quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

CAPS: PARA ALÉM DOS REMÉDIOS

O trabalho de equipe num Caps, para ser turbinado, compreende  uma superação  da hegemonia psiquiátrica. Não nos referimos à figura do psiquiatra e dos seus equipamentos químicos,  mas à forma-psiquiatria como instituição secular que se  alojou  na mente dos técnicos  não-psiquiatras. É claro que há outros elementos em jogo, outras condições  para a mudança, mas essa questão é essencial. Por fim, tudo  se  traduzirá na produção de novas clínicas, novas psicopatologias descoladas do modelo biomédico. Só assim, o Caps escapará do ranço manicomial  e tampouco   será um ambulatório. E o que  será?

Antonio Moura

VELUDO AZUL

A PSIQUIATRIA TEM CHEIRO?

(...) os médicos transformaram-nos em insetos. Espetaram com alfinetes as nossas doenças nos prontuários, um carrinho cheio de nomes de doenças que pela manhã empurram entre os leitos. Não ousam exterminar-nos com os inseticidas como fazem com as baratas. Para nós escolheram o método da humilhação. Num hospital morre-se de indiferença.

Emma Santos

AINDA EXISTE, SIM SENHOR!

Hospital Psiquiátrico na Sérvia - foto de 10/03/2010
O REMÉDIO

Quando o paciente vai buscar o remédio, o psiquiatra entrega; situação mais comum do que se  supõe. Um dueto pessoal  funciona como máquina de tratar sem tratar.O remédio é uma extensão do médico, um cabo conectado com a verdade. A substituição do  tratamento real pela receita burocrática   sequer  é notada.  É possível  que a questão do tratamento  nem  se ache  na  cena. O médico não passou um remédio. É o contrário: o Remédio é quem  passou o médico para  o rol dos agentes  do corpo  apassivado (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

Ah, se eu vou... ROBERTA SÁ

NO FUNDO DA MORAL...

Desvendando uma vontade de poder por trás da postulação dos valores morais, e traçando a origem e descendência dos valores, o objetivo de uma genealogia da moral é solapar as pretensões universalistas e humanistas dos valores morais. A genealogia é um importante exercício de crítica, por ser capaz de mostrar que todos os valores e ideais são produtos da mudança e desenvolvimento históricos. Todo conceito, todo sentimento e toda paixão têm uma história (...)

Keith  Ansell - Pearson - do livro Nietzsche como pensador politico

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O MUNDO É UM MOINHO - Cartola

TODO MUNDO COMENTA

A psiquiatria e a psicologia costumam ser  aliadas no ato de barrar os fluxos anárquicos do desejo. Elas querem mais é a ordem, a harmonia e o progresso da ciência experimental. Ao contrário, o desejo passa por cima e por baixo de todas as construções humanitárias e repressivas. Nada  falta ao desejo. Ele vive da pura imanência disfarçada em máscaras de bondade. Não espalhe o seu recado malévolo. Antes, faça  com  que  formações demoníacas estabeleçam um território de vida. Agora, sim, a psiquiatria pode arrotar  seu  orgulho psicopático e a psicologia  pode  mergulhar nas trevas da ignorância douta. Sejamos (ao  menos)  honestos: o capital nos governa a partir de células  cansadas  e  genes corrompidos.


Antonio Moura

PAULO FREIRE

PSIQUIATRA "IN VITRO"

Fizeram com que disséssemos  que, para nós, o esquizofrênico era o verdadeiro revolucionário. Nós acreditamos, antes, que a esquizofrenia é a queda de um processo molecular  em um buraco negro. Os marginais sempre nos causaram medo, e um pouco de horror. Eles não são o bastante clandestinos (..) (...) Há uma palavra molecular "in vivo", ou do drogado, ou do delinquente, que não vale mais do que os grandes discursos de um psiquiatra in vitro. Tantos asseguramentos de um lado, quanto certezas do outro (...)

G. Deleuze e C. Parnet - do livro Diálogos

E agora, José?

Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim.

Sigmund Freud

PSIQUIATRIA: VOCAÇÃO PARA O CONTROLE

use antes de agitar


 Estudar  as  psicoses

                                                                         
Estudar as  psicoses implica em tocar nas questões  fundamentais da  psicopatologia. Vejamos  porque.   O que  é  hoje considerado  psicose  se  aproxima do que  antes era  chamado  loucura.  No entanto, o conceito de psicose  é  impreciso.Tal  imprecisão atravessa  a  história  da psiquiatria.
Por que  um tema tão importante recai numa insuficiência conceitual? Tudo remete à questão do diagnóstico, que  é por onde se  dão as  ações terapêuticas (práticas) da  psiquiatria.  Mesmo mal diagnosticada (será  uma psicose?  que  tipo?)   há  que  se intervir concretamente,   pois  o psicótico  incomoda  à  Ordem. Mas, afinal, o que  são as psicoses?
São  síndromes psicopatológicas graves. Elas  se caracterizam sobretudo por uma ruptura do paciente- em maior ou menor  grau –com a Realidade. Seus sintomas incluem basicamente  delírios, alucinações, alterações  do eu, da afetividade e do comportamento social.O rompimento  com a Realidade é acompanhado por  situações  sociais de constrangimento, onde  o rechaço e a humilhação encontram no hospital psiquiátrico o exemplo da  prática  de segregação cientificamente respaldada. Já  que  o conceito clínico de psicoses é impreciso, sua  etiologia (estudo das  causas) também o é.O campo das  psicoses é muito rico em   manifestações clínicas e em  pesquisas teóricas. No primeiro caso, há que  diferenciar as psicoses dos  vários  quadros patológicos não-psicóticos. No segundo, o trabalho conceitual usa  aportes de  campos diversificados do conhecimento, tal a  sua complexidade.
O tratamento  das psicoses está  condicionado às  hipóteses etiológicas do quadro psicopatológico visado, e às  singularidades do paciente.

