Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
O Estado, sua polícia e seu exército formam uma gigantesca empresa de anti-produção, mas no seio da própria produção, e condicionando-a. Encontramos aqui uma nova determinação do campo da imanência propriamente capitalista: não apenas o jogo das relações e coeficientes diferenciais dos fluxos descodificados, não apenas a natureza dos limites que o capitalismo produz numa escala cada vez mais larga enquanto limites anteriores, mas a presença da anti-produção na própria produção. O aparelho de antiprodução não é mais uma instância transcendente que se opõe à produção, limita-a ou a freia; ao contrário, ele se insinua em toda parte na máquina produtora, e a esposa estreitamente para regrar sua produtividade e realizar sua mais-valia (...) (...) É claro, o cientista não tem enquanto tal nenhuma potencialidade revolucionária, ele é o primeiro agente integrado da integração, refúgio da má consciência, destruidor forçado da sua própria criatividade. (...)
G. Deleuze e F. Guattari - do livro O anti-édipo
ATENDIMENTO PRAGMÁTICO
Paciente- Dr., não acredito em mais nada. Quero morrer.
Psiquiatra - Vou lhe passar um comprimido de rivotril- 2 mg, três vezes ao dia.
Paciente- Isso resolve, doutor?
Psiquiatra-Resolver mesmo, não. Mas é a única saída.
Paciente- Como assim, doutor?
Psiquiatra-Vá por mim. Falo por experiência própria...
Paciente-?
Psiquiatra-!
IMPÉRIO: A NOVA ORDEM MUNDIAL
Não creio que os migrantes fujam somente da miséria; penso que eles buscam liberdade, saber e riqueza. O desejo é uma prática construtiva, e ele é tanto mais forte quanto mais está implantado na pobreza: a pobreza, de fato, não é simplesmente miséria, mas é a possibilidade de muitíssimas coisas, que o desejo indica e o trabalho produz.
A. Negri - do livro Cinco lições sobre Império (*)
(*) Hardt, M. e Negri, A. - Império, tradução: Berilo Vargas, Rio de Janeiro, Record, 2001.
ÉTICA DO ENCONTRO
As críticas à psiquiatria vêm de múltiplos lugares e enfoques. Faz-se necessário situá-las a partir da inserção sócio-político-institucional daquele que fala; de onde? o que quer? o que busca ? qual a sua prática clínica? Só assim, poderemos avaliar éticamente (*) seu discurso.
(*) Referimo-nos a uma ética extraída do Encontro com o paciente, emergindo daí...
Antonio Moura
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
MINI-ENTREVISTA
Pergunta - Você usa o diagnóstico "cidológico" com seus pacientes?
Antonio - Olha, a CID tem um status jurídico internacional. Daí, não há como escapar inteiramente dos seus efeitos, inclusive sobre o paciente. Em certos contextos,ela poderá ser usada, como por exemplo, num caso de avaliação psiquiátrica solicitada pelo juiz. Ou numa perícia médica. Bom, há situações pontuais, focais... No entanto, na clínica que busca as vivências múltiplas do paciente, a CID é apenas uma contra-referência para um bom Encontro, ou seja, uma organização de linhas enrijecidas (molares) que imobilizam o fluxo desejante.
AS MULTIPLICIDADES
O cérebro mente porque ele costuma ser conduzido pela consciência, e não o contrário. A consciência é uma representação do mundo e com base nisso, "se apossa" do cérebro. O que se diz do cérebro está assim marcado pela visão da consciência. As máquinas pets e similares reproduzem esta visão humana, demasiado humana. Propomos, então, substituir a pseudo- equação cérebro=mente pelo conceito-operatório de subjetividade, ou mais precisamente, de modos de subjetivação. Eles estão povoados de multiplicidades. Isso é o real. Não existe o indivíduo, a não ser como produto das formações de poder do capital: o consumidor de ordens implícitas e de tantas coisas mais...
