domingo, 31 de julho de 2011

Psicodrama no Serviço Público - 4

Simplificando muito  a questão(complexa) das mulheres,   sabemos  que  uma  subjetividade-mulher,    foi, desde tempos imemoriais,     produzida   nas sociedades do planeta. A instituição-machismo  constituiu em grande parte   estes  modos de sentir "femininos" e funciona para conservá-los.  Freud já falava do desejo da mulher como "opaco" à investigação psicanalítica. Hoje, trabalhando num grupo sócio-psicodramático com 7 mulheres, usuárias   de um Caps II - Serviço Público,  anoto algumas questões para posterior ( e melhor) análise: 1-As pacientes sofrem principalmente  de problemas ligados ao papel de mulher, o "ser-mulher". 2-Este papel conjuga-se ao de mãe, formando  uma  espécie de "couraça" afetiva que vai se expressar  no corpo tornado organismo.   .3-Ressalte-se o dado de  que todas as pacientes do grupo  usam alguma medicação psiquiátrica, geralmente anti-depressivos e/ou ansiolíticos. 4-Então,  o corpo-organismo acaba sendo  o corpo    bioquimizado pela psiquiatria. 5- Num grupo com  tal abordagem metodológica (socio-psicodramática), os vetores etiológicos coletivos vêm á tona. São o  material bruto para o trabalho técnico. 6-Observamos também que o que se chama de psíquico está semi-oculto  em linhas subjetivas endurecidas - linhas molares, cf Deleuze-Guattari. 7- Cabe e caberá ao manejo do processo grupal, produzir  condições  às pacientes para que  deixem  emergir  outras percepções  de si e do mundo . 8-A nível da produção desejante, devires poderão  medrar, desde que não afundem numa desorganização psíquica brutal. 9- Disso resulta que a  possibilidade de retirada das medicações dever ser considerada num contexto de cronificação, dependência psíquica   e iatrogenia psiquiátrica. 10- Por fim, um grupo com apenas  5 sessões (até o momento) aponta caminhos técnicos fecundos  a serem explorados num campo de experimentação clínica. Não há uma fórmula pronta.

Antonio Moura

GRANDE NELSON

TODA A LINGUAGEM É DISCURSO INDIRETO

Escrever é talvez trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos, de onde extraio algo que denomino EU {Moi}. EU { Je} é uma palavra de ordem. Um esquizofrênico declara: "ouvi vozes dizendo: ele tem consciência da vida". Existe então, nesse sentido, um cogito esquizofrênico, mas que faz da consciência de si a transformação incorpórea de uma palavra de ordem ou o resultado de um discurso  indireto.

Deleuze-Guattari - Mil platôs

GLOSSÁRIO - Letra C -

CIDÓLATRA - s.m./f. - 1- adorador da CID-10; 2-diz-se  das pessoas, em geral  psiquiatras e técnicos da chamada área psi, que usam a Classificação Internacional das Doenças , versão 10, cap. F, para  cadastrar e   estigmatizar  pacientes e não-pacientes e até a si mesmos  como portadores de algum transtorno mental; 3- psiquiatra   fortemente convertido à fé    cidológica  considerando-a resposta oficial e formal   aos enigmas da loucura; 4- pesquisador da área psi em busca de respostas objetivas e científicas sobre o comportamento dito patológico; 5-psiquiatra com  elaboração conceitual tosca e simplória  em relação aos problemas da  nosologia psiquiátrica; 6-psiquiatra portador de transtorno mental do tipo delirante ou obsessivo  encobrindo  sua fragilidade no manejo da clínica.

sábado, 30 de julho de 2011

O Remédio

O remédio compõe a paisagem  dos consultórios. Ele expressa  o olhar direto do psiquiatra. Antes  mesmo de ver o outro, o olho do significante  absoluto  empreende  o ato de medicar antes de  viver e decifrar   um fascies. A aparência não aparece.  O remédio é uma arma tornada amena e humana em  mãos prescritivas e rápidas. Nada  contra a  sua  eficácia comprovada  em experimentos insuspeitos. Trata-se de outra  coisa: o desejo. O fármaco  lamina  formas de  vida. Ao que  tudo  indica,  ele  chega  pronto para a ação bioquímica e definitiva.  O outro, o traste humanizado em nome do paciente, o próprio. Remediar a condição  humana, quem não tentou?  Somos  prudentes  no ato de medicar. A hora  da alienação consentida domina   as mentes, inclusive as do último ouvinte  da loucura.   Afastamo-nos  da demanda   criada   pelo fármaco salvador. Isso  livra a concepção racional  da  diferença  e a substitui  pela alegria: universo de potências  múltiplas. Ora, o fármaco tripudia das mentes inferiorizadas  pelo  sistema dos  valores  de troca. Um coração fenece, sempre que a dobra do tempo incide sobre o ser  imóvel.  Ao  contrário,  use a posologia dos afetos.  Palavras técnicas dão lugar a  vôos   baixos.  Vamos  no rumo da mais  louca  abstração. Espécies esquecidas. Lovecraft.

