com a escuta psicanalítica, sempre preocupada em capturar dobras edipianas e sabotar o desejo. Tampouco com a psiquiatria biológica, a que "escuta" o cérebro. Trata-se de outra escuta, outras escutas, sempre no plural, radicalmente no plural: o universo das multiplicidades...
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
NÃO AGIR
Não demonizar a psiquiatria. Não desenvolver com ela uma relação persecutória. Não fazer uma crítica piedosa, reativa, ressentida. Não se dobrar ao poder psiquiátrico, nem tampouco reproduzi-lo. Não personalizar a crítica, não focá-la no psiquiatra. Não cair no jogo das identidades profissionais. Não se nivelar éticamente, políticamente, estéticamente, clinicamente, à psiquiatria. Não falar da psiquiatria, não comentar nem mesmo sobre a sua ignorância teórica. Sobretudo, não atacá-la, mesmo que ela esteja atacando a Vida e seus devires.
É que temos mais o que fazer. Fazer outras coisas, fazer a Diferença...
É que temos mais o que fazer. Fazer outras coisas, fazer a Diferença...
Antonio Moura
Excerto de auto-entrevista - julho de 2007
P- A partir de que autores você estrutura essas idéias?
R- Haveria que citar muitos nomes. Contudo, destaco os que são, sem dúvida, essenciais para construção da base teórica: Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Acrescento também a contribuição da Análise Institucional (Gregório Baremblitt, entre outros) e o pensamento de Jacob Levi Moreno, criador do psicodrama.
P-O seu discurso é contra a psiquiatria?
R- De modo algum. A psiquiatria jamais é recusada em sua contribuição científica e tecnológica. Trata-se de outra coisa. Ela é, isto sim, interpelada e posta no seu “devido lugar”, submetida às injunções sócio-histórico-político-econômicas. Buscamos retirar o caráter de essência intocável do saber psiquiátrico e conectá-lo com saberes múltiplos vindo de áreas heterogêneas. Assim, talvez seja possível “oxigenar” as concepções e as práticas psiquiátricas sobre os transtornos mentais. Essa é a idéia.
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
LOUCURA DO ACASO
A experiência da loucura é algo lancinante e intenso: pulsa incessantemente e sem perdão. Está no mundo, é o mundo. Para alguns pode ser destrutiva. Para outros, não. De todo modo, há que criar estilos de prudência ao lidar com fluxos nômades e desterritorializados. É certo que as saídas "ser um normal" ou pior, "ser um doente mental", não são saídas, mas buracos negros enregelados... Não há fórmulas. Tente o Acontecimento...
Antonio Moura
UMA ÉTICA
-Não admire as pessoas à distância - disse ele - Essa é a maneira mais certa de criar seres mitológicos. Aproxime-se do seu professor, fale com ele, veja como ele é como homem. Faça um teste com ele. Se o comportamento do seu professor for o resultado da sua convicção de que ele é um ser que vai morrer, então tudo o que ele faz, não importa quão estranho seja, deve ser premeditado e final. Se o que ele diz são apenas palavras, ele não vale um vintém (...)
C. Castañeda - do livro O lado ativo do infinito
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
A CIÊNCIA "NEUTRA"
Era idílico, sim. Naquele tempo, lembra-se, você podia ser um cientista sem sentir-se culpado; podia ainda acreditar que estava trabalhando para maior glória de Deus. Hoje em dia não lhe permitem ao menos o conforto de enganar-se a si mesmo. Você é pago pela Marinha e vigiado pelo FBI. Nem por um só momento lhe consentem que esqueça os seus verdadeiros objetivos (...)
A. Huxley - do livro O gênio e a deusa
O que se costuma chamar de “pensamento” são atividades cognitivas marcadas pelo uso representativo do conceito. A representação ( identidade, consciência, eu, etc) é pura Conserva. A psiquiatria funciona segundo eixos representativos evidentes. Tomemos como exemplo o de “especialidade médica”. Ele neutraliza investidas críticas. Em tempos de especialismos, o suposto saber representa. O sonho da representação é estancar os devires. Delirar é um processo cujo combustível é o desejo-produção. Ele explode os esquemas físico-químicos (que remédio prescrever?), familiaristas (quem é o culpado?), dilemas da consciência (ser ou não ser?) ou as vicissitudes do eu( quem sou?). Assim, o pensamento como cognição é muito pobre para se fazer chegar à subjetividade dita patológica. No entanto, a psiquiatria atual se serve dele numa Axiomática conectada ao modo de produção capitalista. É uma aliança embutida na fraseologia do especialismo. Desaparecem as possibilidades de pensar diferente porque o pensamento está dado como cognição redundante do real. A psiquiatria não mais se pergunta o que é o real, de que real se trata. Gigantesco narcisismo, ela é o próprio real (...)