Antonio Moura
PERCEBER O IMPERCEPTÍVEL
O movimento está numa relação essencial com o imperceptível, ele é por natureza imperceptível. É que a percepção só pode captar o movimento como uma translação de um móvel ou o desenvolvimento de uma forma. Os movimentos e os devires, isto é, as puras relações de velocidade e lentidão, os puros afectos, estão abaixo ou acima do limiar de percepção. Sem dúvida, os limiares de percepção são relativos, havendo sempre, portanto, alguém capaz de captar o que escapa a outro: o olho da águia.
Deleuze e Guattari - do livro Mil platôs
O PRISIONEIRO
Lembro-me da minha primeira manhã no presídio. No corpo da guarda, à porta do presídio, o tambor tocou a alvorada e dez minutos depois o oficial das sentinelas abriu os barracões. À luz baça de uma vela os presos se foram levantando das suas esteiras. Na sua maioria mostravam-se taciturnos e ainda com sono. Bocejavam, espreguiçavam-se e franziam as frontes estigmatizadas. Alguns persignavam-se, outros começavam a armar brigas com os outros.Lá dentro fazia um calor horrível (...)
Dostoiévski - do livro Memórias da casa dos mortos
A LINHA ESQUIZO
Antonio Moura
Sabemos que a Consciência é regida por representações da realidade. Ela traz a certeza de si ancorada no eu, (que também é uma representação), estanca os devires e fabrica impressões de identidade. Isto é uma mesa. Aquele é o paciente. A suposta identidade do outro vem atada a um modelo cognitivo único: a razão. Institui-se, assim, o hábito de que o pensamento é um decalque do real. Contudo, pensar só é possível “encontrando” o lado de fora, a linha do Fora. O que é isso? Chamamos a mente de subjetividade. Ela expressa um mundo próprio mediante a criação de processos singulares. Rigorosamente, não há “dentro” nem “fora” da subjetividade. A expressão “no mundo” já é um mundo, mesmo que seja delirante. O eu se esfuma em proveito de linhas de vida que escorrem pelo corpo. O centro deixa de ser o eu para ser o corpo- superfície onde se inscreve o desejo. O corpo é o desejo. Aqui se traçam e se trançam linhas existenciais. Seguindo Deleuze, são 3 as linhas que nos constituem. Enroladas umas nas outras, às vezes indiscerníveis para um olhar-clichê. Temos: a linha molar (ou sedentária), a molecular (ou nômade) e a de fuga. Vejamos algumas de suas características no campo da saúde mental, mais especificamente no paciente. A linha sedentária estabelece um papel social “estável” hoje nomeado “portador de transtorno mental”. A linha nômade expressa singularizações que escapam à forma-doença. São estilos de vida, maquinando uma certa arte, talvez a arte de viver. Por fim, a linha de fuga; a mais inesperada e louca: traduz universos insólitos não sonhados pela organização molar.É o mundo abstrato das formas não instituidas. Tudo isso compõe os processos subjetivos. A linha de fuga, sem dúvida, a mais estranha e arriscada, traz a questão da loucura para dentro da Clínica. Deste modo, a avaliação da Consciência é apenas um elemento ( dos mais frágeis) para se poder dizer “quem é o paciente?” A sua identidade, estabelecida pela razão psiquiátrica e por todas as razões de mando e comando, revela-se uma linha pronta a se encaixar no molde diagnóstico. Qual o CID? Falamos de outra coisa, talvez inominável. Portamos a Consciência e suas representações da realidade porque a tal Realidade não é a “nossa” e sim a que nos fazem acreditar. O paciente recusa-a. Ele escapa por linhas-sintomas (o delírio, a alucinação, etc) nem sempre criativas, e muitas vezes destrutivas para si e para os outros. As linhas moleculares (singularizações) se tornam meras esquisitices e as linhas de fuga buracos negros enregelados e malditos. A linha esquizo passa então a ser a entidade clínica tão cara à psiquiatria e aos seus axiomas. Veja: é esquizofrenia! Apesar disso, ela é a linha do Fora ( onde é possível pensar) pois está em contato com forças inumanas. O Inconsciente não freudiano, reservatório de multiplicidades pulsantes, está aí, mesmo sem ser visto. A arte, mais uma vez, comparece. Seus paradoxos e expressões são uma linha esquizo se esboçando, se fazendo...
