Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
sábado, 31 de março de 2012
POESIA
A linguagem poética fere de morte o princípio de identidade do discurso inteligível da técnica. É isso mesmo. Uma experiência-limite não precisa de palavras. Isso desconcerta a clínica do cérebro. Esta, busca neuro-lugares e pontos fixos. Cortem aqui. Cortem ali. A representação do Mesmo é batata. Abram alguns cérebros e lá estará o rigor mortis. Enfim, um método infalível. Ele gargalha sobre a última fronteira. Que se passa? Ainda bem: há poesia injetada em agulhas finas. A linguagem desliza: criança, poeta, louco, vidente, artista, a tralha dos sem-eu, todos descem pelo conta-gotas da resposta aos sintomas. Não há como se explicar aos cientistas. O tecido poético cria muito antes da medição dos contornos da hipófise. É matriz e argamassa das construções exatas sobre o funcionamento dos neurônios do baixo clero. Precisamos de mais poesia, mais, até saturar os átomos da cabeça pensante. No entanto, o pesquisador acadêmico enuncia o veredicto das horas perdidas em conversas tolas. A condenação dirige o condenado às labaredas do inferno das psicoses, dos retardos e das demências irreversíveis. Toca o horror da patologia, limpa a mesa cirúrgica com estabilizadores do humor.Assim fica fácil destruir subjetividades em nome da ciência. Sem metáfora.
A. M.
LEMBRAR A ANTI-MEMÓRIA
No caso 1964, lembrar sem ressentimento não é fácil. No entanto, o direito à memória pode significar não a ruminação da dor e do ódio, mas a criação de um devir-coletivo, um sentimento solidário aos que morreram lutando contra uma Realidade abominável ainda vigente nos dias atuais. Seria preciso ser mais claro?
A. M.
CULPA, CULPA, MEA CULPA
Em relação ao cristianismo, os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência, seu "niilismo", não tem a perfeição cristã. Eles consideram a existência culpada, mas não inventaram ainda o refinamento que consiste em julgá-la faltosa e responsável. Quando os gregos falam da existência como criminosa e "hybrica", pensam que os deuses tornaram os homens loucos: a existência é culpada, mas são os deuses que assumem a responsabilidade da falta. Esta é a grande diferença entre a interpretação grega do crime e a interpretação cristã do pecado (...)
G. Deleuze - do livro Nietzsche e a filosofia
CADÁVERES GORDOS
Em todos os locais possíveis e imagináveis, longe de um lugar centralizado, visível e perceptivo, Félix Guattari aponta o perigo de um microfascismo ativo. Disseminadas em todo o campo social, essas forças, que absorvem a vida e a energia como buracos negros, fornecem aos poderes em vigor ocasiões de fabricar nódulos , pontos de endurecimento sobre os quais se fazem a ancoragem e a inspeção sanitária das malhas e esquadrinhamentos mais envolventes. A passagem da antiga sociedade disciplinar, teorizada por Foucault, para a sociedade de controle, diagnosticada por Deleuze, supõe a exacerbação, a proliferação e a expansão dos microfascismos (...)
M. Onfray - do livro A política do rebelde - tratado de resistência e insubmissão
INVENTAR UMA CLÍNICA EM PSICOPATOLOGIA
Em geral, o psiquiatra tem à sua frente o “movimento” e só consegue ver a forma estática e a matéria sólida. Claro, foi treinado para isso. Falamos de outra coisa, a clínica in vivo, o trabalho com a matéria invisível, o meio do qual o paciente faz parte, a ausência de coordenadas espaço-temporais estáveis. O eu é uma delas. Quem você é ? Isso vale para o psiquiatra seguro da (sua) verdade. A incerteza do eu e das crenças básicas precede o Encontro. Não há clichês. O paciente não tem forma. Seu desejo não tem forma. Ele age como produção de universos móveis. Isso é difícil de aceitar. Como encontrar o paciente pela via da multiplicidade? Como acessá-lo de um modo diferente do da psiquiatria biológica e farmacológica? Parece quase impossível ou talvez algo delirante para os que estão presos à grade da CID-10. Encontrar o paciente é encontrar a si mesmo. Esta seria uma fórmula estéril se estivesse atada à visão do eu como interioridade psíquica. Contudo, trata-se de outra coisa. Buscamos sair de nós mediante uma exposição aos signos do mundo. “Você traz novidades que me fazem ser diferente”. É uma base para o tratamento, são potências a serem descobertas no paciente e no psiquiatra. O paciente, apesar de codificado pela psiquiatria, funciona em linhas da diferença que vazam. A forma dada, estática, no fim das contas, é efeito do poder médico. Isso dificulta uma prática em direção a expressões novas. Sendo assim, o exame da mente para encontrar a mente terá que se transformar numa produção/intuição de multiplicidades. Não mais haveria exame mental porque a “mente” não é algo visível. E o que seria examinado (ou encontrado)?