Antonio Moura

Lady Gaga

O EXÍLIO

A obra extrai  luz do obscuro, ela é relação com o que não sofre relações, encontra o ser antes que o encontro seja possível e onde a verdade falta. Risco essencial. Tocamos aí o abismo. Aí nos ligamos, por um laço que nunca poderá ser excessivamente forte, ao não-verdadeiro, e procuramos ligar ao que não é verdadeiro uma forma essencial de autenticidade. É o que sugere Nietsche quando diz: "Temos a arte para não soçobrar  (tocar o fundo) pela verdade". Ele não entende, como se o interpreta superficialmente, que a arte seja a ilusão que nos protegeria da verdade mortal. Ele diz mais precisamente: temos a arte a fim de que o que nos faz tocar o fundo não pertença ao domínio da verdade. O fundo, o soçobramento, pertencem à arte (...).

Maurice Blanchot - do livro O espaço literário

RESPONDE...

qual política
não se afina
com a morte

qual política
não se casa
com o poder

qual?


Antonio Moura

Ritornelo

Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pára, ao sabor de sua canção. perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu.

Deleuze-Guattari - Mil platôs

Pink Floyd - The wall

A Economia não é o Comércio

Desse sistema emerge, entretanto, uma pergunta essencial, jamais formulada: "É preciso 'merecer' viver para ter esse direito?" Uma ínfima minoria, já excepcionalmente munida de poderes, de propriedades e de privilégios considerados implícitos, detém de ofício esse direito. Quanto ao resto da humanidade, para "merecer" viver, deve mostrar-se "útil" á sociedade, pelo menos àquela parte que a administra e a domina: a economia, mais do que nunca confundida com o comércio, ou seja, a economia de mercado. "Útil", aqui, significa quase sempre "rentável", isto é, lucrativo ao lucro. Numa palavra, "empregável" ("explorável" seria de mau gosto!).

Viviane Forrester - do livro  O horror econômico

Sobre o conceito de Encontro - 4

Se o Encontro é um devir, ele é  processo   impessoal. Não se atém aos limites estreitos da chamada  pessoa humana   nem os  do organismo físico-químico. Busca  criar  condições para  a  expressão de linhas de vida, até então encobertas por codificações institucionais, entre elas, as da psiquiatria.  A sua base teórica está fincada na ética   como aumento da potência de  existir  somado à  alegria como "força maior". O território clínico deverá brotar dessas condições, ou não será mais que uma clausura abençoada pela ciência. 

Antonio Moura

Sem imunidade

As compleições do real psicótico, em sua emergência clínica, constituem uma via exploratória privilegiada de outros modos de produção ontológicos pelo fato de revelarem aspectos de excesso, experiências-limite desses modos. A psicose habita assim não apenas a neurose e  a perversão mas também todas as formas de normalidade. 

F. Guattari - Caosmose

O Abecedário de G. Deleuze - ALEGRIA


ISSO FUNCIONA

Os seres só morrem para voltarem a nascer, como os falos que saem dos corpos para entrarem outra vez dentro deles.
As plantas crescem em direção ao sol, e sucumbem depois em direção à terra.
As árvores espetam o solo terrestre com uma quantidade enorme de membros florescidos que se empertigam em direção ao sol.
As árvores que tão fortemente se levantam, acabam por queimar-se com o raio, ou ser abatidas, ou ficarem de raiz ao sol. Regressadas ao chão, voltam a erguer-se como antes e com outra forma.
Coito polimorfo que no entanto está ligado à uniforme rotação da terra.

G. Bataille - do livro O ânus solar

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sobre o conceito de Encontro - 3

O Encontro é um devir.  Significa dizer  que o encontro é marcado e marcador do Tempo. Não  um tempo cronológico, tempo-do-relógio-frio  mas  tempo de   intensidades pulsantes. Numa  clínica da diferença,   há que  se  produzir  no paciente  linhas desejantes.  Elas estão    fora das   coordenadas de valor  fincadas  como verdades. Mais ainda, interessa a essa  clínica  traçar novas  maneiras de existir,  principalmente por e para  escapar aos códigos sociais opressores. Desse modo, o  encontro  é o Novo.   Sabemos que é   duro  experimentá-lo.

Antonio Moura

SEM IDENTIDADE

Eis aí, estou sozinho aqui, ninguém gira à minha volta, ninguém vem em minha direção, à minha frente ninguém jamais encontrou ninguém.Essas pessoas não existiram nunca. Não foram  nunca senão eu e esse vazio opaco. E os ruidos? Também não, tudo é silencioso. E as luzes, com as quais eu tanto contava, será preciso apagá-las? Sim, é preciso, não há luzes aqui. O cinza também não, é preto que seria necessário dizer. São apenas eu, de quem nada sei, senão que nunca falei disso, e esse negrume, de que também nada sei, senão que é negro, e vazio. Eis portanto aquilo de que, devendo falar, falarei, até que não tenha mais nada a falar. Dê o que dê. E Basile e consortes? Inexistentes, inventados para explicar não sei mais o quê. Ah sim. Mentira tudo isso. Deus e os homens, o dia e a natureza, os entusiasmos do coração e o meio de compreender, covardemente os inventei, sem ajuda de ninguém, pois não há ninguém, para retardar a hora de falar de mim. Não tratarei mais disso.