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
UM CONCEITO FURADO
Transtorno mental é um construto pseudo-teórico "filho" da psiquiatria e suas agências sociais de apoio irrestrito. Não existe "transtorno mental" e sim modos de subjetivação, vivências compostas por linhas do desejo (afetos) e linhas de crença (pensamento). Isso pode se condensar na organização do eu-paciente, um eu-submetido à Ordem. Tudo funciona enxertado nos processos de produção da vida social, hoje, chamada capitalismo. Desse modo, o paciente carrega em si mesmo o peso das instituições que o codificam como a Realidade Definitiva. Ora, não existe realidade definitiva. Só há o devir, a irreversibilidade...
Antonio Moura
Sobre os corpos
Antonio Moura
O corpo-sem-órgãos (CsO) é um anticonceito, limite intransponível da experiência. Processo esquizofrênico. No caso da entidade clínica é prática de vida que aparentemente fracassou. Mesmo assim permanece ativo enquanto coleção de linhas existenciais sem contorno, fluxos nômades, gritos. São as máquinas do desejo. A subjetivação é, pois, uma dessubjetivação incessante. Somos todos esquizos. Considere o seu próprio corpo. Ele é invenção de mundos. Não o corpo do qual a medicina, papai-mamãe e a escola gostam. É outra coisa, uma política. Aparece aqui e ali em situações de grande responsabilidade moral – para desfazer a moral. Se você perguntar qual o meu corpo , eu lhe direi: sigo os afetos: uns me encantam, outros são insuportáveis. Risco dos encontros, puro desejo escorrendo cruel. Veja o paciente. Seu corpo liga-se ao mundo dos códigos estáveis. Eles são usados para a repetição do Mesmo. A antiprodução é, assim, inserida na produção. Convite ao normal. Mas, o que aconteceria se milhões de corpos sem órgãos fossem movidos ao combustível alegria? O corpo seria o de uma dançarina saltando na relva? O de um soldado numa trincheira? Ora, os corpos são invisíveis. Sua potência esgueira-se por entre as franjas da racionalidade proprietária do eu. Não há corpos opacos. Somos fibras de luz e só os videntes enxergam para além de toda moral e de toda técnica. O CsO é uma política de guerreiros esquizos. Eles não se deixam ver. Usam máscaras rentes à pele. Você nem sabe que é um. Mas, não anuncie a sua chegada, não reclame, não ressinta. Cultive o segredo. Faça rizomas.
OS FÁRMACOS, AINDA...
Ouvindo uma aluna em sala de aula, me chegou a impressão de que a posição que defendo em relação aos fármacos não é clara. Então, vamos lá, rapidamente: 1- Os psicofármacos são avanços tecno-científicos inquestionáveis; mas isso é insuficiente; e o uso? 2-O problema é o da clínica, ou seja, prescrever fármacos de modo punitivo, em excesso, sem diagnóstico, ou com diagnóstico errado; 3-Ou prescrever fármacos quando a indicação é a psicoterapia; 4-Ou prescrever fármacos quando nem a psicoterapia é indicada. 5-A visão e a prática farmacológica são tributárias de uma epistemologia mecanicista, portanto, limitadíssima na apreensão da vivência do paciente; 6-Em face da inserção de poder da psiquiatria, a insuficiência dos fármacos transforma-se em danos reais ao paciente, naquilo que chamamos de psiquiatrização subjetiva. 7-Há muita mais a dizer; creio que será necessário voltar ao assunto.
Antonio Moura
O CÉREBRO E O EXTERIOR
Não sou neurofisiólogo, mas fiquei fascinado ao encontrar no cérebro uma atividade de base altamente instável, como no caso do clima. O mundo exterior permite polarizara esta atividade de base numa direção ou noutra e chegar às atividades cognitivas.
Ilya Prigogine - do livro O nascimento do tempo
terça-feira, 27 de setembro de 2011
ESCREVER...
Escrever é entregar-se ao fascínio da ausência de tempo. Neste ponto, estamos abordando, sem dúvida, a essência da solidão. A ausência de tempo não é um modo puramente negativo. É o tempo em que nada começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação, já existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo puramente negativo é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem e o "Eu" que somos reconhece-se ao soçobrar na neutralidade de um "Ele" sem rosto. O tempo da ausência de tempo é sempre presente, sem presença. Esse "sem presente" não devolve, porém, a um passado (...)