Devires. Eles compõem processos do desejo e articulam crenças. Deste modo, afetos e crenças desarranjam a máquina dos sintomas-fármacos (...)
Antonio Moura
sexta-feira, 30 de março de 2012
O QUE É A VIDA?
Poucos conhecem as maravilhas que se descortinam para si nas história e visões de sua juventude, pois quando somos crianças escutamos e sonhamos e pensamos tão-somente pensamentos incompletos e quando , já adultos, tentamos recordá-los, estamos entorpecidos e vulgarizados pelo veneno da vida (...)
H. P. Lovecraft - do livro À procura de Kadath
NEM SUJEITO NEM OBJETO: O TEMPO
O tempo não é um todo, pela simples razão de ser a instância que impede o todo. O mundo não tem conteúdos significantes pelos quais se poderia sistematizá-lo, nem significações ideais, pelas quais se poderia ordená-lo, hierarquizá-lo. Tampouco o sujeito possui uma cadeia associativa que possa contornar o mundo ou conferir-lhe unidade. Voltar-se para o sujeito não é mais proveitoso do que observar o objeto: o "interpretar" anula tanto um quanto o outro (...)
G. Deleuze- do livro Proust e os signos
Erro 8-Considerar de antemão que o esquizofrênico está fora da realidade.
Causas: crença inabalável da psiquiatria nos códigos sociais vigentes (conservadorismo); adesão política a uma realidade única e verdadeira, a Realidade Dominante, desconsiderando as outras realidades.
A.M.
quinta-feira, 29 de março de 2012
RESISTIR, RESISTIR
Legiões de psiquiatrizados de toda parte ajoelham-se no altar dos psicofármacos e dos cérebros à mão. Tudo conspira a favor do consumo de pacotes cientificamente autorizados para ações lucrativas. No entanto, mesmo desbotada e segregada nos grilhões cidológicos , a diferença resiste. A ética da potência de viver afirma-se como ética de poetas itinerantes (...)
A. M.
quarta-feira, 28 de março de 2012
O CONSUMO DA SERVIDÃO
Uma compreensão da subjetividade a partir do funcionamento cerebral não é um erro. É tão só uma visão incompleta e reducionista da realidade psíquica. Mais: pelo lugar de poder que a psiquiatria ocupa, isso se transforma em dano sobre o paciente. Na área obscura do biopoder, o paciente é fabricado como organismo que consome verdades prontas. Tome esse comprimido: é para o seu bem. A engrenagem semiótica, para funcionar e funcionar bem (asséptica e sem travamentos), conta com a adesão inconsciente de segmentos sociais "bem intencionados" em suas respectivas subjetivações. Um padre, um juiz, um delegado, um burocrata, um pastor, um empresário, um diretor de RH, um médico, um professor, uma mãe, entre outros, são personagens sociais que caucionam o desejo de ordem e de harmonia. Alguém que ouse quebrar esse circuito, arrisca-se a mergulhar nas trevas do Indiferenciado: a insânia.
A. M.
FALA, PESSOA...
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
que o luar através dos altos ramos.
