AS DEPRESSÕES
Se considerarmos o processo histórico-vital como uma sucessão de perdas, sem dúvida, a depressão se afigura como “inevitável”. De todo modo o seu cortejo lamurioso é uma acusação à vida . Ela atravessa praticamente todas as síndromes psicopatológicas. Na descrição do paciente deprimido observemos o seu rosto. Ao contrário da manobra objetificante da psiquiatria (o “ser-da-depressão” expresso numa medida, imagem, tabela, etc), é possível captar os pequenos traços que evidenciam um rosto deprimido. Óbvio que não há O deprimido e sim Um deprimido, ressaltadas as singularidades nem sempre visíveis. Assim, a observação do corpo como superfície de intensidades é fundamental. Os afetos produzem um corpo. As depressões produzem corpos-zumbis. Um corpo deprimido está fora das categorias do organismo. O organismo pode estar de pé, mas o corpo não. A via do corpo é a condição para o método da diferença e suas implicações terapêuticas. O humor hipotímico está disseminado pelo corpo que não se vê, mas se intui no Encontro com o paciente. Isso significa que o processo do desejo “obedece” linhas de molarização : elas configuram um quadro clínico definido. Contudo, para ir além disso, e de fato intuir o que se passa com o paciente, podemos situá-lo conforme dois eixos de percepção clínica: 1- o corpo; 2- o tempo. Os dois se misturam. É um truísmo dizer que o corpo deprimido é um corpo com pouca energia. Daí, dizemos que não existe o corpo deprimido e sim o organismo deprimido. O corpo não consegue emergir como sentido. Não faz, não produz sentido. Está restrito ao organismo físico-químico, o qual é produzido por instituições, entre elas a medicina, a família e a escola. As depressões são inseparáveis desse nexo estreito com o que as precede e as envolve. As disposições genéticas, o sistema neuro-endócrino, o funcionamento bioquímico são alguns dos vetores prestigiados pelas pesquisas atuais. Daí, pensar as depressões é pensar as multiplicidades que constituem o meio de onde e por onde linhas depressivas compõem modos de subjetivação. É uma visão que abre a semiótica clínica para um corpo que envia signos a-significantes, ou seja, descolados das categorias nosológicas psiquiátricas. O aparente dualismo (corpo-tempo) serve para fincar as bases de uma semiótica das depressões. Ela passa pelo corpo e se inscreve no tempo dos devires. Estes são processos do desejo. Contudo, o corpo do deprimido está submetido ao organismo. Neste não há o tempo de Aion e sim o tempo de Cronos. Síndrome de Cottard , mergulho nas profundezas das vísceras apodrecidas. O deprimido costuma recitar os enunciados estabelecidos e não seguir as linhas da produção desejante. Ele não vive. Apenas sobrevive. É um ser molar, composto por identidades estáveis, regendo o concerto da morte em vida. Vivências paranóides não são incomuns. A baixa do humor condiciona juízos persecutórios. Do mesmo modo, as funções psíquicas como um todo estão alteradas: consciência, eu, sensopercepção, pensamento, memória, atenção, inteligência, fala. A angústia às vezes compõe o quadro, mas diferencia-se do humor depressivo pela sua forma plástica expressando sofrimentos indizíveis. Mais conhecida atualmente como “ansiedade”, é uma experiência de mal-estar psíquico com repercussões somáticas, mas que não evidencia a destruição física e mental tão marcante nas depressões. Depressão e ansiedade tem “naturezas” diferentes, ainda que possam vir juntas. O deprimido “quer” morrer. O angustiado (ou ansioso) não quer “necessariamente” morrer. Talvez busque uma “saída” para a vivência de pânico, de fobia, de um incômodo mal caracterizado. Quanto à linha suicida do deprimido, claro, nem sempre leva à morte do organismo. A linha de sofrimento do angustiado é o corpo se debatendo contra demônios (fantasmas), ainda que em desvantagem e fracassando sempre. Uma angústia intensa pode levar uma depressão a se tornar “agitada”. Essas diferenças, expressas em metáforas devido às nuances vivenciais com que se mostram, são de grande valor na opção terapêutica adotada, tanto farmacológica quando psicológica. A inibição psicomotora “pura” marca o negativismo e o mutismo, dificultando um diagnóstico diferencial (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
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