Maurice Blanchot - do livro O espaço literário
TIRANIA DO CÉREBRO
Os estudos do funcionamento e da estrutura do sistema nervoso central, com tecnologia atual, trazem somente informações, não conhecimentos (Andreasen, 1994). Enquanto isso, uns esperam, com tais investigações, desvendar os "últimos mistérios' do cérebro e da mente ou falam de "novos paradigmas" (Fuente, 1997); outros festejam as descobertas, mas não a as consideram apenas aptas a resolver os problemas da clínica psiquiátrica. Avanços no campo genético, neuroquímico, neuroimagem foram obtidos com respeito à esquizofrenia. Porém, os avanços na terapia psicossocial e na pesquisa de serviços, que também foram proeminentes no V congresso Internacional sobre esquizofrenia (1995) não podem ser colocados na sombra pela perspectiva biomédica (Buckley, 1995). Os estudos com neuroimagens são dos mais notáveis e empolgantes. Pode-se, contudo, observar que, depois de mais de 20 anos de PET, MRI, SPECT, EEG,tomografia computadorizada, pouco foi obtido para o diagnóstico clínico da esquizofrenia e da depressão. Somente mais para o conhecimento do funcionamento cerebral, para meditações especulativas, que para a construção de hipóteses significativas, testáveis e validáveis com amostras de casos (...).
Carol Sonenreich, Giordano Estevão e Luis Altenfelder - do livro - Psiquiatria, propostas, notas, comentários - 1999.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
MINI-ENTREVISTA - II
Pergunta-O que o sr. acha dos avanços da neurociência?
Antonio- Muito interessantes. Estes avanços servem à psiquiatria. No entanto, talvez seja preciso dizer uma obviedade: a neurociência não é a psiquiatria. Se a equação neurociência=psiquiatria é entronizada e usada como paradigma de verdade (a reificação do cérebro), estamos diante de uma negação absoluta da subjetividade. Não haverá o psíquico nem o coletivo como vetores etiológicos.É o fim da psicopatologia e de um saber extraído da experiência da loucura.
LINHAS DE FUGA
Uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos (como "pirar" etc). Há algo de demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses tem atributos, propriedades e funções fixas, territórios e códigos: eles tem a ver com os eixos, com os limites e com cadastros. É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um intervalo a outro. "Que demônio deu o maior salto?", pergunta Édipo. Sempre há traição em uma linha de fuga. Não trapacear à maneira de um homem da ordem que prepara seu futuro., mas trair à maneira de um homem simples, que já não tem passado nem futuro. Trai-se as potências fixas que querem nos reter, as potências estabelecidas da terra.
G. Deleuze e C. Parnet - do livro Diálogos
domingo, 25 de setembro de 2011
Ética e Clínica-1
Antonio Moura
Diante do paciente, é possível operar uma ética não pronta. Nada de manuais ou códigos recitados pela Academia. Há uma não pessoa na pessoa à nossa frente. Tal paradoxo encarna um anti-humanismo visceral. O que está em jogo não é o indivíduo, mas uma vida. A que isso leva?
Isso leva à busca de um aumento da potência de existir, tal como ensinou Espinosa. Na prática clínica remete a aspectos empíricos e imediatos. Quem é o paciente? Quem sofre? Ele mesmo nos procurou? Por quê? Para quê? Ele quer viver? O que é viver? São perguntas elementares para a formulação de uma ética de vida. A potência de viver ocupa um lugar de destaque na questão de uma clínica da diferença. Vale para o paciente e para o psiquiatra. Num meio clínico encharcado de psiquiatria, reina a ética médica envelhecida. Escapar dela e propor outra coisa... seria possível?
Talvez uma clínica que trabalhe a produção de novas maneiras de viver... Ora, a psiquiatria está morta como pensamento [1]. Para turbinar novas práticas, iniciemos pela ética: o Encontro com o paciente traduz esse projeto: a materialidade da relação passa a ser constituída por afetos que circulam nos dois sentidos. É claro que pela sua própria definição, há os bons e os maus afetos. Os que constroem e os que destroem.