F. Pessoa
ENLOUQUECER PARA NÃO ADOECER
A tão falada (confira no texto da Reforma Psiquiátrica) "superação' do modelo hospitalocêntrico (caso dos Caps como alternativa - há mais de 1600 no Brasil) passa, no mínimo, por dois níveis de ação: 1-gestão das políticas públicas enfocando o paciente (usuário) antes da doença (ou transtorno); melhor dizendo, a ética vindo antes da política; 2- Uma efetiva transdisciplinaridade da clínica no âmbito das ações da equipe técnica; ou seja, fim das hierarquias grupais. Sabemos que os dois níveis não foram atingidos, talvez nem sequer pensados por quem deveria. Os Caps não passam de ambulatórios e/ou hospícios disfarçados, não tão bem disfarçados... As exceções são pouquíssimas.
A. M.
DEVIR-OUTRO
Meu ideal, quando escrevo sobre um autor, seria não escrever nada que pudesse afetá-lo de tristeza, ou, se ele estiver morto, que o faça chorar em sua tumba: pensar no autor sobre o qual escrevemos. Pensar nele de modo tão forte que ele não possa ser mais um objeto, e tampouco possamos nos identificar com ele. Evitar a dupla ignomínia do erudito e do familiar. Levar a um autor um pouco de alegria, da força, da vida amorosa e política que ele soube dar, inventar. Tantos escritores mortos devem ter chorado pelo que se escreveu sobre eles (...)
G. Deleuze - do livro Diálogos
terça-feira, 27 de março de 2012
A CLÍNICA COMO ELA É
Desse modo, antes da técnica é preciso compor linhas de vida. Implica em dizer que o trabalho com o paciente segue a arte como experimentação. Experimente, não interprete, diz Deleuze. Os dados da história pessoal e das contingências atuais estão baralhados na superfície do Encontro. O trabalho, no caso do psiquiatra, será o de destruir formas sociais rígidas (por exemplo, o afã de medicar, o diagnóstico cidológico, o corporativismo médico, etc) e criar dobras, saídas, mesmo ínfimas e imperceptíveis, para os impasses existenciais (...)
A. M.
segunda-feira, 26 de março de 2012
domingo, 25 de março de 2012
QUEM SOFRE?
Apesar das intenções humanitárias da psiquiatria, a dimensão do socius na formação capitalista infiltra-se na realidade subjetiva, marcando-a como produto. O paciente é esse produto e, portanto, não “sente”. Apenas é consumido. É um dado inscrito no circuito delirante do capital. Produção, registro e consumo. A produção ampliada de modelos patológicos desenha e busca identificar novos transtornos mentais.Apesar do “produto não sentir” , algum sentimento psíquico “deve” acompanhar a doença respectiva e registrá-la como demanda, mesmo que seja a da família.Estamos no consumo. Impõe-se uma necessidade de sofrimento por se estar doente. O diagnóstico de psicose nivela as afetividades pelo incômodo causado ao Outro. Os transtornos mentais são transtornos, o nome o indica. A psiquiatria dispõe um sistema classificatório dos comportamentos em torno do sentimento de ser doente. É um detalhe semiótico atado ao quadro psicopatológico de base. Passa pela consciência. A avaliação é, antes de tudo, a da consciência alienada. Sinta-se doente, você está fora dos normais, está fora da produção, fora da vida.Para ser um sujeito você tem que admitir que está doente. O sentimento de ser ou estar doente, de ser portador de um transtorno mental é antes produzido pela psiquiatria e suas agências de apoio: família, escola, polícia, direito, estado e a indústria farmacêutica. Então, temos o esquema: afetos coletivos (desejo) =instituições= produção, registro e consumo de sentimento = organismo visível = subjetividade individuada =consciência de si=sofrimento (...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
O DESEJO É OBJETIVO
Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam em ser objetivos, nada mais que objetivos: sabem que o desejo estreita a vida com uma potência produtora, e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos ele tem necessidade. E tanto pior para aqueles que acreditam que é fácil falar, ou que é uma idéia que está nos livros. "Das poucas leituras que eu havia feito, tinha tirado a conclusão que os homens que mais se embebiam de vida, que a modelavam, que eram a própria vida, comiam pouco, dormiam pouco, só possuíam uns poucos bens, se é que tinham algum. Não tinham ilusão em matéria de dever, de procriação, aos fins limitados de perpetuar a família ou defender o Estado (...) (...) O mundo dos fantasmas é aquele que ainda não acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Ir adiante agarrando-se ao passado é arrastar consigo a bola de ferro do passado" (Henry Miller, Sexus)
(...)
