sexta-feira, 18 de janeiro de 2013


MILLERIANAS

(...) Bóris dá-me dinheiro para comprar bebida. Só de buscar a bebida, já estou embriagado. Sei exatamente como começarei quando voltar para casa. Descendo a rua, a coisa começa, o grandioso discurso, borbulhando dentro de mim como a risada solta da Sra. Wren. Parece-me que ela já está um pouco excitada. Ouve maravilhosamente quando bêbeda. Saindo da loja de vinhos, ouço o urinol borbulhar. Tudo está solto e esparramado. Quero que a Sra. Wren ouça... 
Bóris esfrega as mãos de novo. O Sr. Wren ainda está balbuciando e gaguejando. Tenho uma garrafa entre as pernas e estou enfiando o saca-rolhas. A Sra. Wren está com a boca aberta, expectantemente. O vinho derrama-se entre minhas pernas, o sol derrama-se através da janela e dentro de minhas veias borbulham e esparramam-se milhares de coisas loucas, que começam agora a jorrar para fora de mim em confusão. Estou dizendo a eles tudo quanto me vem à cabeça, tudo quanto estava fechado dentro de mim e que a risada solta da Sra. Wren libertou de uma maneira qualquer. A garrafa entre as pernas, e o sol derramando-se através da janela, experimento mais uma vez o esplendor daqueles dias miseráveis em que cheguei a Paris, indivíduo desorientado e ferido pela pobreza, a rondar pelas ruas como fantasma num banquete. Tudo me volta num jato: os lavatórios que não funcionavam, o príncipe que engraxou meus sapatos, o Cinema Splendid onde dormi sobre o capote do "patron", as grades na janela, a sensação de sufocação, as baratas gordas, as bebedeiras que aconteciam de tempos a tempos, Rose Cannaque e Nápoles morrendo sob o sol. Dançando nas ruas com a barriga vazia e de vez em quando procurando pessoas estranhas --Madame Delorme, por exemplo. 
(...)
H.Miller

Nenhum comentário:

Postar um comentário