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

METAMORFOSE AMBULANTE - Raul Seixas

AS DEPRESSÕES

Se considerarmos  o processo  histórico-vital  como uma sucessão de perdas, sem dúvida, a  depressão  se  afigura como “inevitável”. De  todo  modo  o seu   cortejo  lamurioso é  uma acusação  à vida .  Ela   atravessa   praticamente  todas as  síndromes  psicopatológicas. Na  descrição do paciente  deprimido  observemos o seu  rosto.  Ao contrário da manobra   objetificante    da psiquiatria  (o “ser-da-depressão”   expresso  numa medida, imagem, tabela, etc), é possível   captar  os  pequenos  traços  que  evidenciam  um rosto  deprimido.  Óbvio que  não há  O deprimido e  sim  Um deprimido, ressaltadas as   singularidades  nem sempre visíveis. Assim,  a  observação do  corpo como superfície de intensidades é fundamental.  Os  afetos  produzem um corpo. As  depressões  produzem corpos-zumbis.  Um corpo deprimido  está  fora  das  categorias do  organismo. O organismo  pode  estar  de pé, mas  o corpo  não. A via  do  corpo é a condição para o método da  diferença   e   suas  implicações  terapêuticas. O humor  hipotímico está  disseminado  pelo corpo que  não se  vê, mas  se  intui no Encontro  com o paciente. Isso significa  que  o processo  do desejo “obedece”  linhas  de molarização   : elas  configuram um quadro clínico definido. Contudo,  para ir além disso, e  de fato  intuir  o que  se passa  com o paciente, podemos  situá-lo conforme dois  eixos de percepção clínica: 1- o corpo; 2- o tempo. Os dois  se  misturam. É um truísmo dizer  que  o corpo deprimido é  um  corpo com pouca  energia. Daí,  dizemos   que não existe  o corpo  deprimido e sim o organismo deprimido. O corpo  não  consegue  emergir  como  sentido. Não  faz, não produz  sentido.  Está  restrito   ao organismo  físico-químico, o qual  é  produzido  por  instituições, entre  elas  a medicina, a família  e a  escola.  As depressões  são  inseparáveis desse nexo  estreito  com o  que  as  precede e  as envolve. As disposições genéticas, o sistema  neuro-endócrino, o  funcionamento bioquímico são alguns  dos  vetores   prestigiados pelas  pesquisas  atuais.  Daí, pensar as  depressões é  pensar   as multiplicidades que  constituem  o  meio   de  onde  e  por  onde  linhas  depressivas  compõem modos de subjetivação. É uma   visão   que  abre  a semiótica    clínica  para um corpo que  envia  signos  a-significantes, ou  seja, descolados das  categorias  nosológicas  psiquiátricas. O  aparente  dualismo  (corpo-tempo)   serve  para fincar  as bases de  uma semiótica  das  depressões. Ela  passa  pelo  corpo   e   se  inscreve  no tempo dos  devires.  Estes são    processos  do desejo. Contudo,  o  corpo do deprimido  está  submetido  ao   organismo. Neste  não  há  o tempo  de   Aion  e sim o tempo  de  Cronos. Síndrome  de  Cottard   , mergulho nas profundezas das  vísceras  apodrecidas.   O deprimido    costuma   recitar  os  enunciados  estabelecidos e não seguir as  linhas da  produção  desejante.  Ele   não vive. Apenas sobrevive.   É  um ser  molar, composto   por identidades  estáveis, regendo  o concerto da morte em vida. Vivências  paranóides  não   são incomuns.  A baixa  do humor  condiciona  juízos persecutórios. Do mesmo modo, as  funções  psíquicas como  um todo estão alteradas: consciência, eu, sensopercepção, pensamento,  memória, atenção,  inteligência, fala. A angústia às  vezes compõe  o quadro, mas diferencia-se  do humor  depressivo pela   sua   forma  plástica  expressando  sofrimentos  indizíveis. Mais conhecida atualmente como “ansiedade”, é  uma experiência de mal-estar  psíquico  com repercussões  somáticas, mas  que  não evidencia a  destruição  física  e mental tão marcante  nas  depressões. Depressão e ansiedade tem “naturezas”  diferentes, ainda que  possam vir  juntas. O deprimido   “quer”  morrer. O angustiado (ou ansioso) não quer “necessariamente”  morrer.  Talvez   busque  uma   “saída”  para a  vivência de pânico, de  fobia, de um incômodo mal  caracterizado.  Quanto à   linha suicida  do deprimido, claro, nem sempre leva   à morte  do organismo. A linha  de sofrimento  do angustiado  é o corpo se  debatendo  contra  demônios  (fantasmas), ainda  que  em desvantagem e fracassando  sempre. Uma  angústia  intensa pode  levar  uma  depressão a  se tornar “agitada”.  Essas  diferenças, expressas   em metáforas devido  às  nuances  vivenciais com  que se mostram,   são  de grande valor   na opção terapêutica adotada,  tanto  farmacológica  quando psicológica. A  inibição  psicomotora  “pura” marca  o negativismo e o mutismo, dificultando um diagnóstico diferencial (...)