G. Deleuze e F. Guattari - do livro O anti-édipo
BIOGRAFIA DO ORVALHO
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc, etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o mundo usando borboletas.
M. de Barros
COMO FAZER?
A loucura extrapola os limites do pensar médico. Quais as conseqüências desse fato? Ora, se o nosso tema é o exame do chamado portador de transtorno mental, nele se misturam linhas “normais” e “anormais” da subjetividade. O exame passa a ser um não-exame, um Encontro. Há, pois, que percorrer o “como se dá” do Encontro, ou seja, expressar o que foge ao enquadre da psiquiatria científica. Ainda assim, não formulamos uma crítica ao exame mental clássico. Este é apenas o que é possível ser. Mas ele “pertence” ao Encontro e não o contrário. Está autolimitado pela visão médica da subjetividade. Bem mais, importa afirmar um método e um estilo de operar a clínica. O que fazer da loucura ou da angústia?
A. M.
sábado, 24 de março de 2012
NÃO HÁ FALTA
Tinha saído de uma longa bebedeira, durante a qual perdi um emprego mixa, o meu quarto e (talvez) a cabeça. Depois de passar a noite dormindo num beco, vomitei no sol, esperei cinco minutos e aí então acabei com o resto da garrafa de vinho que achei no bolso do paletó. Comecei a andar pela cidade, assim, ao léu. Enquanto caminhava, me veio a sensação de que estava percebendo, em parte, o sentido das coisas. Claro que não estava. Mas ficar lá parado, no beco, não resolvia nada.
Andei bastante, com pouca lucidez. Considerei vagamente, a fascinante possibilidade de morrer de fome. Só queria encontrar um lugar pra deitar e ficar esperando. Não sentia nenhum rancor contra a sociedade porque não fazia parte dela. Há muito tempo que já tinha me conformado com esse fato.
(...)
C. Bukowski - do livro Fabulário geral do delírio cotidiano
O CÍRCULO DA DEPENDÊNCIA ABJETA
Existe o corporativismo psiquiátrico. À parte as habituais alianças liberais com a Medicina e a tradicional e estratégica oposição ao Estado burguês, o corporativismo psiquiátrico se alimenta de um discurso de verdade sobre a loucura e seus assemelhados. No campo da Saúde Mental, põe à serviço o profissional a quem o portador de transtorno mental deve recorrer.Ou seja: se está louco procure um psiquiatra. Tal assertiva baseia-se na naturalização dos códigos sociais em torno da figura do psiquiatra e do valor da psiquiatria enquanto instrumento de controle das condutas ditas irracionais. Simples assim. Mas, funciona... quem duvida?
Antonio Moura
VIAGENS DE MIGUEL
Miguel já fez 1 ano e 15 dias. Acompanho as suas aventuras. Passo a passo, vou tentando livrá-lo de apuros, quando, por exemplo, aperta o dedo na porta do armário ou não consegue abrir uma gaveta, apesar de desejar muito, o que expressa com gritos intensos e sons desarticulados. Aqui a ali, suas alegrias e insatisfações caminham juntas e fusionadas, às vezes sendo difícil separá-las. Miguel sorri e gargalha, e logo em seguida chora choros variados, a depender do desejo impedido, cortado. Não importa: o desejo faz a curva e retoma um percurso que produz uma nova linha, por exemplo, apertar o botão play do computador. No meio de tudo isso, o que vem me encantando são os movimentos que Miguel ensaia ao ouvir uma música. Parece até que ele já conhecia João Bosco e Carlos Santana : uma familiaridade rítmica inunda o seu corpo, tal como uma corrente elétrica ou ondas de um mar revolto. Miguel é um ser metafísico, como toda criança é. Me desdobro e me dispo de racionalizações adultas para acompanhá-lo sem julgamentos e clichês estéreis de um humanismo esgotado.