Samuel  Beckett -  do livro  O inominável

É PRIMAVERA

O TRABALHO LITERAL DA LINGUAGEM

A linguagem comum certamente tem razão, a tranquilidade tem esse preço. Mas a linguagem literária é feita de inquietude, é feita também de contradições. Sua posição é pouco estável e pouco sólida. De um lado, numa coisa, só se interessa por seu sentido, por sua ausência, e essa ausência ela desejaria alcançar por seu sentido, por sua ausência, e essa ausência ela desejaria alcançar absolutamente nela mesma e por ela mesma, querendo alcançar em seu conjunto o movimento indefinido da compreensão. Além disso, observa que a palavra gato não é apenas a não-existência do gato, mas a não existência que se tornou palavra, isto é, uma realidade perfeitamente determinada e objetiva.

Maurice Blanchot - A parte do fogo

Sobre o conceito de Encontro-2

O encontro com a loucura é,  antes, o encontro com  a nossa loucura. Esta é condição essencial  para  uma prática clínica rompida com o padrão biomédico.

Antonio Moura

Ficções do interlúdio

Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo,
A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber,
É meu viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.

Fernando Pessoa

Bye Bye Brasil - Chico

Sobre o conceito de Encontro - 1

Para encontrar um louco é preciso encarar  os fluxos da loucura. Chamamos  loucura de caos, ou seja,   Formas estáveis  dissolvidas por  velocidades infinitas do Pensamento. Contudo,  se isso   é previamente  codificado  como doença    e, mais,   uma  doença perigosa para quem dela se aproxima,o Encontro não acontece. No seu lugar se impõe  um  julgamento moral  e  um  controle, ambos  encobertos pelo  nome  de exame mental.


Antonio Moura

O COLETIVO

O passeio do esquizofrênico: é um modelo melhor do que o neurótico no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o exterior.

Deleuze-Guattari - O anti-édipo

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O HORROR ECONÔMICO

Um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam a ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.

Viviane Forrester - do livro O horror econômico

Nota: grifos nossos.

A FALA DA PAIXÃO

O novo paradigma estético

Falaremos aqui, de preferência, de um paradigma proto-estético, querendo com isso assinalar que não estamos nos referindo à arte institucionalizada, às suas obras manifestadas no campo social, mas a uma dimensão de criação em estado nascente, perpetuamente acima de si mesma, potência de emergência subsumindo permanentemente a contingência e as vicissitudes de passagem a ser dos universos materiais.

Félix Guattari - do livro Caosmose -um novo paradigma estético

Mil Platôs

O rato e homem não são absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois num só e  mesmo sentido, numa língua que não é mais as  das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos

Deleuze-Guattari

Comentário: que implicações esse enunciado tem sobre uma clínica da diferença (ou das multiplicidades)?

O método da diferença

O método da diferença em psicopatologia prioriza o Encontro, a Vivência e os Modos de Subjetivação na relação com o paciente. O encontro precede o exame, a vivência precede o sintoma e os modos de subjetivação (ou subjetividades) precedem o eu e a consciência. Adiante, discutiremos com mais detalhes cada um destes elementos... Por ora, queremos deixar claro que a loucura  é o objeto da nossa prática e o louco um intercessor que nos conduz a pensar diferente.

Antonio Moura

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Vídeo produzido como critério de avaliação da disciplina "Prevenção e Tratamento em Saúde Mental" do Curso de Psicologia da Faculdade Juvêncio Terra sob a orientação da profa. Isabella.

Multiplicidades na clínica

Este é um conceito roubado do  Deleuze. Ao encontrar  um paciente, poderemos vê-lo como multiplicidade. O que isso significa? Significa que o seu corpo não é redutível ao corpo visível produzido pela medicina. Tampouco sua mente é apenas o cérebro. Trata-se de outra realidade, ou, para sermos precisos, de outras realidades compostas por multiplicidades. Não nos referimos à chamada "parte sadia" de um organismo doente, como a psiquiatria já denominou. Referimo-nos a processos de singularização vital que atravessam o corpo e a mente, fazendo com que mesmo um sintoma grave, como o delírio, possua uma consistência, uma materialidade, uma inserção existencial, um território de sentido que serve para viver. Sendo assim, a multiplicidade é o real em si mesmo, e esse real é sempre múltiplo, podendo  ser "sentido" por quem chega perto como um formigamento incessante de ações, deslocamentos, torções para além de uma organização estável como a do corpo esperando pelo exame, ou a de um eu-diretor falando de si.

Antonio Moura - Linhas da diferença em psicopatologia

Corpo e psicose

A vivência psicótica é, sobretudo, marcada pelas intensidades afetivas que têm na corporalidade a referência de base para um "viver", mesmo o mais bizarro, desconcertante ou inadequado. Sente-se algo, sente-se a si mesmo, antes de perceber, pensar, falar. E este "sentir" se dá no corpo, é o corpo como extensão-no-mundo, corpo-no-mundo, corpo-mundo. Portanto, a pesquisa etiológica das psicoses deverá partir do corpo, não apenas do corpo fisiológico, mas do  corpo como superfície invisível onde se sente e se dá  a vivência. Temos, pois, os processos afetivos  como   vivências de ser-um-corpo, ou de estar sendo um corpo. 
Para além dos aportes fenomenológicos aqui embutidos,  consideramos o corpo "chegando" antes da consciência, ou seja, o corpo intenso e fragmentado como relação entre forças, ou simplesmente como infinitas potências  de viver. Isso inclui sensibilidades não cadastradas pelo Olhar biomédico...