Antonio Moura - do livro  Trair a psiquiatria 
Ainda se faz  lobotomia?
A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA EM SAÚDE MENTAL

Seja  o caso  da  reforma  psiquiátrica.  Há   grupos de trabalho   chamados  de  equipes  técnicas  multidisciplinares. Seriam   grupos de fato ou formações seriais   de  técnicos?  Seriam  grupos  assujeitados  à  ordem  administrativa ou   a alguma  outra  ordem?  Ora,   os papéis técnicos compõem um repertório  de ações práticas (técnicas) para com o paciente. Essas práticas correspondem a modos  de subjetivação, as quais precedem  a  fundação dos  grupos. Eles  vêm  de  fora, consistindo  forças que secretam sem parar o valor e o significado das  práticas. O ideário da reforma psiquiátrica cunhou o rechaço ao hospital psiquiátrico e a valorização do usuário como ser humano. No entanto, este  humanismo  não  foi  suficientemente  forte  para levar   a clínica (ou seja, o encontro com o usuário) para formas descoladas  dos  antigos   clichês   do  hospício. Entre estes, persiste  a  submissão  ao poder psiquiátrico  como  representante  autorizado da Ciência.  Tal submissão produz efeitos sobre o paciente, reduzindo-o a um cérebro que consome remédios químicos.  É uma constatação já denunciada por segmentos sociais interessados na qualidade da assistência prestada aos portadores de transtorno mental (...)

Antonio Moura

DIANA KRALL - Do it again

domingo, 26 de fevereiro de 2012

ela tem os olhos azuis
mais verdes que vi
a poesia arrebenta
em suas praias de carne

HERMAN MELVILLE

1819-1891
DEZ  ERROS  SOBRE  A  ESQUIZOFRENIA

1-Diagnosticar como  esquizofrênico quem não é.
Causas:  imprecisão    do conceito  de  esquizofrenia; extrema  variabilidade da sintomatologia clínica;  semelhança com outros  quadros  psiquiátricos, notadamente  os  psicóticos.

2-Acreditar que  a origem  da  esquizofrenia   está  apenas  no cérebro. 
Causa:  epistemologia  psiquiátrica  com visão tosca  acerca da etiologia dos  transtornos  mentais, não  considerando  a  co-existência  de múltiplos  fatores  envolvidos.

3-Não escutar o esquizofrênico.
Causa:  concepção  médica que  prioriza o sintoma em detrimento  da vivência  do  paciente, o que  implica na  busca  da  exclusão  do  primeiro.

4-Tratar  apenas com psicofármacos.
Causa: a mesma que a do ítem anterior acrescida da  herança  histórica  da  psiquiatria    (vontade  de  controle  do paciente)  e  a  aliança   com  os   interesses  da  indústria  farmacêutica  internacional.

5-Pensar que  o esquizofrênico não pensa.
Causa: atualização contemporânea  do espírito  cartesiano  expresso  quando  do exame  do paciente. Resume-se  assim:  ele  não  pensa, ele  não existe.

6-Avaliar o prognóstico de forma  niilista.
Causa: o ítem  anterior  somado  à  concepção da esquizofrenia como  uma  espécie  de  doença  maligna  degenerativa,   e  o esquizofrênico  como   alguém  com  um  destino trágico a ser  cumprido.

7-Estabelecer uma identidade para  o esquizofrênico: o ser-esquizofrênico. 
Causa: manobra  político-institucional da psiquiatria visando configurar  um modelo de Doença  Mental  (o ser- paciente) em contraste  com um modelo  de Saúde  Mental (o ser-psiquiatra).

8-Considerar  de antemão que  o esquizofrênico está fora  da realidade.
Causas: crença inabalável  da  psiquiatria   nos  códigos  sociais  vigentes (conservadorismo);    adesão política  a uma  realidade  única e  verdadeira, a  Realidade  Dominante, desconsiderando as outras  realidades.

9-Desprezar  os  afetos  esquizofrênicos, classificando-os  como inadequados.
Causa: ignorância  secular da psiquiatria a respeito dos  processos  afetivos  presentes na  experiência  esquizofrênica.  Um exemplo: os  risos imotivados.

10-Instituir a  esquizofrenia  como entidade clínica. 
Causa: a necessidade  histórica da  psiquiatria  de se  estabelecer  como especialidade  médica com respaldo  científico-acadêmico, o que  lhe  assegura   status, prestígio e  poder.


Antonio Moura - do Trair  a psiquiatria

STAN GETZ - Lígia

A TAREFA PELA VIDA,  HOJE

A filosofia é a arte de criar conceitos, dizem  Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ora, tal assertiva  abre a possibilidade de levar a  todos a  possibilidade de  fazer  filosofia . No entanto, não é fácil criar, muito menos criar conceitos.Daí, a opção pelo Mesmo acaba predominando numa sociedade tecnológica regida pelo capitalismo aparentemente vencedor. A diferença só  resiste  se instalada nas micro-sensibilidades  e nas percepções sub-representativas da realidade.O mundo continua avançando.  Seus Estados-nações poderosos, seus Mercados excludentes e sua  Produção do Velho como se fosse o Novo, executam  o massacre do desejo.  A   hora da criação passa a ser  a da Loucura camuflada... de razão utilitária.