Desse modo, antes da técnica é preciso compor linhas de vida. Implica em dizer que o trabalho com o paciente segue a arte como experimentação. Experimente, não interprete, diz Deleuze. Os dados da história pessoal e das contingências atuais estão baralhados na superfície do Encontro. O trabalho, no caso do psiquiatra, será o de destruir formas sociais rígidas (por exemplo, o afã de medicar, o diagnóstico cidológico, o corporativismo médico, etc) e criar dobras, saídas, mesmo ínfimas e imperceptíveis, para os impasses existenciais.
Atender o paciente é encontrar a loucura. Interessa, pois, ao psiquiatra, sair de si na direção de um campo vivencial movediço, sem garantias prévias, sem receitas ou protocolos técnicos. Sob tais condições, torna-se um feiticeiro. Carrega o seu balaio de conceitos na espreita de mais um encontro em que possa usá-los.
[1] Usamos “pensamento” no sentido deleuziano, ou seja, um pensar não restrito a interioridade de um sujeito, mas voltado ao encontro com o Fora, com as multiplicidades do mundo. Ver Deleuze, G. e Guattari, F., Mil Platôs-Capitalismo e Esquizofrenia, S. Paulo, Ed. 34, 1997, vol. 5, p.43 a 50.
QUAL POLÍTICA?
A organização (mundial e nacional) da Psiquiatria conta com entidades poderosas que codificam o portador de transtorno mental como objeto de um saber científico. Isso pode confluir, por exemplo, no Congresso Internacional em Buenos Aires em setembro de 2011. Nada contra. A questão é outra: que forças sociais são mobilizadas? Qual o compromisso ético-político com o paciente? Que base epistemológica dá condição teórica a uma psicopatologia clínica em Saúde Mental? Existe alguma formulação conceitual sobre a subjetividade-doente mental? Qual formulação? A psiquiatria, enquanto instituição social, é considerada? Ou resta tão somente a especialidade "Psiquiatria" com o seu cientificismo acadêmico estabelecido como verdade? Qual o papel da política no trato dos problemas da Saúde Mental? E por último, mas sem finalizar, qual o sentido da Clínica nos tempos atuais? Reformar, conformar, adaptar, incomodar ou revolucionar?
Antonio Moura
AGIR
Não vejo nenhuma saída na ação individual isolada e solitária, pois ela leva o particular sistematicamente para dentro da boca do lobo. A força individual basta para as tarefas à sua dimensão, ao seu alcance. Mais nada. O exemplo de Thoreau bastaria para demonstrar isso. Este teórico da desobediência civil praticava também aquilo que ensinava. Coisa rara nos filósofos. Também, quando decidiu não mais pagar seus impostos, de tal maneira ele achava essa obrigação iníqua e em contradição com sua idéia da justiça, ele foi obviamente intimado pelas forças da ordem e conduzido à prisão. Lá, como mártir da causa libertária, decidiu ficar, antes prisioneiro em paz com sua consciência que livre e desgostoso dela.
Michel Onfray - do livro A política do rebelde- tratado de resistência e insubmissão
DEPRESSÃO SUB-CLÍNICA - II
A depressão que estamos tentando evitar pode muito bem ser uma reação prolongada e crônica com o mundo, o lamento e o pranto pelo que temos feito à natureza, à cidade, a povos inteiros - a destruição de grande parte deste mundo. Estamos deprimidos em parte por ser essa a reação da alma ao nosso lamento e pranto inconscientes.
James Hillman - do livro Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior
SÓCIO-PSICODRAMA NO SERVIÇO PÚBLICO -10
Após interrupção, por uma semana, devido a viagem do terapeuta, o grupo retoma o trabalho sobre si... Os papéis sociais de mãe e esposa continuam em destaque.Percebe-se, a essa altura, surgirem identificações importantes entre as pacientes. Os fluxos discursivos já se deslocam da figura do terapeuta como referência (relação-em-corredor) e passam a circular (ainda que timidamente) entre elas. Sair das amarras destes papéis nos parece ser essencial na composição de forças grupais e no desvelamento da espontaneidade criativa. É com essas forças que pretendemos "acionar" novas subjetividades. Diz uma paciente: " foi dito aqui que eu precisava cuidar de mim, só esta semana caiu a ficha... quando desabafei lá em casa, meus filhos deram até risada de mim" . Aparente obviedade de auto-constatação não esconde o fato de uma maior implicação da paciente com a realidade grupal e o que emana dessa realidade. O eixo condutor das falas do terapeuta é, portanto, produzir um campo de liberdade e confiança no grupo. "Aqui me entendem e aqui sou livre". É claro que este é tão só um artifício de preparação para a escolha e trabalho com o protagonista (*) que por certo virá. A conquista de uma "liberdade" é no mundo e não no grupo.
