sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

PENSAMENTO DA SAÚDE MENTAL                      

Não acreditamos na crítica  como ato que   propicie  uma criação.  A  criação é que   propicia uma crítica. A  criação vem primeiro.  Saúde é um conceito nominal.  Aparelho    engendrado     por  tecnocratas do Estado,   vive  para  a  idéia, o imaginário, a transcendência    e as boas  intenções humanísticas. Com o conceito de mental ocorre o mesmo. Criar  nada  tem a ver com essa   ladainha político-conceitual. A arte de  criar conceitos, como diz  Deleuze, é a aventura do novo. Em saúde mental,  criar é  despersonalizar-se  sem culpa, ressentimento ou nostalgias  egóicas. Começa  pela ausência de títulos e   pompas.  Uma   gratuidade.  
Talvez  qualquer  Caps    enfrente   a desvalorização    do usuário e da equipe técnica. Baixos  salários e  a  trama    do Estado corrupto.  Apesar disso, uma alegria empurra os que querem criar, os  artistas. Não os  profissionais  da  arte,  mas os  que  expressam um devir-arte para  além e  aquém das categorias  do bom senso. Explicar essas  coisas requer um longo aprendizado:  sair  do eu na direção das  multiplicidades,   sair de  si para o   fora     rumo  à   loucura não-médica.  
O  espírito da reforma  psiquiátrica  vive atolado  nas palavras de ordem   do polvo   estatal e    em    sonhos  corporativos ; os psiquiatras  firmam  as  suas   alianças,   seja  com   os    laboratórios  farmacêuticos,    seja   com       seus   pares.
É  por demais  evidente  que  a sorte dos pacientes está ligada   aos agenciamentos de forças –instituições  sociais -  que se  materializam em práticas, desde que se  saiba que  a mente não  é  algo a ser consertado. A mente é o mundo. Tudo a fazer é preparar  o paciente para  enfrentá-lo. Ainda  assim,  alianças políticas  pesam contra,   já que o paciente    não produz, não registra uma identidade  (quem sou?) e não consome. Está fora  do circuito   de produção e ao mesmo tempo no interior da produção, produto  coagulado.   A questão  do fora e  do dentro merece ser considerada. Ela  remete à política   em   psicopatologia. O paciente está  fora dos códigos e  se submete  a eles, tornando-se mais um código, até  mesmo   incluído     nas    patologias  tidas como    menos  graves: as neuroses.
Entretanto,  quando a psiquiatria  trabalha o desejo  desde o  interior  da clínica, podemos  chamá-la de   psiquiatria materialista,  clínica  da diferença   ou  clínica das multiplicidades.  Ela     tece   um território movente de criação;   essa clínica não existe fora ou dentro de algo.   Ela é imanente à produção.   Tudo é uma coisa  e     outra.  Primado  do  “e”.  A saúde mental deixa de ser um aparelho   conceitual  fazedor  ou   encolhedor    de mentes para construir uma superfície prática onde a clínica  é vazada pelo coletivo, o mundo  que  o paciente terá  que enfrentar, pois  o mundo  é  ele  mesmo. Saúde mental é um  conceito a ser estilhaçado: saúde refere-se não apenas ao organismo, mas ao corpo; mental refere-se não apenas ao cérebro, mas ao mundo. Será  possível, então,  dizer   corpo-no-mundo como na fenomenologia? Sim, desde que a extensão do conceito considere a  potência do corpo e o caos do mundo. Potência e caos estão  fundidos na produção de novas  configurações subjetivas.O pensamento da saúde mental  só existe   enquanto ciência, filosofia e arte  encadeadas em devires. O que se  chama de reforma psiquiátrica é  um rearranjo de poder dos modos de codificar a loucura.  Desse modo  não existe o devir, a não ser  na fantasia  e/ou no delírio. Assim, não  se  constitui  como   pensamento, mas  como  saber classificatório  para  o qual a  CID-10 e o DSM-IV são   cartilhas mortas  com respaldo jurídico e científico. A luta pela diferença passa, então,  por  uma  rachadura no conceito de saúde mental. Feito isso, o espaço-tempo  de trabalho com o paciente alarga-se ao ponto de não  mais  pertencer  ao mercado da saúde mental  e sim aos territórios  coletivos  conquistados  no  encontro  com a  loucura. Muda o conceito de transtorno mental ou o de doença mental, como antes  era  chamado. Quem é  doente? O que  é doença?  Não  há certezas.   Esse fato é    condição elementar  para desfazer  a  saúde mental  como organização   da  forma- Estado e  substitui-la  por uma clínica  órfã  e   molecular,   produzindo  seus próprios  códigos. Uma  outra  semiótica   poderá    surgir dos problemas (sempre há)    que  o paciente  traz. O diagnóstico submete-se ao contexto  social  e   não o contrário. Acreditamos que, desse modo, os técnicos se farão aliados  de forças que  eles  mesmos  tornarão úteis  em   terapêuticas singulares.  Ao pé  da letra, diríamos:  servirão  ao  paciente  ou  nada  serão (...)

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

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