Antonio Moura

LIBERDADE É AZUL - Kielowski

ARTE  E  PSIQUIATRIA

Falamos da  arte como composição de linhas  subjetivas que  buscam  expressar e criar um mundo. É possível captar essas  forças no Encontro  com o paciente. A psiquiatria capta outras forças, é bem verdade, as  do  organismo físico-químico  adoecido  pelas condições em que  vive. Isso  significa    fabricado por múltiplas   determinações que escapam ao controle  do  eu. Escapam também ao enquadre linear  causa-efeito. Contudo, o que  o paciente  diz sentir  é o que  importa.  A arte, surge, então,   como resistência  às  situações  existenciais   adversas. Nesse  sentido  ela está  fora  da  psiquiatria, não havendo  encontro possível. A linguagem da  arte é  inseparável da  sensação,  pura  sensação que constitui a  subjetividade como semiótica  a-significante. Ou seja, não  sendo submetida à consciência  (“eu, enquanto indivíduo”), a produção da arte  é uma produção de singularidades que  retira matéria  viva    do caos .  Na psiquiatria  atual, no lugar da produção,o produto  é capturado (e  imobilizado)  por exames  de imagem. Sob controle (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

O GRITO - EDVARD MUNCH

UMA REVOLUÇÃO BIOLÓGICA ABORTADA

A propagação das neuroses é comparável à propagação de um flagelo. Envenena tudo o que foi criado pelo desejo, pelo esforço, pelo pensamento e pelo trabalho. Podia-se combater o flagelo sem obstrução externa porque nem interesses pecuniários nem interesses místicos eram violados. É muito mais difícil combater a propagação das neuroses. Tudo o que floresce sobre o misticismo do homem a ele se agarra e tem poder. Quem poderia aceitar o argumento de que a chaga psíquica não deveria ser combatida porque as medidas de higiene mental oneram demais as massas? É  uma desculpa dizer que não há fundos suficientes para levar adiante tais medidas. As somas em dinheiro esbanjadas na guerra, em uma semana, seriam suficientes para satisfazer as necessidades higiênicas de milhões de pessoas. Subestimamos as imensas forças que se encontram inaproveitadas no próprio homem, exigindo expressão e confirmação (...)

W. Reich - do livro A função do orgasmo

CÉU - Bobagem

lembro criança
quando ainda as  manhãs
não  me lembravam
que  eu era  criança

sábado, 25 de fevereiro de 2012

NASCIDO PARA MATAR - KUBRICK

NÃO DIZER ESQUIZOFRENIA

Não trabalhamos com o diagnóstico de esquizofrenia, exceto se houver  solicitação de relatório médico formal  por alguma entidade e/ou serviço de saúde.  Na clínica, contudo, melhor dizendo, na terapêutica e no prognóstico,  usamos o conceito de psicose submetido a critérios de operatividade existencial. Isto quer dizer: 1-pesquisa  da autonomia subjetiva e social; 2- capacidade de comunicação verbal; 3- capacidade de gerir a si mesmo; 4-capacidade laborativa;5-desempenho de papéis sociais; 6-nível de escolaridade;7-preservação das funções cognitivas; 8-capacidade de auto-crítica; 9-capacidade  de  crítica à realidade e ao mundo em geral; 10-atitude para com o uso de psicofármacos;11 - adesão ao tratamento; 12-relacionamento intra-familiar; 13-vida amorosa e sexual; 14-pesquisa do átomo social  e da rede sociométrica.  Outros critérios podem  surgir à medida em que o processo de tratamento avança. Esse conjunto de dados possibilitará um uso clínico favorável ao paciente, tanto nos casos de psicoses graves como nas que chamaríamos de leves. O termo esquizofrenia ficará  restrito às psicoses onde a maioria destes critérios  está comprometida. No entanto, para consumo "interno" e não para comunicar ao paciente.

Antonio Moura

JOÃO BOSCO - ARPOADORA

O NIILISMO DA SALVAÇÃO

Não existe mundo subjetivo interno. A subjetividade (que preferimos chamar de modo de subjetivação) vem de fora e volta  para fora, mesmo em casos de grave  fechamento existencial, como nas psicoses autísticas. São dados clínicos facilmente observáveis no contexto familiar onde o paciente está inserido..Neste sentido, a redução (na clínica) dos modos de subjetivação aos conceitos de eu, indivíduo, sujeito, consciência, cérebro, comportamento, conexões neuro-sinápticas, alterações físico-químicas, ou qualquer patologia que atinja o chamado organismo e páre aí, institui o primado da  necessidade do controle sobre os corpos. Toda esta engrenagem se encontra encoberta por ideais humanistas de bem ao próximo com um olho na lucratividade  do mercado. Mais doentes, mais remédios, mais profissionais da alma. A salvação dos tempos esquizofrênicos fica na órbita das transcendências do euzinho privado e em paz com suas consciências. 

Antonio Moura

DELEUZE E O DESEJO

VIAGENS DE MIGUEL

A expressão e os movimentos do corpo caraterizam  Miguel nessa "fase". Um corpo "liso"  (sem considerar,  pois, os órgãos-funcionais  separados uns dos outros) e um movimento velocíssimo arrastam o tempo útil  do capital (cronos) para um tempo "inútil", um gastar tempo, um fazer por fazer, um mover por mover... e por fim, mas não menos importante, um riso que explode sem nenhum suporte existencial fixo, um riso que expressa a alegria de viver, experimentar, expandir-se, pesquisar,admirar-se do mundo. O que é isso? De minha parte,  continuo o aprendizado cada vez com mais atenção.  Tento ser um bom discípulo das coisas mais simples e que constituem a vida em seu frescor. Mais do que centenas de livros,  ele é  o meu mestre. Até porque  confirma e enriquece o que  gente  como  Deleuze, Prigogine, Guattari, Machado de Assis, Foucault, Monteiro Lobato, Kafka, Bacon, Melville, Drummond, Fernando Pessoa,  Blanchot, entre tantos outros, já haviam  dito...