Antonio Moura
(*) Membro que é "escolhido" pelo grupo para ser trabalhado em destaque na sessão. ´Trata-se de uma espécie de representante do Drama Grupal (e Social) que se expõe e se expressa, contando com o grupo como continente afetivo. Este lhe "empurra" na direção de saídas para os problemas trazidos.
COMO RESISTIR?
A imagem do progresso é poderosa. Mesmo as denúncias de tal ou qual episódio outrora considerados por muitos como "progressista" - colonização, desenvolvimento das técnicas, mobilização ideológica - se fazem em seu nome, pois é difícil evitar frases que podem ser abreviadas na forma do tipo: "Antes, nós acreditávamos que..., hoje nós sabemos que...". Até a denúncia da arrogância ocidental, que se acreditou intrinsecamente distinta das outras culturas, não anula a diferença: somos nós que estamos em movimento, que fizemos sofrer e que agora nos tornamos capazes de reconhecer nossos exageros. Nenhuma conclusão "relativista" pode fazer esquecer que, racionalistas ou "relativistas", somos sempre nós que falamos.
Isabelle Stangers - do livro As invenção das ciências modernas
POESIA DO DIA
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as flores verdes.
Há novas flores, novas flores verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.
F. Pessoa
sábado, 24 de setembro de 2011
TRANSDISCIPLINARIDADE
O que me interessa não é uma síntese, mas um pensamento transdisciplinar, um pensamento que não se quebre nas fronteiras entre as disciplinas. O que me interessa é o fenômeno multidimensional, e não a disciplina que recorta uma dimensão nesse fenômeno. Tudo o que é humano é ao mesmo tempo psíquico, sociológico, econômico, histórico, demográfico. É importante que estes aspectos não sejam separados, mas sim que concorram para uma visão poliocular. O que me estimula é a preocupação de ocultar o menos possível a complexidade do real.
Edgar Morin - entrevista - 1981.
DEVIR-MIGUEL
Miguel tem 6 meses. Acompanho o fluxo dos signos que fazem brilhar os seus olhinhos prescrutadores. Busco ser este fluxo torrencial de cores, sons, imagens de um mundo desconhecido e misterioso. Neste circuito de trocas desiguais, apreendo que a vida supera as formas constituídas, como por exemplo a idade das rugas ou as dobras da pele recém-nascida. Assim, Miguel expressa o choro semiótico que me converte num sorriso companheiro. Ele inaugura a cada minuto a viagem das intensidades de um devir-bebê. Não sou mais eu...
Antonio Moura
O CONHECIMENTO PSIQUIÁTRICO É SIMPLÓRIO
Assunto recorrente de debates entre profissionais dedicados à Saúde Mental em todo o mundo, os transtornos de personalidade despertam discussões pela grande indefinição que caracteriza seus aspectos etiológicos, epidemiológicos, classificatórios e terapêuticos. Apesar de recentes tentativas para se estabelecer orientações precisas para seu tratamento, ainda restam controvérsias, dúvidas e discordâncias em grande parte da comunidade científica dedicada ao tema.
Leonardo Sauaia - psiquiatra - do texto Manejo do paciente com transtorno de personalidade in Manejo do paciente psiquiátrico grave,São Paulo, Roca, 2009. (vários autores).
