CONTRA UM IDEAL CADUCO DE CIENTIFICIDADE
(...)
Se não se trata mais - como nos períodos anteriores de luta de classe ou de
defesa da "pátria do socialismo" - de fazer funcionar uma ideologia de maneira
unívoca, é concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique
linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas
as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana
quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística,
do esporte etc. - trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os
dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização
individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia,
sinônimo de desolação e desespero. Perspectiva que não exclui totalmente a
definição de objetivos unificadores tais como a luta contra a fome no mundo, o fim
do desflorestamento ou da proliferação cega das indústrias nucleares. Só que não
mais tratar-se-ia de palavras de ordem estereotipadas, reducionistas,
expropriadoras de outras problemáticas mais singulares resultando na promoção de
líderes carismáticos.
Uma mesma perspectiva ético-política atravessa as questões do racismo, do
falocentrismo, dos desastres legados por um urbanismo que se queria moderno, de
uma criação artística libertada do sistema de mercado, de uma pedagogia capaz de
inventar seus mediadores sociais etc. Tal problemática, no fim das contas, é a da
produção de existência humana em novos contextos históricos. A ecosofia social
consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e
a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do
trabalho etc. Certamente seria inconcebível pretender retornar a fórmulas anteriores,
correspondentes a períodos nos quais, ao mesmo tem -po, a densidade
demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte que hoje.
A questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-emgrupo.
E não somente pelas intervenções "comunicacionais" mas também por
mutações existenciais que dizem respeito à essência da subjetividade. Nesse
domínio, não nos ateríamos às recomendações gerais mas faríamos funcionar
práticas efetivas de experimentação tanto nos níveis microssociais quanto em
escalas institucionais maiores.
A ecosofia mental, por sua vez, será levada a reinventar a relação do sujeito
com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os "mistérios" da vida
e da morte. Ela será levada a procurar antídotos para a uniformização midiática e
telemática, o conformismo das modas, as manipulações da opinião pela
publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar aproximar-se-á mais
daquela do artista do que a dos profissionais "psi", sempre assombrados por um
ideal caduco de cientificidade.
(...)
F. Guattari in As três ecologias
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