Antonio Moura
"As escolas não parecem prisões; elas são prisões" - M. Foucault
O TRÁGICO É ALEGRIA

Podemos compreender a unidade original do sofrimento e da alegria? Na condição de perceber, em primeiro lugar, que de nenhuma maneira um deles pode desenvolver o seu ser fora do outro, que não poderia haver alegria se não houvesse também algo como um sofrer primitivo, não alhures, fora dela, da alegria, na exterioridade, por exemplo, de uma relação intencional, mas nela, como seu suporte mais interior e justamente como sua própria carne. (...) (...) É desse modo que, segundo a afirmação decisiva de Nietzsche, a voluptuosidade nasce da dor (...) (...) Alegria e sofrimento nunca estão, portanto, defronte um do outro, como o carrasco diante de sua vítima; a sua relação exterior constitui apenas a representação de sua conexão interior em cada um daqueles que gozam e que sofrem(...)

Michel Henry - do livro A morte dos deuses - Vida a Afetividade em Nietzsche

BR - 3 Tony Tornado e Trio Ternura

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


em  brasília
idéias  públicas
tornam-se
                privadas

ORAÇÃO AOS CÉUS

EXPOSIÇÃO AOS SIGNOS

Um amor medíocre vale mais do que uma grande amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de interpretação silenciosa. Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosófica, porque o que está envolvido no signo é mais profundo que todas as significações explícitas (...)

G. Deleuze - do livro Proust e os signos

YANN TIERSEN

ÉTICA DA CLÍNICA

Legiões  de psiquiatrizados  de toda parte ajoelham-se  no altar  dos psicofármacos e dos  cérebros   à mão. Tudo conspira a favor do consumo  de pacotes  cientificamente autorizados  para ações lucrativas. No entanto, mesmo   desbotada e segregada nos  grilhões cidológicos, a diferença  resiste. A ética da potência  de viver afirma-se    como  ética  de poetas   itinerantes.
O discurso e a prática da  diferença  exploram  o avesso   da  ordem  do  estado  capitalista. Quem se  interessa  em criar,  fazer nascer?   Pergunta  insana,  na  medida em que  os  poderes investem na   repetição do  mesmo e  no  rigor  mortis   do pensamento.  Por  isso,   uma  clínica  da diferença considera as  determinações sócio-políticas  como  a     superfície  da  ação  mais  concreta. O  ato  clínico.  Em  suas  pesquisas, não  encontra  respostas  exatas, mas   problemáticas instigantes.
Se  a loucura é  a experiência que   atravessa a subjetividade,  (mesmo que não estejamos    loucos, podemos entrar  num devir-loucura), tudo  muda  na  percepção fina  da  realidade do  Encontro. Um novo universo se  desvela. Somos devires incontroláveis.

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

ÁGUAS DE MARÇO

DIFÍCIL...

Atender o paciente é encontrar  a  loucura.  Interessa,   pois,   ao   psiquiatra,  sair de si  na   direção de  um  campo vivencial   movediço, sem  garantias  prévias,  sem  receitas  ou   protocolos   técnicos. Sob  tais  condições,  torna-se  um  feiticeiro.  Carrega  o  seu balaio  de  conceitos na  espreita de mais  um  encontro em que  possa usá-los (...)

Antonio Moura
Espinosa - 1632 - 1677
regridimos
um pouco
de lá pra cá:


quem era
trilouco
virou bipolar


Nildão

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

PAULO DINIZ - Um chope pra distrair

VIAGENS DE MIGUEL

Miguel  já  anda. Aos 11 meses,  voa à procura do mundo. É  puro desejo.  Continua desapegado dos brinquedos industriais. Prefere explorar os espaços da casa que nem sempre lhe são favoráveis. Cai aqui, cai ali e se ergue no meio do choro que rapidamente se transforma em riso. Fico buscando apreender com ele os elementos da existência. Ele é um ser metafísico. Será possível?  Miguel é esperto. Nada  de graça. Ele me leva a uma entrega total  em termos dos seus caprichos e das  suas vontades não cadastradas. Treino  com afinco o  desejo de estar (concordar) com ele sem estar. Trata-se de um jogo.  Não é fácil. Se ele quer passar 24 hs sem dormir, fica complicado. No entanto, isso é "negociado" nas vezes em que o ponho no colo e saio pra passear. E aí, Miguel? Seus olhos expressam uma energia que inunda o tempo. Ele cresce e se expande. E a gente nem nota... Resta amá-lo sem expectativas....