Antonio Moura
terça-feira, 22 de novembro de 2011
DESEJO-PRODUÇÃO
A moça e a criança não se tornam, é o próprio devir que é criança ou moça. A criança não se torna adulto, assim como a moça não se torna mulher; mas a moça é o devir-mulher de cada sexo, como a criança é o devir-jovem de cada idade. Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade. saber amar não é permanecer homem ou mulher, é extrair de seu sexo as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos, os n sexos que constituem a moça desta sexualidade (...)
G. Deleuze e F. Guattari - do livro Mil platôs
PENSAR AS DEPRESSÕES
As depressões sub-clínicas tem aí um lugar importante. Escapam da grade psicopatológica clássica e se expressam socialmente em múltiplos papéis, máscaras insondáveis. Uma cultura da depressão configura a depressão como tijolo onde se apóiam as ações cotidianas de manutenção do tempo. Corpos encadeados em séries familiares, escolares ou médicas. O organismo deprimido é um corpo que perdeu as conexões com o exterior, com o fora, com as forças ativas, com o inconsciente produtivo, com o acontecimento, com o Isso. Significa dizer que seus contornos seguem os estratos onde o desejo estanca a produção de si. Os estratos são estabelecidos pelos órgãos. Assim, a depressão ataca os órgãos e por extensão a organização dos órgãos. Se a depressão pode ser considerada uma doença no sentido médico, ela é uma doença dos órgãos submetidos a um comando central que é do organismo. Ora, entre todos os órgãos, um está numa situação especial em relação às forças coletivas. É o cérebro. Ele se coloca no limite da relação do homem com a natureza que o precede. Assim, as alterações passíveis de modificação mais rápida são as do cérebro. O campo neuro-químico ilustra bem essa hipótese. Um paciente deprimido tem o cérebro deprimido. O uso de fármacos nesse tipo de depressão é aceito e promovido como o tratamento mais adequado. Isso significa que ele ataca a depressão em sua alteração mais objetiva: os neurotransmissores. O pressuposto epistemológico é o de que “a depressão é um problema no cérebro” e assim deve ser corrigida. Outros tratamentos como a Estimulação Magnética Transcraniana ou o antigo ECT obedecem a lógica do cérebro avariado . Ainda assim, não se sabe ao certo o mecanismo de ação desses dispositivos. Mas nada há de errado em trabalhar com os recursos disponíveis para aliviar o sofrimento humano ou até mesmo salvar vidas como nos casos de suicidas potenciais. A questão passa por outro registro, o do corpo desejante e por extensão pelos modos de subjetivação. As depressões “biológicas” são um caso de subjetivação inscrita nos estratos físico-químicos do organismo. Daí, alguns dados clínicos lhe caracterizam: 1- Os pacientes tendem à inibição psicomotora severa, às vezes chegando à passividade extrema nos casos (raros) de catatonia. 2-O contato em termos de “feeling” do terapeuta costuma se aproximar das psicoses; a antiga psicose maníaco-depressiva atesta esse “parentesco” clínico-etiológico. 3- O desencadeamento dos episódios não segue uma lógica de compreensibilidade da consciência; ou seja, os sintomas aprecem muitas vezes sob “céu azul”; tudo vai bem e tudo vai mal. 4- nos períodos de remissão do quadro, a adesão ao tratamento é difícil. Estes 4 dados reforçam a hipótese de uma depressão com traços fásicos e uma subjetividade com estilo psicótico. A alternância com a mania não é rara. Parece, pois, uma doença encaixada no paradigma médico. Essa lógica epistemológica criou um modelo único para as depressões: o bio-médico. Melancolia, depressão endógena, depressão psicótica, psicose depressiva, transtorno bipolar, depressão recorrente, são nomes para designar o humor como uma secreção, a sua alteração e a possibilidade de influir, com remédios químicos, sobre a produção de serotonina e outros neurotransmissores. Nasce a depressão entificada, essencializada como doença incurável ou só controlável. Ela se afirmou na última década do século passado como O transtorno mental. A psiquiatria recolheu os frutos. Os neurocientistas contribuíram com sua parcela de cientificidade e fé. Então, o modelo de depressão da psiquiatria é de cunho biologicista, ainda que os manuais considerem o tripé etiológico bio-psico-social ou a psicoterapia como coadjuvante ao fármaco. Se a depressão é vista como estando “dentro” do cérebro, ou de origem cerebral, isso se torna um axioma. Sim, em geral há melhora do quadro sintomático, mormente nas depressões graves. E as outras depressões? (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