Comentário - 1-os grifos são nossos.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
TRAIR A PSIQUIATRIA- III
Trair a psiquiatria é usar pedaços da semiologia psicopatológica inseridos numa superfície que é a da clínica. Para isso ser possível, são construídas linhas de saber que destoam do conhecimento biomédico, mas que com ele confluem em práticas do encontrar. "Práticas do encontro", melhor dizendo, são clínicas voltadas à potencialização das capacidades socio-desejantes do paciente. Parece óbvio que a utilização pura e simples de fármacos, atrelada a uma concepção reificante do cérebro, não alcança tal objetivo. Pior: condena os modos de subjetivação (por definição, múltiplos) a um eterno "eu" lamuriento alternando com remédios químicos. Trair a psiquiatria, é, pois, não criticar, mas criar linhas da diferença num meio indiferenciado. Não é fácil...
Antonio Moura
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
NEGAR O PODER
(...) O que foi questionado é a maneira pela qual o poder do médico estava implicado na verdade daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser fabricada e comprometida pelo seu poder. Todas as grandes reformas, não só da prática psiquiátrica, mas do pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder; são tentativas de deslocar a questão, mascará-la, eliminá-la e anulá-la.
M. Foucault - do livro Microfísica do poder
DIAGNÓSTICO PRECOCE
Psiquiatra-O que você sente?
Paciente-Eu tenho esquizofrenia.
Psiquiatra- Isto é um diagnóstico. Quem lhe falou?
Paciente - O sr. mesmo, doutor.
Psiquiatra-Eu? Não lembro.Quando foi?
Paciente-.No ultra-som...
Psiquiatria - Ultra-som?
Paciente-Sim, dr., quando eu estava na barriga da mamãe.
Psiquiatria - Ah, faz muito tempo.
Paciente- Pois é. Muito tempo.
Psiquiatra-O que você sente?
Paciente-Eu tenho esquizofrenia.
Psiquiatra- Isto é um diagnóstico. Quem lhe falou?
Paciente - O sr. mesmo, doutor.
Psiquiatra-Eu? Não lembro.Quando foi?
Paciente-.No ultra-som...
Psiquiatria - Ultra-som?
Paciente-Sim, dr., quando eu estava na barriga da mamãe.
Psiquiatria - Ah, faz muito tempo.
Paciente- Pois é. Muito tempo.
QUAL INCONSCIENTE?
Isso funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isso respira, isso esquenta, isso come. Isso caga, isso fode. Que erro ter dito o isso. Em toda parte são máquinas, de maneira alguma metaforicamente; máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões.
G. Deleuze e F. Guattari - do livro O anti-édipo
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
Trair a psiquiatria - II
Trair a psiquiatria é praticar uma psiquiatria descolada do modelo biomédico. Isto significa, ao atender um paciente, não conversar com o cérebro, como faz o psiquiatra remedeiro. Sabemos que ele usa cada frase, cada resposta como linha sináptica a ser explorada. Ao contrário, conversar com os modos de subjetivação é a nossa aposta. Estes modos se expressam em linhas existenciais singulares. Trair é, pois, sobretudo, fazer o novo. Mas, o que é o novo?
Antonio Moura
CRIAR É TRAIR
Não acreditamos na crítica como ato que propicie uma criação. A criação é que propicia uma crítica. A criação vem primeiro. Saúde é um conceito nominal. Aparelho engendrado por tecnocratas do estado, vive para a idéia, o imaginário, a transcendência e as boas intenções humanísticas. Com o conceito de mental ocorre o mesmo. Criar nada tem a ver com essa ladainha político-conceitual. A arte de criar conceitos, como diz Deleuze, é a aventura do novo. Em saúde mental, criar é despersonalizar-se sem culpa, ressentimento ou nostalgias egóicas. Começa pela ausência de títulos e pompas. Uma gratuidade.
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria, a ser lançado em 25/10/2011, em Vitória da Conquista.
POESIA DO DIA
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais : meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns,achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 20 de setembro de 2011
DEPRESSÃO SUB-CLÍNICA
Por toda parte, um coro de profunda lamentação se inscreve na carne. Psiquiatria, psicopatologia, psicologia, psi-mundo. Deprimidos dos mais variados matizes entoam o cântico dos desesperados, produzindo mais e mais símbolos arcaicos da era niilista. O bigodudo alemão já prenunciara... No entanto, sentir na pele e nas vísceras este desmoronamento de sentido, é essencial para quem quer criar, ou pelo menos falar em seu próprio nome. Anunciar "eu não tenho nem pai nem mãe", quem consegue?