Antonio

KANDINSKY

Impressões à  prova  
                                                         Antonio Moura

O psiquiatra viaja  em mundos  distantes. Arrisca  saltos no abismo em patologias vistas de perto. Quem é você?  Que se passa?  Mete-se no tempo das noites loucas do Santa Mônica [1] . Tão longe  estão, quanto  intactas e livres. Houve  um tempo que não passou e passou. Nutre-se de paradoxos. Faz rir.  O psiquiatra lembra  que não há mais tempo. A hora esgotou-se como seringa descartável. O tempo deixou de ser um espaço , mesmo que de dança. Não mais  que ontem,  o tempo-passagem    embriaga e dissolve   espaços. As palavras soam bobas. Situações  densas se quebram. O psiquiatra  se desloca pelos campos verdes  do pensamento, aspira blocos de manhãs. Elas ardem na pele dos seres que  ficavam. Café da manhã  com  luz queimando os olhos. O dia  se avizinha.  Prontuários entre canções  de ninar.  Manhãs insistem.  Plantões voltam sempre, deitam no plantonista que se  esvai em sofrimentos deliciosos. É hora de dormir com a  manhã. Antes,  a insônia compunha os  insanos.  O círculo da velha juventude  e a gargalhada  dos pacientes seguiu  os passos de um tempo a se fazer.  Agora.  Nenhuma crença move   o passado.  Não há falta.  Um corpo  muda e permanece na pele do sol que  queima o filme   de remédios na veia. Dois dois.  O psiquiatra trabalha  sem  saber de si. Os olhos da loucura  arregalam  a manhã para além dos muros. Ele sabe  que não sabe o instante seguinte, ou onde estará o companheiro Marx. Marx! Marx! Suas pesquisas incluem a dor de existir tão profunda quando a  aparência dos que vivem das  batidas incertas do mundo. Alguma coisa empurra o humor não psiquiátrico para uma  alegria suspensa no ar. Sem garantias.  Companheiros de textos  constroem  em sua carne espiritual,   infinitos à  mão. Entre si    olham  retinas ainda não cansadas pelos ardis da miséria. Uma máquina de fazer o cosmos  no mais rente ao  chão, se esboça. O psiquiatra fala do passado para construir  pedaços dispersos de memória vã.  Sem retorno.


[1] Hospital psiquiátrico particular situado  em Salvador, Bahia. Nos anos 70 ,  a equipe técnica   atuava  sob  a  influência das idéias que  questionavam a própria existência  do hospital como modelo de tratamento.

CÉU

QUAL LIBERDADE?

A circulação dos signos, suas relações com as estruturas técnicas de transmissão, não unicamente o universo televisivo, mas também todos os outros caminhos tomados para levar uma mensagem de um local para um outro, oferecem ocasião de esvaziar a liberdade de seu conteúdo libertário para preenchê-lo com outra matéria, comestível unicamente dentro do mercado liberal. A liberdade se reduz à possibilidade de se inscrever numa lógica mimética, de tomar parte na corrida dentro da qual todo mundo visa à ascensão aos estágios superiores da escala social proposta num modelo único pelo mundo mercantil. Liberdade de ter, liberdade liberal, contra liberdade de ser, liberdade libertária (...)

M. Onfray - do livro A política do rebelde - tratado de resistência e insubmissão

CLÁUDIO ULPIANO - NA CONTRA-CORRENTE

OUTROS EUS

(... ) o "poeta" é aquele para quem não existe sequer um único mundo, porque para ele só existe o lado de fora, o fluxo do eterno exterior.

M.. blanchot - O espaço literário

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

EGBERTO GISMONTI - Água e vinho

DEVIR-FEITICEIRO

O  psiquiatra  se  despersonaliza. Torna-se  algo que  se   torna  outra  coisa.    Vive  nos e  dos   paradoxos  da linguagem que o  empurram a    encontrar  o  paciente, o  mundo,   o  cosmos.  Não  compreende  o que se  passa. Perplexo, interroga e interroga-se.    Dança   e  entoa  em silêncio  cânticos    extraídos  do fundo    de   vielas    existenciais.   Não  busca  uma  ontologia  da  psicose  e/ou  dos transtornos   mentais.  Ele  talvez  consiga ser  um  feiticeiro    da  modernidade  técnica, criando linhas  de  pura alegria (ainda  e  principalmente)   nas  quedas  e surtos dos  pacientes  e  de  si  mesmo.  O método da diferença  traz essa possibilidade para  o interior  da  clínica. Os fármacos podem (claro  que  sim!)   ser parceiros  numa   empreitada   sem signos  prévios.  Use  e  controle  essa  droga  lícita, sabendo que   ela  pode se  tornar  ilícita  se atentar  contra  a    criatividade  do   seu  viver.  Não só  a química,  mas  todo  e qualquer  objeto  pode  induzir a uma dependência  abjeta.  O  psiquiatra-feiticeiro  não é  esse objeto.  O psiquiatra  remedeiro,  sim. Este   se  alimenta  de  subjetividades  enrijecidas,  esvaziadas,  ocas,  trastes apelidados  de pacientes.  É  preciso, pois,   um combate incessante contra  a máquina farmacológica.  O  fármaco é   apenas um elemento   prático-terapêutico.  Um  devir-feiticeiro   conta  com outros  elementos: a sensibilidade,  a intuição, a percepção  do invisível,o  senso de observação,  a  escuta do  silêncio,  a espreita,   todo um conjunto  de dispositivos... (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
DESEJAR...
Ao leitor:

Para entendimento dos 2 comentários abaixo (Para além da química - I e II) é necessário  que se  assista  previamente  o vídeo acerca do uso de drogas psiquiátricas nos EUA.
PARA ALÉM DA QUÍMICA - II

Ainda sobre o documentário americano: há vários pontos obscuros, vazios,  no relato acerca do paciente que usou lexapro. O que disse o medico assistente sobre o fato? Qual a  sua versão? A opinião da farmacêutica de que o paciente sofreu uma "psicose induzida por droga" (no caso o lexapro) pode ser facilmente substituída por outra: o paciente já sofria de uma psicose antes mesmo de começar a usar o tal remédio. Como o lexapro é anti-depressivo e não anti-psicótico, ele não só não melhorou, como piorou, chegando ao suicídio. Considero precipitado atribuir ao lexapro (oxalato de escitalopram)  a causa  do suicídio. Haveria de se investigar mais. Apesar de tudo, a denúncia da situação atual de "psicofarmacologização" do mundo é plenamente válida. É  impressionante o caso das crianças usando remédio e a partir de um diagnóstico único, o TDAH.