Antonio Moura  - Linhas da diferença em psicopatologia

terça-feira, 26 de julho de 2011

Seu Jorge/ Ana Carolina

QUEM DELIRA?

você delira
porque o caos o acaso
o infinito 
e a noite do tempo


mas não fale
perigoso desejar


Antonio Moura



                       

CORPO INVISÍVEL

Esse fundo, essa unidade rítmica dos sentidos, só pode ser descoberta ultrapassando-se o organismo. A hipótese fenomenológica é talvez insuficiente porque invoca somente o corpo vivido. Mas o corpo vivido ainda é pouco em relação a uma Potência mais profunda e quase insuportável. Com efeito, só podemos buscar a unidade  do ritmo onde o próprio ritmo mergulha no caos, na noite, e onde as diferenças de nível são sempre misturadas com violência. 
Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem órgãos.

G. Deleuze - Francis Bacon - lógica da sensação

A TERRA É UM CORPO VIVO

A vida animal descende toda do movimento dos mares, e dentro dos corpos a vida continua a sair de água salgada.
Assim foi que o mar interpretou um papel de órgão-fêmea, líquido pela excitação do macho.
O mar está continuamente a masturbar-se.
Os elementos sólidos contidos e agitados dentro de uma água que se anima de movimento erótico, brotam sob a forma de peixes voadores.

G. Bataille - O ânus solar

"N" sexos

O que chamamos representação antropomórfica do sexo é tanto a idéia  de  que só há dois sexos quanto a idéia de que só há  um (...) (...) Fazer o amor não é só fazer um, nem mesmo dois, mas fazer cem mil. É isso; as máquinas desejantes ou o sexo não humano: nem um nem mesmo dois sexos, mas n... sexos.

Deleuze-Guattari - O anti-édipo

GLOSSÀRIO - letra P - Psiquiatra biológico

Psiquiatra biológico- s. m. /f. -  (antes chamado de "orgânico") profissional que busca (pesquisa?) alterações/lesões/disfunções  em algum  setor   do organismo físico-químico para  explicar/justificar  o transtorno mental apresentado. Usa pouco a escuta,  a sua fala é breve, objetiva, a entrevista com o paciente  é curta (cerca de 15 minutos),  adora seguir  o roteiro de tabelas insípidas  sobre o humor, memória,  percepção, inteligência, etc,; a  atitude técnica   é a  de um cientista preocupado com a ciência, truismo que se impõe como dado natural na propedêutica clínica.  Desenvolve e cultua uma visão de mundo positivista, onde, óbvio, reina o projeto científico como redenção da humanidade. Odeia a política e despreza a filosofia. O psiquiatra biológico costuma  se  transmutar em  "cidológico" na medida em que erige e cultiva (obsessivamente)  a CID-10 como padrão referencial do que ele chama de "transtorno mental". Sobre essa variação  semântica,  ver  também postagem (mês de julho)  neste blog em Glossário- letra P. -psiquiatria cido-biológica. 

Antonio Moura

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Paulinho da Viola - SINAL FECHADO



O QUE ACONTECEU?

Mais do que é permitido,
mais do que é preciso,
como um delírio de poeta
sobrecarregando o sonho:
a pelota do coração tornou-se enorme,
enorme o amor,
enorme o ódio.
Sob o fardo,
as pernas são vacilantes.
Tu o sabes,
sou bem fornido,
entretanto me arrasto, 
apêndice do coração,
vergando as espáduas gigantes.
Encho-me dum leite de versos
e, sem poder transbordar,
encho-me mais e mais.

Maiakóvski

A Esquerda não é mais identitária

A esquerda padece de uma exaustão de conceitos teóricos. A velha cantilena dos ideais, dos princípios e dos códigos intocáveis ruiu à porta do templo do grande Todo (o comunismo, o holismo) e do pequeno Todo (o indivíduo, a pessoa). Como diz Nietzsche, não existe todo; é preciso esfarelar o universo, perder o respeito pelo  Todo.  Em tal sopa ideológica (o coletivo e o privado juntos?) a Esquerda se dobra à evidência dos fascismos regularizados e regulados à luz da transparência liberal-democrática.Afinal, tudo deve ser feito dentro da lei, mesmo e principalmente em  mega-roubos  do dinheiro público, como foi o caso do Mensalão.

Antonio Moura

O TRÀGICO

Criar é a grande libertação da do e do alívio da vida; mas para o criador existir são indispensáveis muitas dores e trasnfigurações (...) (...) Para o criador ser o filho que renasce, é necessário que queira ser a mãe com as dores do parto (...) (...) Não querer mais, não estimar mais e não criar mais! Ó! permaneça sempre longe de mim essa grande fraqueza.

F. Nietzsche - Assim falava Zaratustra

domingo, 24 de julho de 2011

SANTANA

CONTRAPONTO

Era um amor sem pretensão, mas quente e natural, e, sendo natural, bom na medida de suas limitações - uma sensualidade decente, bem humorada e feliz. Para Hilda, que, em matéria de amor, não conhecia nada senão os ensaios tímidos duma criança fóssil, foi uma revelação. Coisas mortas dentro dela tornaram à vida. Descobriu-se a si mesma, num arrebatamento. Não como um arrebatamento excessivo, entretanto. Nunca perdeu a cabeça. Se tivesse perdido a cabeça, arriscaria perder com ela Tantamount  House, os milhões dos Tantamounsts  e o título dos Tantamounts.  E Lady Edward não tinha a menor intenção de perder tudo isso. De sorte que conservou a cabeça; friamente, deliberadamente, manteve-a bem alto, em segurança, por sobre os arrebatamentos tumultuosos, como um rochedo que se ergue acima das ondas. Divertiu-se, mas nunca em detrimento de sua posição social.