Antonio Moura
FALA, GUATTARI...
Finitude existencial que não apenas aceita a morte e a vida em seu caráter de subjugação, mas que não cessa de intensificá-la, que faz da morte uma potência ativa, ao invés de uma maldição. O perigo de morte que pesa sobre a biosfera poderia então se transformar em uma questão maquínica fascinante, extraordinária. Ao invés de se abandonar ao horizonte de morte capitalístico, uma política de produção de vida é possível, não para repeti-la tal como ela era há cem ou dois mil anos, mas para produzir formas mutantes segundo ordenadas atualmente imprevisíveis.
Félix Guattari - do livro Caosmose: um novo paradigma estético
TRAIR A PSIQUIATRIA - I
Trair tem nessa frase um sentido político. Assim, a psiquiatria é, sobretudo, uma instituição social que só mostra a sua cara como especialidade médica. Daí, traí-la é expor as forças que a constituem de dentro, produzindo a ilusão de prática científica. Voltaremos ao assunto...
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
O TEATRO DA VIDA
Tudo que existe no amor, no crime, na guerra ou na loucura precisa nos ser devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar seu papel necessário.
O amor cotidiano, a ambição pessoal, a agitação diária só valem enquanto reação a essa espécie de terrível lirismo que existe nos Mitos aos quais aderiram coletividades imensas. (..) (...) Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação verdadeira.
A. Artaud - O teatro e a crueldade
SEM FORMA
Pensa-se demais em termos de história pessoal ou universal. Os devires são geografia, são orientações, direções, entradas e saídas. Há um devir-mulher que não se confunde com as mulheres, com seu passado e seu futuro, e é preciso que as mulheres entrem nesse devir para sair de seu passado e de seu futuro, de sua história. Há um devir revolucionário que não é a mesma coisa que o futuro da revolução, e que não passa inevitavelmente pelos militantes. Há um devir-filósofo que não tem nada a ver com a história da filosofia e passa, antes, por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar.
G. Deleuze e C. Parnet - do livro Diálogos
POESIA DO DIA
Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
Manoel de Barros
domingo, 18 de setembro de 2011
LIVRAR-SE DO EU
Ele tinha dito que tudo que eu fizesse deveria ser um ato de feitiçaria. Um ato livre de expectativas invasoras, de medo de falhar, de esperanças de sucesso. Livre do culto do eu; tudo que eu fizesse deveria ser improvisado, um trabalho de magia onde eu me abrisse livremente para os impulsos do infinito.
Carlos Castaneda - do livro O lado ativo do infinito
O NÃO-EQUILÍBRIO
A mim ocorreu-me a idéia de que é a função que cria a estrutura. Vejamos uma cidade: a cidade só vive porque opera intercâmbios de matérias-prima ou de energias com o campo que a circunda. É a função que cria a estrutura. Mas a função, o fluxo de matéria e energia, é evidentemente uma situação de não-equilíbrio.
Ilya Prigogine - do livro O nascimento do tempo
SOBRE O DESEJO
A idéia de Deleuze e Guattari é a de que não existe um mecanismo universal de estruturação do sujeito. Existem fórmulas múltiplas, históricas, de produção de subjetividades e modos de subjetivação. O Édipo como equipamento produtor do sujeito não é uma forma universal, ubíqua e onipresente, senão uma forma produzida dominante. Existem inúmeras formas de produção de subjetivação. Mas estão, em geral, submetidas, subjugadas, hegemonizadas pelo Édipo, pelo modo edipiano de produção da subjetividade, que é uma forma de captura do desejo como restitutivo, narcisístico, sem objeto, e que tem sua continuidade assegurada pela não-obtenção dos seus objetos. As outras formas de subjetivação, não, pois o Desejo funciona de outra maneira, tem outra natureza. Sua potência é inesgotável. Não porque não atinge seu objetivo, mas por formar parte da essência de seu ser. Ele é produção, só sabe produzir, devir.
Gregorio Baremblitt - do livro Cinco lições sobre a transferência
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