Antonio Moura
PARA ALÉM DA QUÍMICA - I

A questão do uso das drogas psiquiátricas remete a múltiplos vetores da análise. Podemos citar  1- o diagnóstico psiquiátrico, ato que precede a prescrição  farmacológica, é  impreciso, para  dizer o mínimo; 2-ainda quanto ao diagnóstico, ele não é o paciente, e sim representa o paciente; é uma função e não uma essência.; 3-a epistemologia médica é positivista, mecanicista, calcada na etiologia linear causa-efeito; 4- a pesquisa psiquiátrica é tosca e rasteira  como produção de conhecimento sobre a subjetividade; 5-a psiquiatria não dispõe de uma teoria da subjetividade nem dos afetos, elementos psíquicos que   "sustentam" o processo subjetivo. 6- a indústria farmacêutica produz remédios, óbvio, mas produz também quem toma os remédios, o paciente e por extensão,a família que o leva ao psiquiatra e diz amém às suas receitas... Há outros vetores. O essencial a destacar é o fato de que o remédio não é um mal em si, já que  às vezes dá a impressão o  texto do  documentário abaixo.

Antonio Moura

A QUESTÃO DAS DROGAS PSIQUIÁTRICAS

PÁSSARO SOLITÁRIO


As condições de um pássaro solitário são cinco:
Primeiro, que ele voe ao ponto mais alto;
Segundo, que não anseie por companhia, nem a de 
sua própria espécie;
Terceiro, que dirija seu bico para os céus;
Quarto, que não tenha uma cor definida;
Quinto, que tenha um canto muito suave.


San Juan de la Cruz

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Thais Gulin - Garoto de aluguel

A  desnaturalização  do  paciente  
                                                              
A  clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica  que incide sobre o  trabalho com o paciente. Em termos  empíricos, o próprio  paciente torna-se  um produto de forças institucionais; elas  fabricam a clínica e por extensão o paciente.  Tais forças  se explicitam na  psiquiatria,  são  a  psiquiatria  .  No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas   se concretizam  como rostidade  farmacológica.  É  um regime de aparência corporal,  semiótica,   que traça uma  linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses,  por excelência,    são  objeto   desse processo  de  rostificação. A cena extremada,  o paciente  impregnado  por   neurolépticos  (alterações  extra-piramidais)  e outros  signos  menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer  psiquiatria nos dias atuais tem  a opção farmacológica como  palavra de ordem: prescreva mais  e mais  remédios químicos. Isso não  vale apenas   para os que estão científico  e   juridicamente   autorizados a  fazê-lo, mas para todos os  que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a  chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam,  todos estão medicados,   medicalizados   numa  produção subjetiva  inconsciente e incessante. Isso é de uma  tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem  programada se impõe como desejo psiquiátrico  único e  totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo  de alguém.  Ao contrário,  é coletivo  e só  se mostra   individual   como  produto de um segmento dominante. A  forma-psiquiatria é  este   segmento dominante no funcionamento da equipe.  Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço  da luta antimanicomial   . Afinal,   a psiquiatria mantém um  status   baseado  na medicina,   o  que   opera   efeitos concretos,   entre eles, o da farmacologização  subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que    funciona em oposição ao rosto   normal (...).  


Antonio Moura
A vida só é possível num universo  longe do equilíbrio (...) (...)