Aldous Huxley - do livro Contraponto

Fragmento nietzschiano

O fenômeno do corpo é o fenômeno mais rico, mais claro, mais compreensível: deve ser posto metodicamente em primazia, sem que descubramos algo sobre seu significado último. (...) (...) A crença no corpo é mais fundamental que a crença na alma: a última surgiu a partir da observação não-científica das agonias do corpo (algo que o abandona. Crença na verdade do sonho-)

F. Nietzsche - do livro   A  vontade de poder

A música de Amy está de pé

A morte da cantora inglesa Amy Winehouse suscitou   comentários midiáticos quase clichês: "ela repetiu o que vários artistas jovens e talentosos fizeram; se encharcou de drogas, caiu numa vida inteiramente desregrada e eis o resultado". Este enunciado (muitas vezes implícito)  certamente produziu  um gozo secreto nos moralistas de plantão ( de todos os matizes)  sempre atentos à execração pública e à condenação da existência: "viu, Amy, você não tinha uma vida digna, normal, responsável  e aí deu no que deu; pagou pelos seus pecados... "
Ao contrário, movida  pela sensibilidade e pela busca de novíssimas formas de percepção da realidade, e mais ainda, por outras realidades sequer sonhadas,  ela  foi  fundo na inocência do devir. Desse modo,  infelizmente  naufragou, não por uma falta, mas  pela  exuberância de vida, pelo  excesso e   pelo risco... de criar.
Nada romântico em  tal assertiva. Só a crueldade do real.


Antonio Moura

sábado, 23 de julho de 2011

Mundo moderno, melhore

Cosmologia

Para começar, o sol é uma estrela absolutamente sem importância no sistema galáctico em que estamos situados. Se me perguntarem quantas estrelas tem uma galáxia - que é um conjunto de estrelas -, eu posso dar uma ordem de grandeza que é fácil de calcular. Posso até mesmo mostrar como se faz isso; ou seja, não é absolutamente algo irrealizável. O que não posso é contar as estrelas do céu. Para vocês terem uma idéia, eu e um amigo fizemos um pequeno cálculo e concluimos que para se contar o número de estrelas - só na nossa galáxia - levaríamos 3.400 anos. Claro que desistimos...

Mário Novello - Físico

POR UMA LITERATURA DO REAL

Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto. 
Permaneceu de costas, as quais eram duras como couraça, e, erguendo um pouco a cabeça, conseguiu ver a saliência do seu grande ventre marron, dividido em nítidas ondulações. As cobertas escorregavam, irremediavelmente, do alto da curva, e as pernas de Gregor, lamentavelmente finas, comparadas ao seu tamanho primitivo, agitavam-se, impotentes, diante de seus olhos.
"Que terá acontecido?", pensou ele. Não era sonho. (...)

Franz Kafka - Metamorfose, cap.1, início...

A VIDA NÃO MORRE


                                                            A ARTE NÃO MORRE

Amy Winehouse

EROTISMO

A consecução do erotismo tem por fim atingir o ser no seu mais íntimo cerne, lá onde qualquer palavra ou sentimento são inúteis. A passagem do estado normal ao do desejo erótico supõe em nós a relativa dissolução do ser constituído na ordem descontínua. (...) (...)  Há, na passagem da atitude normal à do desejo, uma fascinação fundamental da morte. O que o erotismo implica é sempre uma dissolução das formas constituídas, ou seja, repetindo, das formas da vida social, regular, que fundam a ordem  descontínua das invidualidades definidas que somos.

G. Bataille - do livro O erotismo: o proibido e a transgressão

Espinosa e nós

Em suma: se somos espinosistas, não definiremos algo nem por sua forma, nem por seus órgãos e suas funções, nem como substância ou como sujeito. Tomando emprestados termos da Idade  Média, ou então da geografia, nós o definiremos por longitude e latitude.Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus  linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade.Entendemos por longitude de um corpo qualquer conjunto das relações de velocidade e de lentidão, de repouso e de movimento, entre partículas que o compõem desse ponto de vista, isto é, entre elementos não-formados. Entendemos por latitude o conjunto de afetos que preenchem um corpo a cada momento, isto é, os estados intensivos de uma força anônima (força de existir, poder de ser afetado). Estabelecemos assim a a  cartografia de um corpo. O conjunto das longitude e das latitudes constitui a Natureza, o plano de imanência ou de consistência, sempre variável e que não cessa de ser remanejado, composto, recomposto, pelos indivíduos e pelas coletividades.