Antonio Moura
O NÃO-PATOLÓGICO
A pesquisa dos chamados transtornos mentais implica em se considerar o não-patológico. Do contrário, cai-se numa psiquiatrização tosca e produtora de doentes em série. O campo das depressões ilustra bem esse dado. Pichon Rivière já falava das depressões como uma linha existencial que percorre a condição humana desde o nascimento.Há sempre perdas, rompimentos, cortes, fissuras ocultas, enfim, a irreversibilidade da vida atuando em Formas aparentemente eternas. Na base da psicopatologia, o Trágico silencioso...
A. M.
SERÁ POSSÍVEL UMA NOVA CIÊNCIA?
A ciência clássica visa sempre descobrir a verdade única do mundo, a única linguagem que decifra a totalidade da natureza - hoje, diríamos, o nível fundamental de descrição - a partir da qual tudo o que existe pode, em princípio, ser deduzido. A ciência clássica postula sempre a monótona estupidez do mundo que ela interroga (...) (...) O século XIX acreditou descobrir que a verdade é triste; o progresso da ciência acaba por ser sempre o mesmo, quaisquer que sejam as convicções pessoais do cientista; o que a ciência clássica toca, seca e morre. Morre para a diversidade qualitativa, para a singularidade, para tornar-se a simples consequência de uma lei geral (...)
I.Prigogine e I Stengers - do livro A nova aliança - metamorfose da ciência
DEVIR-ALUNO
1-A máquina binária - Antes da pessoa do professor e do aluno existe a máquina binária do ensino obrigatório que estabelece as condições organizacionais para aprender e ensinar. Diz-se o que é aprender e o que é ensinar, e esse enunciado implícito é aceito como um fato natural. A boa vontade de um professor em ser um bom mestre (=passar os conteúdos), bem como a disposição do aluno em aprender(=acumular os conteúdos), não significa que o pensamento esteja presente. Não significa também que haja criação ou produção de conhecimento, mesmo que o ensino esteja acoplado a alguma pesquisa. Há outras variáveis em jogo. Tais variáveis vêm da instituição educacional e superpõem-se sobre o ensino, sobre o ato de ensinar, como se ensinar e educar fossem a mesma coisa. Educar remete à Educação, à forma-Educação, poderosa instituição milenar que se reproduz em práticas escolares; este é o seu ponto de aplicação talvez mais efetivo, a superfície de inscrição do desejo de saber, aí onde a materialidade da aula encontra uma expressão acabada e direta. Ou seja: o professor é quem ensina porque sabe; o aluno é quem aprende porque não sabe.
É a máquina binária professor-aluno funcionando em toda a parte onde existe escola. Não se trata, pois, de considerar as pessoas, boas intenções etc, ao jeito humanista de ver as coisas. A máquina produz as pessoas, ou melhor, as pessoas são peças que se ligam umas às outras para a produção de subjetividades em série, prontas para o Mercado. Isto não significa que, em termos da experiência do professor e da experiência do aluno, haja uma passividade em relação ao que acontece em torno. Pelo contrário, a pessoa, tendo um universo de representações e imagens ao seu dispor, mormente quando estimulada pela atividade intelectual, acredita estar agindo, quando é agida. Acredita estar controlando, quando é controlada. Acredita estar mandando quando é mandada. Tudo ocorre num campo invisível, onde só as forças tem acesso e funcionam em regimes subjetivos ou de subjetivações. A pessoa é o indivíduo e este é o sujeito, num encadeamento natural para que o ato de ensinar/aprender se faça sem problemas. Esta máquina está ligada a outras máquinas, isto é, a instituições: são formas sociais, cristalizações de processos, outrora, talvez, de criação. A escola, a educação, o eu, a avaliação, a aula, a divisão público/privado, entre outras, são formas sociais que, como trilhos dispostos sobre o caos, orientam o rumo do ensino e do aprendizado para um objetivo maior, transcendente, e por isso, intocável: o acúmulo de conhecimento.