O DIAGNÓSTICO PSIQUIÁTRICO E A CLÍNICA DA DIFERENÇA
Fiel às suas origens embrenhadas em relações de poder, a psiquiatria consiste numa forma social ou numa forma de relação social que se propaga e se institui como subjetivação psiquiátrica. Isso atinge intensamente a todos os que estão envolvidos com a problemática do louco, inclusive o próprio louco, que passa a se chamar “psicótico”. É importante frisar, de acordo com a definição institucional, que não nos referimos à psiquiatria apenas como organização visível ( o hospital) nem tampouco como dispositivo (o ato médico). Falamos da psiquiatria como uma forma social tanto mais abstrata e invisível quanto mais concreta e incisiva nas suas práticas de subjetivação. Pensar psiquiatricamente, sentir psiquiatricamente, perceber psiquiatricamente, agir psiquiatricamente etc. Há, pois, uma subjetividade psiquiátrica que atravessa segmentos não psiquiátricos no campo da saúde mental, como é o caso da psicologia. A forma-psiquiatria se faz na subjetividade dos que a ela servem e/ou apóiam-na, o que a torna difícil de ser captada para assim ser possível construir modos de pensar e fazer não psiquiátricos. Isso é tão mais difícil na medida em que o diagnóstico é uma prática social conectada a duas outras práticas: segregar e tratar. São atos. Um não existe fora do outro e sem o outro. Formam alianças “naturais” , reforçando-se mutuamente. O objetivo último divide-se em dois: o aparente, segundo o discurso humanista da medicina: curar, melhorar, salvar o paciente das garras da doença. O outro, talvez inconfessável, diz respeito à manutenção do status da psiquiatria como especialidade médica, e portanto, como segmento social importante (...)
Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
DEVIRES
Antonio Moura
O paciente vive entristecido pela Grande Máquina. Sua alegria foi aniquilada em plena vigília. Do nada. Ninguém assume a autoria dos pequenos crimes. Eles são administrados em nome da paz de espírito. Ora, o espírito também caga. Avise aos últimos palhaços que a arte foi solapada em nome do ideal dos homens de branco. Ao que me consta, nada mudou no sulco das bocas. Elas falam rachando dentes. Mastigam auroras nati-mortas. Mas o Rosto carrega uma expressão justa, como negar? A bondade natural dos humanos. Ó Lovecraft, socorrei! Apenas uma cidade respirando um arco-íris, manda por favor... Não falo por mim. Por mim, ó... Falo pelo que não sou, falo por devires. Escutai a canção do mundo... Você dança? O paciente sucumbe à Ordem. Por favor, o senhor pode me dizer as horas? Já vai tarde o tempo dos mestres, com todo o respeito. Sonâmbulos da própria dor, como falar aos que não falam? A Grande Máquina é uma pequena dose de benefícios a curto e médio prazo. Ela se insinua na febre dos corredores infectos. Um susto, um sus. Tudo é contágio. Resistir à morte, querida, e fazer dessa vibração algo novo, será possível? Talvez um devir-amante imerso em trepadas millerianas. Bicho, perdoa o jeito canino: o que é necessário para viver por viver? Pacientes são pacientes demais. Armaduras químicas, lições de casa, manuais de sobrevivência, coisas simples, eles são normais. Eu queria um gosto de sol em você, em suas dores mais intensas e irremediáveis. Pena que a sombra dos quintais do passado anuncie sessões de tortura regadas à dinheiro. A entrega é às oito. Todos estarão lá, até o chefe da Facção Sinistra, aquele mesmo que começou a seduzir a multidão com truques de falar macio. Não tem jeito. Somos inocentes radicais.
O EU É UMA FICÇÃO
... por meio do pensar é posto o eu; mas até agora se acreditou, como o povo, que no "eu penso" jaz algo de imediatamente certo e que esse "eu" seria a causa dada do pensar, e por analogia com ela todos nós entenderíamos as outras relações causais. Por mais que essa ficção agora possa ser costumeira e indispensável - isso, somente, não prova nada contra o seu caráter fictício: uma crença pode ser condição da vida e, apesar disso, ser falsa.