G. Deleuze - do livro Espinosa filosofia prática

Psicodrama no Serviço Público - 3

Resumindo muito, e roubando  uma definição    de Naffat   Neto (Psicodrama:descolonizando o imaginário), eu diria que "o psicodrama é a  objetivação de uma experiência subjetiva, enquanto o sociodrama é a subjetivação de uma realidade objetiva". No entanto,  buscando  escapar  do círculo estreito desta  concepção sujeito-objeto, pode-se  inferir que  "só existe" o Sociodrama, sendo o Psicodrama dele derivado. Na observação empírica de uma sessão de grupo, este dado é tão mais relevante na medida em  que os problemas (sintomas)  chegam atrelados a linhas existenciais molares  (identitárias) enrijecidas,  como é o caso dos papéis de mulher, esposa, mãe, trabalhadora, entre outros. O método do sociodrama adquire, assim, um viés terapêutico que faz por abranger o paciente no mundo e não o contrário (o mundo no paciente), caso das terapias individualistas, egóicas, restritas ao espaço do cérebro que mente.Estas são breves anotações que começo a fazer a partir do grupo terapêutico do Caps.

Antonio Moura

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Futuros amantes

                                                           
                                                                     Chico Buarque

ETERNO

E como ficou chato ser moderno
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.


C. Drummond de Andrade

Criança


                                                             Marina Lima

Viagens reais

Nada poderia ser mais verdade do que isso com referência a dom Juan Matus. Seu vazio refletia o infinito. Não havia agitação de sua parte, ou asserções sobre o eu. Não havia nem uma migalha de necessidade de ter ressentimentos ou remorsos. O seu vazio era o vazio do guerreiro-viajante, experiente ao ponto de não considerar nada como certo. Um guerreiro-viajante que não subestima ou superestima nada, Um lutador sereno, disciplinado, cuja elegância é tão extrema que ninguém, não importa o quanto se esforce para ver, jamais encontrará a costura onde toda essa complexidade se reúne.

C. Castañeda - do livro O lado ativo do infinito

EXISTÊNCIA E INOCÊNCIA

Quando Nietzsche denuncia nossa deplorável mania de acusar, de procurar responsáveis fora de nós ou mesmo em nós, ele funda sua crítica em cinco razões das quais a primeira é de que "nada existe fora do todo". Ma a última, a mais profunda, é de que "não existe todo". " É preciso esfarelar o universo, perder o respeito pelo todo". "A inocência é a verdade do múltiplo".

G. Deleuze - Nietzsche e a filosofia

Psicodrama no Serviço Público

Hoje foi a 4ª sessão do psicodrama no Caps.  De fato, é algo novo para mim, creio que  também   para as pacientes e talvez para um serviço como o Caps. O que aconteceu? O que está acontecendo? O que acontecerá? Conceitos do psicodrama  se torcem, se retorcem e são reinventados. Ou melhor, terão que ser reinventados...Dedico esse trabalho às pacientes  que confiaram em mim e ao amigo Isac, referência de inconformismo radical e delicadeza no trabalho clínico.

Antonio Moura

GRUPO CORPO

O cérebro é o PSIQUIATRA

Na prática, pude observar que qualquer instituição que agrupa doentes mentais tende a cronificar-se. Criam-se coletivos altamente repetitivos: providenciam sinuca, televisão, oficinas adjacentes, comida, por exemplo, mas quando há uma crise busca-se logo o psiquiatra.

Antonio Lancetti - do livro Clínica peripatética

Função da psicoterapia

Vamos brincar com a idéia de que a psicologia torna as pessoas medíocres; vamos brincar com a idéia de que o mundo está  in extremis,  sofrendo de um distúrbio, quase fatal, que ele está à beira da morte. Então eu diria que o mundo necessita de mais  sentimentos e pensamentos  extremos e originais, para que a crise que ele atravessa seja considerada na mesma intensidade. A compreensão tolerante da psicoterapia dificilmente está apta para a tarefa. Pelo contrário, produz atitudes contrárias ao caos, à marginalidade dos extremos. A terapia como sedação: tranquilizantes, anestésicos que nos acalmam, aliviam o estresse e relaxam, que nos ajudam  a buscar a aceitação, o equilíbrio, o apoio, a empatia. Território neutro. Mediocridade.

James Hilton - do livro Cem anos de psicoterapia... e o mundo está cada vez pior

O ANTI-HERÓI

As paredes se afastaram para deixá-lo passar; as freiras, vendo que levantava vôo nos ares, com asas que até então escondera sob seu manto de esmeralda, foram  enfiar-se silenciosamente sob as lápides das sepulturas. Partiu para a sua morada celeste, deixando-me aqui; isto não é justo. Os outros cabelos ficaram em sua cabeça; e eu aqui jazo neste quarto lúgubre sobre um chão coberto de sangue coagulado e pedaços de carne seca; este aposento tornou-se maldito depois que ele aqui se introduziu; ninguém mais entra aqui; estou pois trancado. Assim é!

Lautréamont - do livro Cantos de Maldoror - livro 3º

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Todas as loucuras são inocentes

                                                   
                                                          Gol  de Raudinei - 1994

DEIXAR DE SER PACIENTE

Uma clínica da diferença em psicopatologia trabalha para que o paciente deixe de sê-lo. Importante: não é a busca da melhora, da cura, da readaptação ou inclusão social,  da reabilitação profissional ou outros conceitos liberais muito vizinhos entre si. Encarar a diferença, ou melhor, encontrar o paciente enquanto diferença,  é considerar a priori que ele pode deixar de ser paciente. A utopia de tal assertiva dissolve-se num campo virtual de  uma política das multiplicidades. Entretanto,  antes que tudo  isso pareça obscuro, devo dizer que as multiplicidades são o real de uma  vida.  Ao paciente costumam   arrancá-la em prol de uma domesticação subjetivo-social. Ou como trama  urdida nos intelectos em direção  a   um encaixotamento corporal com verniz farmacológico. Ou, por fim, e talvez o pior, como objeto de lucro e prestígio para corporações profissionais.