Um desejo de ensinar e um desejo de aprender se conjugam para estabelecer a superfície do Encontro professor-aluno. Como dissemos , a superfície é uma máquina, na medida em que antes das pessoas, estão as instituições. Elas se imiscuem numa produção incessante de consumo. Consumir o ser. Ser alguma coisa para o mercado. Esta é a regra que vem de fora mas que está dentro da máquina. É o seu próprio combustível. Pelo menos, em tempos de hoje, o Mercado é a lei das visibilidades expostas na vitrine das técnicas: quem serei amanhã? como sobreviverei? A visão do mestre como sacerdote, e da educação como o lugar da salvação, foi devorada pelo Mercado onipresente. Daí, falar da máquina binária requer falar da máquina ternária, onde se insinuam relações de troca e mais profundamente relações de poder. Um lugar espera o professor com o script marcado, tanto mais, ou quanto mais ele inove ou queira inovar métodos e técnicas em sala de aula. A sala de aula é o rosto do mercado travestido em rigor pedagógico; este disfarça o rigor mortis do desejo. Nestas condições, ser professor é seguir a pedagogia da falta, para a qual falta conhecimento ao aluno, falta responsabilidade ao aluno, falta compromisso ao aluno, sendo necessário preeenchê-lo, enchê-lo. De idéias, conceitos, opiniões. E o pensamento?
(...)
A. M.
sexta-feira, 23 de março de 2012
DAS SINGULARIDADES
Alguma coisa que não é nem individual nem pessoal e no entanto, que é singular, não abismo indiferenciado, mas saltando de uma singularidade para a outra, sempre emitindo um lance de dado que faz parte de um mesmo lançar sempre fragmentado e reformado em cada lance. Este novo discurso não é mais o da forma, mas nem muito menos o do informe: ele é antes o informal puro. "Sereis um monstro e um caos"... (...) (...) É esta singularidade livre, anônima e nômade que percorre tanto os homens, as plantas e os animais independentemente das matérias de sua individuação e das formas de sua personalidade (...)
G. Deleuze - do livro Lógica do sentido
CARTER E A DESCIDA AOS INFERNOS
Terrível é a lembrança daquela tenebrosa descida em que as horas passavam enquanto Carter girava e girava descendo, às cegas, por aquela interminável, íngreme e escorregadia espiral. Os degraus eram tão gastos e estreitos, e tão engordurados pelo gotejar dos subterrâneos da terra, que o viajante jamais saberia exatamente quando esperar uma queda vertiginosa e um choque no fundo do poço e igualmente não saberia quando e como os esquálidos guardiães cairiam repentinamente sobre ele, se houvesse algum deles de vigia nesta primitiva passagem. Ao seu redor, persistia apenas o odor sufocante de abismos profundos e ele sentiu que o ar dessas asfixiantes profundezas não era próprio para a humanidade (...)
H.P. Lovecraft - do livro À procura de Kadath
quinta-feira, 22 de março de 2012
O PAVOR AO DESEJO
Contra a psicanálise dissemos somente duas coisas: ela destrói todas as produções de desejo, esmaga todas as formações de enunciados. Com isso ela quebra o agenciamento sobre suas duas faces, o agenciamento maquínico de desejo, o agenciamento coletivo de enunciação. O fato é a que a psicanálise fala muito do inconsciente, ela até mesmo o descobriu. Mas é, praticamente, sempre para reduzi-lo, destruí-lo, conjurá-lo. O inconsciente é concebido como um negativo, é o inimigo (...)
G. Deleuze do livro Diálogos
O que é uma equipe técnica em saúde mental?
Se retirarmos a essência do grupo enquanto conceito e frente ao que a psicose nos traz de não-essência, dizemos que toda equipe é uma montagem, um artifício, um dispositivo-de-ação trabalhando e trabalhando-se num processo de produção da superfície da Clínica (...)
