PROIBIDO DESEJAR
A larga utilização de psicofármacos em associações variadas borra a linha abstrata que divide os doentes dos não-doentes. Para a psiquiatria atual tudo é psiquiatrizável. Esta sentença diagnóstica ocupa o lugar de poder respectivo ao enunciado. Importa que o paciente seja medicado e adaptado. O afeto é secundário à tal manobra terapêutica porque ele foi posto como consciência do sentimento no pacote nosológico. Se todos são julgados de antemão doentes, não interessa saber o que efetivamente sentem (qual o afeto?) e sim o que fazem... É um regime paranóico guiado pela razão: desconfiar da afetividade. Esta não é mensurável; um modelo de pensar desconsidera até mesmo condições evidentes de sofrimento como as da depressão e da angústia. Esses afetos têm formas de expressão extremamente variadas, nuances clínicas finas, imperceptíveis a um olhar normatizador. Eles resistem a um cadastramento semiológico. Por isso, muitas vezes ficam excluidos da avaliação ou incluidos numa espécie de “rostidade clínica” . Transtorno do humor ou de ansiedade? Uma reificação dos sintomas, um endurecimento dos signos da doença,uma forma de trabalho do pensamento da representação. Não importa pesquisar as singularidades de cada caso. O que está em jogo é o conceito de doente como ser improdutivo e não o de loucura. Isso nos remete à questão do louco e à sua conduta social. O conceito de louco está na base da construção histórica do conceito de doente mental, o que implica na negação enviesada do da loucura como conceito não médico e por isso irrelevante para a clínica psicopatológica . A figura do louco, substituida na atualidade pela do portador de transtorno mental, cumpre, entre outras, a função de desviar o foco de pesquisa da loucura (portanto, do pensamento) para a clínica moral (a técnica pura). É uma maquinaria institucional lastreada em rituais acadêmicos e inscrita num corporativismo profissional (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
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