Antonio Moura

A morte contente

Kafka sente profundamente que a arte é relação com a morte. Por que a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo que pode, é integramente potência. A arte é senhora do momento supremo, é senhora suprema.

M. Blanchot - O espaço literário

Políticas

Querer uma política libertária é inverter as perspectivas: submeter o econômico ao político, mas também colocar o político a serviço da ética, dar primazia à ética da convicção sobre a ética da irresponsabilidade, depois reduzir as estruturas ao mero papel de máquinas a serviço dos indivíduos, não o contrário.

Michel Onfray - do livro A política do rebelde- tratado de resistência e insubmissão

Cronicamente inviável


                                                        do filme de Sérgio Bianchi

QUAL FILOSOFIA?

Certamente, pode ser tentador ver na filosofia um comércio agradável do espírito, que encontraria no conceito sua mercadoria própria, ou antes seu valor de troca, do ponto de vista de uma sociabilidade desinteressada, nutrida pela conversação democrática ocidental, capaz de engendrar um consenso de opinião, e de fornecer uma ética para a comunicação, como a arte lhe forneceria uma estética. Se é isso que se chama filosofia, compreende-se que o marketing se apodere do conceito, e que o publicitário se apresente como o conceituador por excelência, poeta e pensador: o deplorável não está nesta apropriação desavergonhada mas,antes de mais nada, na concepção da filosofia que a tornou possível.

Deleuze-Guattari - do livro O que é a filosofia?

RIZOMAS

Buscamos uma clínica órfã. Começar do zero: considerar as forças que animam essa ou aquela concepção da doença. As forças e suas relações constituem poderes. Estes não falam mas fazem falar o diagnóstico. Mais: fazem falar o paciente, convencido de que a sua verdade é a da psiquiatria. Desse modo, refazer a psiquiatria é deixar aparecer a fala no encontro com o paciente. Tal fala não tem que ser compreensível nem ser só verbal. Há outras formas de expressão, às vezes sequer sonhadas pelos que estão embalados ao ritmo da razão triunfante. Fazer psiquiatria é sair da psiquiatria para o seu lado de fora que, ao mesmo tempo, é o seu lado de dentro, ou seja, o diagnóstico. Assim, outro uso do diagnóstico significaria um movimento de "oxigenação" do saber psiquiátrico por outros saberes que, com ele, comporão rizomas. Uma transdisciplinaridade, enfim.

A. Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Quando o amor acontece


                                                                    J. Bosco

AS BASES DO PODER

A  força engenhosa que inventou as categorias  trabalhava a serviço da necessidade, a saber, da segurança, da compreensibilidade rápida com fundamentos em sinais e sons, em meios abreviativos - "substância", "sujeito", "objeto", "ser", "devir" não implicam verdades metafísicas - Foram os poderosos que tornaram lei os nomes das coisas e entre os poderosos estão os maiores artífices de abstrações, aqueles que criaram as categorias.

F. Nietzsche - do livro A vontade de poder

DESEJO-PRODUÇÃO

A  psicanálise é  antiga  parceira da psiquiatria na missão de afastar  (ou denegar)os fatores coletivos (multiplicidades) na construção de processos de singularização existencial (subjetividades). A  axiomática  do capital nivelou   tudo, laminou  tudo em prol de  vivências pacíficas, conformadas  e adequadas. O cerebrão e o inconsciente edipiano  operam de mãos dadas na produção de territórios capitalísticos. (Isso lembra o Félix Guattari).  Contudo,  se  você acha que tudo vai bem, que a psiquiatria cura, melhora,adapta, reabilita,  e a psicanálise salva, conforta, alivia e traz a felicidade, então páre  imediatamente. Esse texto tem   outros destinatários...

Antonio  Moura

QUAL VIDA?

Certamente, não há razão para pensar que os estratos físico-químicos esgotem a matéria: existe uma Matéria não formada, submolecular. Tampouco os estratos esgotam a Vida: o organismo é sobretudo aquilo a que a vida se opõe para limitar-se, e existe vida tanto mais intensa, tanto mais poderosa quanto é anorgânica.

