sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

RELATOS DO ACASO

Relato  7- O homem dos  tubos – Niterói, 1993.  Eu trabalhava  na enfermaria masculina   do  Hospital  Estadual de Jururuba.   Havia um paciente  novo. Fora  encontrado vagando  pelas   ruas  do Rio e  Niterói,  andando em pequenos círculos em torno  de si.  Dizia  procurar uns  tubos  que  o levariam  ao  outro  lado  da  Terra. A polícia o  recolheu conduzindo-o  ao hospital.  Foi por  mim examinado.  Havia   uma  vivência  delirante   centralizada  em torno  do  “problema  dos  tubos”. Ele não falava  de outra  coisa. O seu  comportamento  na enfermaria  era apragmático, pois  permanecia  no  pátio, parado, agachando-se  e  percutindo  o   assoalho  com os  pés. Dizia   que  de  acordo  com o som emitido , teria  condições  de afirmar  se  estava  por  identificar  o local  exato. Poderia  ser  o Japão... Foi lhe prescrito neuroléptico.  Ao longo de  5  dias,  o paciente  evoluiu com melhora  da  sintomatologia, tornando-se colaborador e  participando  do cotidiano  da enfermaria. Relacionava-se  muito bem com os demais   pacientes, inclusive  ajudando a enfermagem nas  tarefas diárias. Nossa  equipe (com uma psicóloga e uma assistente social) resolveu liberar o paciente  para circular fora  da enfermaria, mas dentro  do hospital.  Sob estas condições, foi  desenvolvido  o trabalho  da  psicóloga. A  família  ainda não fora  localizada. Sabia-se que  era de Belo Horizonte. O paciente prosseguiu  melhorando. Já  não falava   dos  tubos. Novamente  a equipe  o liberou, desta vez  para  andar  nas  cercanias  do  hospital. Ele parecia outra pessoa.  Certa vez, perguntei-lhe sobre  os  tubos.   Respondeu  que  algum dia  iria verificar, mas  agora estava interessado em outras coisas.  Sem dúvida, ele estava  em “remissão”   do sintoma  delirante, ainda que não negasse por  completo a existência  dos  tubos. Permaneceu  internado  por  46 dias, prazo  relativamente  longo em função das  dificuldades  de localização da família. Mas  obteve  alta  em bom estado mental. Alguns  dados  a ressaltar   :  1-o trabalho da  equipe  de toda a  enfermaria  que  acolheu  o paciente  num momento  de  desorganização mental  aguda. 2-a rápida  resposta   do sintoma  delirante  ao  uso  de um  psicofármaco. 3-o curso  que  tomou a  sua  recuperação, na medida em que  estabeleceu vínculos  produtivos  com as pessoas da enfermaria. 4-o “bom desempenho”  de conduta  ao ser  liberado  para  circular fora  da enfermaria  e depois  fora do  hospital. 5- o lugar   à margem que  o delírio passou a ter, não comprometendo  seus  modos de  expressão, ou sendo  apenas  mais  um modo de  expressão. 6-o item anterior  articulando-se  com a função da equipe de considerar o paciente  numa    vivência de  positividade  com o meio, e por  conseguinte  não   atrelá-lo a um sintoma  que  permanecia, ainda  que  brando, presente.

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

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