A MÁQUINA BINÁRIA
Antes da pessoa do professor e do aluno existe a máquina binária do ensino obrigatório que estabelece as condições organizacionais para aprender e ensinar. Diz-se o que é aprender e o que é ensinar, e esse enunciado implícito é aceito como um fato natural. A boa vontade de um professor em ser um bom mestre (=passar os conteúdos), bem como a disposição do aluno em aprender(=acumular os conteúdos), não significa que o pensamento esteja presente. Não significa também que haja criação ou produção de conhecimento, mesmo que o ensino esteja acoplado a alguma pesquisa. Há outras variáveis em jogo. Tais variáveis vêm da instituição educacional e superpõem-se sobre o ensino, sobre o ato de ensinar, como se ensinar e educar fossem a mesma coisa. Educar remete à Educação, à forma-Educação, poderosa instituição milenar que se reproduz em práticas escolares; este é o seu ponto de aplicação talvez mais efetivo, a superfície de inscrição do desejo de saber, aí onde a materialidade da aula encontra uma expressão acabada e direta. Ou seja: o professor é quem ensina porque sabe; o aluno é quem aprende porque não sabe.
É a máquina binária professor-aluno funcionando em toda a parte onde existe escola. Não se trata, pois, de considerar as pessoas, boas intenções etc, ao jeito humanista de ver as coisas. A máquina produz as pessoas, ou melhor, as pessoas são peças que se ligam umas às outras para a produção de subjetividades em série, prontas para o Mercado. Isto não significa que, em termos da experiência do professor e da experiência do aluno, haja uma passividade em relação ao que acontece em torno. Pelo contrário, a pessoa, tendo um universo de representações e imagens ao seu dispor, mormente quando estimulada pela atividade intelectual, acredita estar agindo, quando é agida. Acredita estar controlando, quando é controlada. Acredita estar mandando quando é mandada. Tudo ocorre num campo invisível, onde só as forças tem acesso e funcionam em regimes subjetivos ou de subjetivações. A pessoa é o indivíduo e este é o sujeito, num encadeamento natural para que o ato de ensinar/aprender se faça sem problemas. Esta máquina está ligada a outras máquinas, isto é, a instituições: são formas sociais, cristalizações de processos, outrora, talvez, de criação. A escola, a educação, o eu, a avaliação, a aula, a divisão público/privado, entre outras, são formas sociais que, como trilhos dispostos sobre o caos, orientam o rumo do ensino e do aprendizado para um objetivo maior, transcendente, e por isso, intocável: o acúmulo de conhecimento.
Um desejo de ensinar e um desejo de aprender se conjugam para estabelecer a superfície do Encontro professor-aluno. Como dissemos , a superfície é uma máquina, na medida em que antes das pessoas, estão as instituições. Elas se imiscuem numa produção incessante de consumo. Consumir o ser. Ser alguma coisa para o mercado. Esta é a regra que vem de fora mas que está dentro da máquina. É o seu próprio combustível. Pelo menos, em tempos de hoje, o Mercado é a lei das visibilidades expostas na vitrine das técnicas: quem serei amanhã? como sobreviverei? A visão do mestre como sacerdote, e da educação como o lugar da salvação, foi devorada pelo Mercado onipresente. Daí, falar da máquina binária requer falar da máquina ternária, onde se insinuam relações de troca e mais profundamente relações de poder. Um lugar espera o professor com o script marcado, tanto mais, ou quanto mais ele inove ou queira inovar métodos e técnicas em sala de aula. A sala de aula é o rosto do mercado travestido em rigor pedagógico; este disfarça o rigor mortis do desejo. Nestas condições, ser professor é seguir a pedagogia da falta, para a qual falta conhecimento ao aluno, falta responsabilidade ao aluno, falta compromisso ao aluno, sendo necessário preeenchê-lo, enchê-lo. De idéias, conceitos, opiniões. E o pensamento? (...)
Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia
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