F. Nietzsche - do livro A vontade de poder
domingo, 20 de novembro de 2011
DEPRESSÕES
Antonio Moura
As depressões são um tema muito importante nos tempos atuais [1]. A CID-10 inclui a maior parte delas no item “transtornos do humor”. Isso nos parece reducionista em função do destaque conferido ao humor . “O que é chamado de afeto ou humor, na Psiquiatria, é muito mal definido para constituir a base de uma categoria diagnóstica”. [2] Ele é posto como função psíquica passível de mensuração, ou pelo menos destacável em termos objetivos. Ora, as depressões são bem mais do que “transtornos do humor”, tanto referidas ao quadro clínico quanto à origem (etiologia). A não consideração da vivência do paciente é uma das raízes do problema. Mas não só. Há que registrar, entre outros fatores, o interesse da indústria farmacêutica nos quadros nosológicos tidos como de “alteração do humor”, já que este deve ser normalizado com remédios. O problema se coloca na própria avaliação psicopatológica. Começa, então, pela clínica. Desse modo, seja qual for a hipótese etiológica, o Encontro com o paciente é essencial como condição para uma atitude terapêutica (...)
[1] “ A depressão se encontra hoje em dia generalizada e quanto mais sobre ela se fala, se escreve e se pesquisa, tanto mais ela é encontrada nos mais insuspeitos recônditos de nossa civilização. O significante é realmente criacionista e o significante depressão parece ter engendrado o batalhão de sujeitos que assim qualificam seu estado d ´alma quando se encontram tristes, desanimados, frustrados,enlutados, anoréxicos, apáticos, desiludidos, entediados, impotentes,angustiados etc.Antes nós não os percebíamos? Onde se escondiam?” – Quinet, A., Atualidade da depressão e a dor de existir in Extravios do desejo – depressão e melancolia, A. Q. (org), Rio, Marca d´Água, 1999, p.87.
[2] Sonenreich, C., Estevão, G. e Silva Filho, L. de M. A., As depressões in Psiquiatria: propostas, notas, comentários, São Paulo, Lemos, 1999, p.100.
sábado, 19 de novembro de 2011
O que são vivências?
Antonio Moura
Usamos o conceito de vivência articulado aos problemas da clínica psicopatológica. Esta se compõe de linhas do desejo (afetos) e linhas do pensamento (crenças). Assim, o paciente, antes de tudo, sente e acredita. Sua vivência observada na clínica não é A vivência, mas uma vivência ou vivências que se expressam em signos nem sempre significantes. Tal perspectiva faz do exame psíquico um Encontro, podendo este ser bom ou mau a depender dos afetos e das crenças postos em jogo. Isso requer do técnico entrar em contato muitas vezes com um mundo que compreende algo incompreensível à consciência. Afeto e pensamento, desejos e crenças são territórios existenciais que fazem viver. As vivências são singularidades. O Incompreensível (“por que ele quer morrer”? ou “ele acredita nisso?”, etc) não remete a uma doença ou transtorno (o que dá no mesmo), mas antes a processos de vida que se expandem em linhas arriscadas e concretas. Considerar desse modo as vivências implica em situar o paciente para além do eu e substitui-lo pela vivência não médica, não psicológica, não humanizada. Ele vive o acaso, o desconhecido e o indeterminado, ainda que em pedaços e fora da consciência. Tudo isso pode ser intuído na expressão plural dos sintomas. Não há quadro psicopatológico estável, essencial, natural ou definitivo.Os afetos preenchem as crenças e as crenças expressam os afetos. Muitos afetos, bem como muitas crenças, não são classificáveis, não remetem a um código. Outros prevalecem no perfil de determinada síndrome, até parecendo ser exclusivos, como nos caso das depressões. Ora, o exame do paciente costuma ser mediado por subjetivações psiquiátricas e psicológicas encardidas em seu organismo... A tarefa do Encontro passa a ser então trair a semiologia instituída. Isso abre condições de possibilidade para avaliações não centradas no sistema mente/cérebro (conforme a psiquiatria biológica) ou na consciência do eu/objeto (conforme Jaspers). Os afetos “normais” e as crenças não delirantes misturam-se aos signos patológicos compondo agenciamentos coletivos nem sempre reconhecíveis. Falar em afetos é, pois, falar da intensidade das vivências. Eles são o corpo, não necessariamente o corpo-organismo, mas o corpo-desejo, o corpo sem órgãos. Quanto às crenças, estão inseridas na materialidade dos territórios existenciais. Remetem a um sistema de códigos, por vezes, particular, como na esquizofrenia (...)
O QUE AS CRIANÇAS DIZEM
A criança não pára de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais á atividade psíquica. O que o pequeno Hans reivindica é sair do apartamento familiar para passar a noite na vizinha e regressar na manhã seguinte: o imóvel como meio.Ou então: sair do imóvel para ir ao restaurante encontrar a menininha rica, passando pelo entreposto de cavalos - a rua como meio (...)
G. Deleuze - do livro Crítica e Clínica
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