segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

AS DEPRESSÕES

Se considerarmos  o processo  histórico-vital  como uma sucessão de perdas, sem dúvida, a  depressão  se  afigura como “inevitável”. De  todo  modo  o seu   cortejo  lamurioso é  uma acusação  à vida .  Ela   atravessa   praticamente  todas as  síndromes  psicopatológicas. Na  descrição do paciente  deprimido  observemos o seu  rosto.  Ao contrário da manobra   objetificante    da psiquiatria  (o “ser-da-depressão”   expresso  numa medida, imagem, tabela, etc), é possível   captar  os  pequenos  traços  que  evidenciam  um rosto  deprimido.  Óbvio que  não há  O deprimido e  sim  Um deprimido, ressaltadas as   singularidades  nem sempre visíveis. Assim,  a  observação do  corpo como superfície de intensidades é fundamental.  Os  afetos  produzem um corpo. As  depressões  produzem corpos-zumbis.  Um corpo deprimido  está  fora  das  categorias do  organismo. O organismo  pode  estar  de pé, mas  o corpo  não. A via  do  corpo é a condição para o método da  diferença   e   suas  implicações  terapêuticas. O humor  hipotímico está  disseminado  pelo corpo que  não se  vê, mas  se  intui no Encontro  com o paciente. Isso significa  que  o processo  do desejo “obedece”  linhas  de molarização   : elas  configuram um quadro clínico definido. Contudo,  para ir além disso, e  de fato  intuir  o que  se passa  com o paciente, podemos  situá-lo conforme dois  eixos de percepção clínica: 1- o corpo; 2- o tempo. Os dois  se  misturam. É um truísmo dizer  que  o corpo deprimido é  um  corpo com pouca  energia. Daí,  dizemos   que não existe  o corpo  deprimido e sim o organismo deprimido. O corpo  não  consegue  emergir  como  sentido. Não  faz, não produz  sentido.  Está  restrito   ao organismo  físico-químico, o qual  é  produzido  por  instituições, entre  elas  a medicina, a família  e a  escola.  As depressões  são  inseparáveis desse nexo  estreito  com o  que  as  precede e  as envolve. As disposições genéticas, o sistema  neuro-endócrino, o  funcionamento bioquímico são alguns  dos  vetores   prestigiados pelas  pesquisas  atuais.  Daí, pensar as  depressões é  pensar   as multiplicidades que  constituem  o  meio   de  onde  e  por  onde  linhas  depressivas  compõem modos de subjetivação. É uma   visão   que  abre  a semiótica    clínica  para um corpo que  envia  signos  a-significantes, ou  seja, descolados das  categorias  nosológicas  psiquiátricas. O  aparente  dualismo  (corpo-tempo)   serve  para fincar  as bases de  uma semiótica  das  depressões. Ela  passa  pelo  corpo   e   se  inscreve  no tempo dos  devires.  Estes são    processos  do desejo. Contudo,  o  corpo do deprimido  está  submetido  ao   organismo. Neste  não  há  o tempo  de   Aion  e sim o tempo  de  Cronos. Síndrome  de  Cottard   , mergulho nas profundezas das  vísceras  apodrecidas.   O deprimido    costuma   recitar  os  enunciados  estabelecidos e não seguir as  linhas da  produção  desejante.  Ele   não vive. Apenas sobrevive.   É  um ser  molar, composto   por identidades  estáveis, regendo  o concerto da morte em vida. Vivências  paranóides  não   são incomuns.  A baixa  do humor  condiciona  juízos persecutórios. Do mesmo modo, as  funções  psíquicas como  um todo estão alteradas: consciência, eu, sensopercepção, pensamento,  memória, atenção,  inteligência, fala. A angústia às  vezes compõe  o quadro, mas diferencia-se  do humor  depressivo pela   sua   forma  plástica  expressando  sofrimentos  indizíveis. Mais conhecida atualmente como “ansiedade”, é  uma experiência de mal-estar  psíquico  com repercussões  somáticas, mas  que  não evidencia a  destruição  física  e mental tão marcante  nas  depressões. Depressão e ansiedade tem “naturezas”  diferentes, ainda que  possam vir  juntas. O deprimido   “quer”  morrer. O angustiado (ou ansioso) não quer “necessariamente”  morrer.  Talvez   busque  uma   “saída”  para a  vivência de pânico, de  fobia, de um incômodo mal  caracterizado.  Quanto à   linha suicida  do deprimido, claro, nem sempre leva   à morte  do organismo. A linha  de sofrimento  do angustiado  é o corpo se  debatendo  contra  demônios  (fantasmas), ainda  que  em desvantagem e fracassando  sempre. Uma  angústia  intensa pode  levar  uma  depressão a  se tornar “agitada”.  Essas  diferenças, expressas   em metáforas devido  às  nuances  vivenciais com  que se mostram,   são  de grande valor   na opção terapêutica adotada,  tanto  farmacológica  quando psicológica. A  inibição  psicomotora  “pura” marca  o negativismo e o mutismo, dificultando um diagnóstico diferencial (...)

Antonio Moura - do livro  Trair a psiquiatria 

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