Antonio Moura - do texto A equipe técnica numa enfermaria psiquiátrica
UM DIAGNÓSTICO FURADO
O diagnóstico de esquizofrenia serve pouco ao paciente. Em muitos casos o prejudica. Preferimos usar o diagnóstico de uma PSICOSE GRAVE. Este diagnóstico implica em considerar: 1-o sofrimento do paciente; 2- capacidade de autonomia social; 3- capacidade de desempenho de papéis sociais; 4-capacidade laborativa; 5- funções cognitivas; 6- formas de comunicação com as pessoas (relações interpessoais); 7-nível de auto-observação e auto-crítica; 8- formas de inserção do delírio na produção social-subjetiva; 9-vivência (crenças e afetos) dos sintomas ditos psicóticos: delírios e alucinações; 10-adesão ao tratamento proposto. Haveriam outros ítens a serem pesquisados. O essencial, contudo, é buscar linhas de singularização existencial que atravessam e precedem os sintomas.
A. M.
O GRUPO COMO AÇÃO SINGULAR
Deleuze disse certa vez que o poder, ao tomar como objetivo a própria vida - questão contemporânea da subjetividade - se a controla, igualmente suscita uma vida que resiste ao poder, subvertendo os diagramas até então inquestionados e reconhecidos. Novos dispositivos então se inventam: eles agem contra o tempo e sobre o tempo, em favor - espera ele, espero eu - de um tempo por vir, o dos dispositivos... em ação... pelo múltiplo, o singular , a festa... a vida como obra de arte.
Regina de Barros - do texto Dispositivos em ação: o grupo
quarta-feira, 21 de março de 2012
CIDOLOGIA FANTÁSTICA
Não existe apenas o psiquiatra cidológico. Este pouco valeria se não houvessem outros técnicos também cidológicos, dando-lhe apoio institucional e conferindo prestígio social e científico às suas ações. Podemos, pois, dizer que há um Movimento Cidológico, uma cidologia militante constituindo o campo da Saúde Mental. Conexões jurídicas, policiais, familiares, escolares, entre outras, fazem deste Movimento um contra-movimento à produção da diferença. Um dos resultados mais evidentes é a existência vegetativa e iatrogênica de ambulatórios de psiquiatria disfarçados de Caps . Contudo, há muito mais...
Antonio Moura
RECEITA EM SÉRIE
Em psiquiatria clínica, é possível usar poucas associações medicamentosas? Elas embotam o paciente e o psiquiatra. Nestes casos um diagnóstico revelador do que se passa, costuma ser descartado. Se, além do mais, for difícil captar a vivência mórbida, ficar na espreita do acontecimento já é um ganho ético. Escutar o vento nas orelhas do paciente. Ou apenas contemplar o que ele diz e o que se vê. Isso basta para começar o trabalho de garimpagem dos signos. Percutir as linhas do desejo talvez faça surgir algo que não anseie por fármacos (...)
Antonio Moura
ANTI-PARANÓIDE
Para haver encontros que criem e não reproduzam universos estáveis, é preciso intercessores. Eles podem ser qualquer coisa e são o que nos força a pensar . No caso da clínica, como vimos, o que força a pensar é o delírio não medicalizado que tem na esquizofrenia a sua expressão acabada. Para um bom encontro com o paciente, a loucura-em-nós é um exercício de sensibilidade.: uma ética. Busca aumentar a potência de viver. Por outro lado ela não existe fora das linhas de força que compreendem relações de poder. Tais relações compõem a trama das instituições que conduzem e/ou esmagam a produção desejante.Toda ética é uma política, ou mais precisamente, uma micropolítica imanente à clínica. Isso não costuma se mostrar ao olhar psiquiatrizado ou psicologizado . O olho psi é um olho homogeneizado e homogeneizador. Ele “persegue” o semelhante e o humano em toda a parte. É um olho paranóide (...)
