VIAGENS IMÓVEIS - 02/02/2017
O psiquiatra viaja em mundos distantes. Arrisca saltos no abismo em patologias vistas de bem perto. Depois mete-se no tempo das noites loucas do Santa Mônica. Tão longe estão que se apresentam intactas e livres. Hoje há um tempo a fazer, a se fazer. O psiquiatra lembra que não é para lembrar, não é bom lembrar e diz que não há mais tempo para não se tornar. Ele flui e se esgueira sob as franjas da violência cotidiana. As palavras lhe soam bobas. Situações pesadas são ocas de sentido. Fazer o que? O psiquiatra se desloca pelos campos verdes do pensamento, aspira blocos de manhãs. Elas insistem em nascer. Ele passeia entre vultos certamente desconhecidos, embora com eles privasse da intimidade dos deuses da loucura e da arte. Beira a idade dos sem tempo para mais nada que não seja o tempo cortante, sangrando a carne do espírito. Sai o almoço? Que importa? O dia avança sem motivo, sem sentido, no rumo da curva dos olhos da menina que sorri de dentro da mania. Sem alegria e sem charme. Chame o doutor. Não há doutor. Um cara chega sem rosto e aquieta a enfermaria lotada na noite dos fogos de artifício. Tudo vai, tudo volta. O círculo das águas, o riso dos pacientes, o nó que não desata, a catatonia do sem voz. A hora é intensa e quente. Ele andou pelos pátios escuros e desérticos da madrugada de domingo no Santa. A ordem andava em plena desordem. Estaria de saída? Quem viria? O psiquiatra faz de suas próprias veias uma paixão inegociável. Tantos anos depois, tantos séculos se passaram, que quatro criaturas levam-no à procura de Kadath antes que chegue a primeira aurora da eternidade do desejo. Das quatro uma está tocada pelo rumores das novas vidas e sonhos diurnos nas dobras do mundo. A outra já salta e solta entre continentes o grito dos corpos que se levantam para dizer que vivem apenas a alegria. Uma outra tem a percepção fina do que acontece e quer saber onde está a resposta, mesmo sabendo que não há. Por fim, a última, mas não menos ligada, não menos bela, não menos apaixonante, espalha humor e espontaneidade na superfície da escrita, tornando-a doce e profunda. O psiquiatra, leitor do mundo e de si mesmo, revira-se na cadeira e não consegue esconder o reflexo nos seus olhos miúdos do universo olhando para ele.
A.M.
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