Ilya Prigogine - do livro O fim das certezas

Sobre psicodrama - parte 3

AFIRMAR UMA  DIFERENÇA

Evitando   seguir  a tendência da psiquiatria  biológica  em   dosar o  humor, afirmamos que  é  preciso  escutar   o  paciente,  captar   o que  se passa   na   vivência  de si e  do  mundo. O humor  baixo, à medida em que espalha o   seu  efeito  nocivo, efeito  anti-vida, muda  a  configuração clínica. Associa-se à ansiedade, às  alterações  do nível da consciência e  até   aos  sintomas psicóticos  - delírios  e alucinações.  Este  dado  é  importante na  formulação  de uma  hipótese diagnóstica   que   se  ache   ancorada na entrevista. Aí  os  signos  são  emitidos e é  onde  o psiquiatra se  arrisca a pensar a  diferença  e  os  detalhes que  escapam ao  molde pessoal ou nos  casos em que o  paciente  já  chega  com  um diagnóstico. Óbvio, é  difícil  ignorar  os   efeitos  do diagnóstico  pronto   sobre  a  produção de  signos do  quadro  psicopatológico. O  caso do  humor  é  emblemático pois coincide com   um  momento histórico   de  grande  morbidade dessa  patologia. A palavra  “depressão”  é  usada largamente,  tanto pelo discurso especializado quanto  pelo leigo. No  primeiro  caso, as diferenças entre  uma síndrome  (ou  transtorno)   depressivo   e um sintoma  depressivo são ignoradas.  As conseqüências  sobre o tratamento medicamentoso   costumam  ser    desastrosas.  No  segundo  caso,  o termo  “depressão” é  usado para  nomear  qualquer  situação que  implique  problemas  mentais,  o que  se  observa  no senso comum  e   na  anamnese.  
O  encontro com o paciente substitui  o exame, já  que  o paciente    “se  sustenta”   pelos  afetos. O  exame não  capta  os  afetos.   Ele    busca  visibilidades.  Mas  a  mente   não  é  visível,  mensurável  ou    palpável.  O    humor  é    o   afeto  que  mais se aproxima de uma “mensuração”. Há     graus de variação   a   respeito  .  Desse  modo,   a opção  pela  pesquisa do  humor  não  deixa  de considerar a  sua  importância  semiológica. A  clínica do  Humor é uma prática que  se impõe, às vezes  de forma  positivista,  fabricando  deprimidos  crônicos no  lugar  de  subjetividades  potentes. Deprimidos  crônicos ou ex-deprimidos agudos.  Contudo, para  além  do  humor,  afetividades  insistem.  O  problema  é: quem  as  detecta?  Os  afetos  são mais profundos  que  o  humor,  se   ligam   às  crenças   e   é  através  delas que  o paciente obtém uma consistência básica para  existir. “Eu acredito”, diria alguém, mas  “acredita  em quê?”(...)

Antonio Moura-do livro Trair a psiquiatria

MACHU PICCHU

DEVIR-ANIMAL

É claro que há lobisomens, vampiros, dizê-mo-lo de todo coração, mas não procure aí a semelhança ou a analogia com o animal, pois trata-se do devir-animal em ato, trata-se da produção do animal molecular (enquanto que o animal "real" é tomado em sua forma e sua subjetividade molares) (...) Sim, todos os devires são moleculares (...)

G. Deleuze e F. Guattari - do livro Mil platôs

VANDRÉ agora pode falar ;a Globo agradece pela audiência

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

DISFARCE

o Estado é uma máquina
(sem metáfora)
por mais que a sua boca
sorria.

o Estado é uma máquina
é isso aí.

não pergunte
onde anda a vida
não questione o dia
nem fale de poesia.

o Estado é muito vivo
pode escutar.

DESEJAR...

SOBRE TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE

Excetuando o anti-social  e o  borderline, os demais   não  constituem, em geral,   uma   ameaça à ordem  psiquiátrica. Ao contrário, a psiquiatria os mantém como referência semiológica para um diagnóstico definido ou  a esclarecer.  Nos manuais psiquiátricos as descrições são redundantes, mas permanecem  compondo um capítulo dos códigos dos transtornos mentais ( = doenças mentais).   Mas, que doenças?   Aquelas que menos se parecem com doenças. Neste sentido, o critério   usado para um enquadramento patológico é moral. É onde  a psiquiatria expõe    os  seus instrumentos de poder   acoplados à moralidade vigente. A descrição dos tipos, comparando-se   uns   aos outros    é rasa em argumentos conceituais   e redundante como elucidação de métodos. Dimensional ou  Categorial [1] eles   não modificam a   fundo  a situação  clínica de incerteza  diagnóstica.   Há pacientes que parecem normais. E nem sequer  são loucos “por dentro”, como na paranóia ou no  transtorno delirante persistente. O essencial é que eles  não deliram, não há  angústia, a cognição é íntegra.  Porém,    incomodam  e  fazem sofrer[2].   Certas  personalidades   incomodam   desde que suas características  destoem dos códigos sociais.  No entanto, muitas  se configuram  nos próprios códigos   e se encaixam numa atividade laboral, num contexto  relacional  amoroso, numa inserção institucional de poder,etc. Um tipo obsessivo atuando no serviço burocrático, um  paranóide desempenhando  investigações na polícia federal, um dependente  pendurado num casamento,  e assim    por diante.   Pode-se   dizer que em   grande parte os atributos dessas personalidades  tornam-se  úteis   ao funcionamento social, não deixando qualquer vestígio de anormalidade ou patologia (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

[1] São dois métodos usados para avaliar os TP. O categórico estabelece uma base descritiva  nos termos do verbo ser. Acaba remetendo o paciente a uma “essência” da  personalidade.  O  dimensional relativiza esse dado em prol de uma avaliação por grau de alteração: mais histriônico ou menos histriônico, por exemplo. No entanto, ambos os métodos trabalham sobre o frágil conceito de personalidade.
[2] Schneider define os TP como aqueles que sofrem com sua anormalidade ou fazem sofrer a sociedade. Ora, a clínica nos mostra que a segunda opção é muito mais encontradiça...
CAPSOLÂNDIAS

Mas o certo é que a maioria dos Caps não funciona pensando na cidade, e em seus problemas mais candentes (...) (...) Tal linha de ação foi criando uma corrente tecnocrática: os Caps envelhecem prematuramente, segmentarizam-se, sua vida torna-se cinzenta, infantilizada e os profissionais são regidos pelas dificuldades e se enclausuram em diversas formas de corporativismo. Os recursos se reduzem, se repetem e as equipes, como dantes, voltam a centralizar-se no psiquiatra. Retornam os ambientes sombrios e o odor de haloperidol que caracteriza, pelo cheiro, o hospício ou a clínica.
Um Caps burocrático é um Caps que cheira mal (...)

Lancetti, Antonio - Clínica peripatética, S. Paulo, Hucitec, 2006, p.47.