A. M.
SEM TRÉGUA
A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor das suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém.
M. Foucault - do livro Em defesa da sociedade
FAZER FAZENDO
A clínica da diferença busca atuar em linhas existenciais desprezadas pela razão. Lida com o incurável, o imprestável, e com discursos submetidos às formações de poder. Requer um desejo não apoiado na realidade objetiva pois o desejo é a própria realidade objetiva.No universo sedutor-violento do capital, a aposta num trabalho com pacientes graves capta o ritmo das canções sem dono. Tudo é impessoal e coletivo. O trabalho num Caps torna-se, então, a procura de saídas não cadastradas pela psiquiatria canônica. A ótica da diferença é o novo. A ética precede a técnica (...)
A. M.
terça-feira, 20 de março de 2012
ESTAMOS SEMPRE NO MEIO DAS COISAS
O tema "As depressões" começa com o nexo estreito corpo-tempo e suas expressões clínicas. A semiologia do "estar deprimido" (a vivência) traça linhas do desejo que estacam 1- no corpo-organismo; 2- no corpo-cronos, presídios camuflados do viver. Escrever sobre isso: uma gestação dolorida, intensa e sem cais.
A. M.
UMA ÉTICA DA IMANÊNCIA
O problema ético é inteiramente relevante se for posto no lugar próprio. Libertação não é soltar a alma do corpo; é recuperação da cisão tática entre a alma e o corpo, que parece necessária à disciplina social do jovens. A libertação põe a razão e a cultura não contra Eros, mas à disposição de Eros, do corpo "perverso polimorfo" que sempre retém a potencialidade de um relacionamento completamente erótico com o mundo - não apenas por intermédio do sistema genital, mas por intermédio de toda a capacidade sensória. A libertação restaura o "narcisismo primário" não só do organismo por si, mas do campo organismo/ambiente. Cabe portanto perguntar como esse "narcisismo" poderia expressar-se éticamente; ou, em outras palavras, qual seria a ética de Eros e da espontaneidade distinta da ética da sobrevivência (...)
Alan Watts - do livro Psicoterapia oriental e ocidental
À ESPREITA
Escutar o paciente é a primeiríssima lição de uma propedêutica médica. Daí, a crítica à não-escuta (em 5 minutos você recebe um tiro...) ainda está no quadro conceitual da própria medicina, e por extensão, da psiquiatria. Contudo, nem começamos a falar. Dela. Só balbucios, gritos loucos e percepções vagas.
A. M.
Exame
Ao contrário do que se pensa, o paciente sabe de si e do mundo, mesmo estando psicótico, principalmente por estar psicótico. Ele desvia o rosto dos enquadres médicos. Um caminho em linha faz sentido duplo. A hierarquização cede espaço. O paciente não é o do psiquiatra e sim do mundo. Sem médico ou: não se sente paciente. Está fora. Não entra em compilações clínicas, não é atendido, não precisa, não está para isso. Um vazio toma conta da sala. Risos imotivados tem um motivo e uma interpretação. A psiquiatria a tira por entre ampolas da sala. Quem fala? Ouve-se um ruído de imagens heréticas. Elas chegam ao cérebro. Vêm de longe, logo ali. São feitas da matéria. Esta é invisível. O paciente é uma imagem, tudo é imagem. Daí, a sua presença marcar um grito que extrapola os limites da clínica. Uma queixa, um comportamento, um sintoma-signo. Quem fala coisas fora dos trilhos? Qualquer um pode, desde que a existência brilhe. A irreversibilidade do fato biológico ou de qualquer fato comprova o silêncio que banha a hora do desencontro. Sem que se perceba, é preciso inverter a ordem. Nada mais faz sentido senão a produção do sentido, mesmo o sem-sentido. O paciente está desnorteado ante os fluxos de verdade da saúde mental. No entanto, seu corpo é um projétil que se desloca à velocidade do pensamento: não se dobra, mas se desdobra em imagens atuais. Você não sabe do que falo, mas sabe do que sinto em relação a essas experiências sem dono.
A. M.
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