Deleuze-Guattari - Mil platôs

O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante

                                                     
                                                       Um filme de Peter Greenaway

ÉTICA E CLÍNICA

Diante do  paciente, é possível  operar   uma  ética não  pronta. Nada   de   manuais ou   códigos  recitados    pela   Academia. Há  uma  não pessoa na  pessoa  à nossa  frente. Tal  paradoxo encarna  um  anti-humanismo visceral. O que  está  em jogo  não  é o   indivíduo, mas   uma   vida.  A  que isso  leva?
Isso  leva  à  busca  de um  aumento da  potência de existir, tal  como  ensinou  Espinosa.    Na prática clínica     remete a    aspectos  empíricos  e   imediatos. Quem  é  o  paciente?  Quem  sofre?  Ele  mesmo  nos  procurou?  Por  quê? Para  quê?   Ele  quer viver? O  que  é  viver?  São perguntas  elementares     para  a   formulação de uma  ética   de vida.  A  potência  de viver  ocupa um lugar de  destaque na  questão de uma  clínica  da  diferença.    Vale   para o   paciente  e  para o  psiquiatra.   Num    meio clínico   encharcado   de      psiquiatria,  reina  a  ética   médica   envelhecida.      Escapar  dela     e   propor outra  coisa...   seria   possível?  
Talvez  uma  clínica  que   trabalhe  a   produção   de  novas  maneiras de viver...  Ora,  a  psiquiatria   está morta como  pensamento [1].   Para  turbinar novas  práticas,   iniciemos   pela  ética:  o Encontro com  o paciente  traduz esse  projeto: a  materialidade   da  relação passa  a ser  constituída  por  afetos que  circulam nos  dois  sentidos. É  claro  que  pela sua  própria  definição,  há os bons e os  maus afetos.  Os  que  constroem e  os que  destroem.
Desse  modo,  antes   da   técnica  é  preciso  compor   linhas de  vida. Implica em  dizer que  o  trabalho  com o paciente  segue   a  arte  como  experimentação. Experimente,  não  interprete,  diz  Deleuze.   Os dados da  história pessoal  e  das contingências atuais estão baralhados  na  superfície  do Encontro. O  trabalho,  no caso do  psiquiatra,  será o de   destruir  formas sociais rígidas (por exemplo, o  afã  de  medicar,  o diagnóstico  cidológico,  o  corporativismo médico, etc) e  criar  dobras, saídas, mesmo  ínfimas  e imperceptíveis, para os  impasses  existenciais.
Atender o paciente é encontrar  a  loucura.  Interessa,   pois,   ao   psiquiatra,  sair de si  na   direção de  um  campo vivencial   movediço, sem  garantias  prévias,  sem  receitas  ou   protocolos   técnicos. Sob  tais  condições,  torna-se  um  feiticeiro.  Carrega  o  seu balaio  de  conceitos na  espreita de mais  um  encontro em que  possa usá-los.

Antonio Moura


[1]   Usamos  “pensamento” no  sentido  deleuziano, ou  seja, um  pensar   não    restrito  a  interioridade de um  sujeito,  mas  voltado ao  encontro  com  o  Fora,    com   as   multiplicidades  do  mundo.    Ver Deleuze, G. e Guattari, F., Mil Platôs-Capitalismo  e Esquizofrenia, S. Paulo, Ed.  34, 1997,  vol.  5, p.43 
50.

Capitalismo Mundial Integrado

O poder, entretanto- e Michel Foucault não foi o único a nos ensinar isso - teme e despreza o vácuo. O novo paradigma já funciona em termos inteiramente positivos - e não poderia ser de outra forma. Ele  é ao mesmo tempo sistema e hierarquia, construção centralizada de normas e produção de legitimidade de grande alcance, espalhada sobre o espaço mundial.

Michael Hardt e Antonio Negri - do livro  Império

PARA ALÉM DOS UMBRAIS

O avanço de Randolph Carter através da ciclópica massa de alvenaria foi como uma vertiginosa precipitação através de abismos imensuráveis entre as estrelas. De uma grande distância, sentiu ondas triunfais, divinas, de terrível doçura, e, depois disso, o adejar de grandes asas e impressões de som como os trinados e murmúrios de objetos desconhecidos na Terra ou no sistema solar. Olhando para trás, não viu um só portal isolado mas uma multiplicidade de portais, alguns com Formas vociferantes que tratou de não recordar.

H.P. Lovecraft - do livro À procura de Kadath

A equipe técnica em saúde mental: nota

Sobre o tema "equipe técnica em saúde mental", é conveniente  se falar em grupo, ou melhor , em dispositivo grupal. A equipe técnica terá que se tornar um dispositivo grupal para poder atuar enquanto equipe. Equipe=grupo=dispositivo grupal = institucional. Esta é uma visão imanente à prática. Evitamos o termo "grupalidade",  pois este nos    remeteria  a uma suposta natureza e/ou essência do grupo. Não há "natureza" nem "essência". Tudo é artifício. A equipe  é, sobretudo, um arranjo de peças heterogêneas (saberes, práticas, conceitos, técnicas, pessoas, etc) que irá atuar sobre o paciente sem esquemas técnicos previamente fixados. O critério primeiro a ser testado (portanto, não está dado) é o da ética. Qual ética a se fazer, a se inventar? As técnicas vêm depois, inclusive o fármaco, principalmente ele.

Antonio Moura

terça-feira, 19 de julho de 2011

O PAÍS DA DELICADEZA PERDIDA

                                                                      Chico Buarque

A dobra subjetiva

A experiência de ensinar é,antes, a experiência de aprender com os signos.Antecedendo a partição significante-significado, o signo procede  a uma violência constitutiva dessa experiência. Forçar a pensar, como diz  Deleuze, é criar um campo tanto mais rico na emissão de signos. A função de  professor dobra-se e desdobra-se na sua presença-ausência, descolando-se dos conteúdos e fazendo destes o móvel das práticas do pensar.

Antonio Moura - do livro Linhas da diferença em psicopatologia

O PAPEL CRIATIVO DO TEMPO

Parece que o sistema neurofisiológico é um sistema altamente instável que continua a funcionar no sono como um sistema dinâmico muito complexo. É ainda Valéry que escreve: "O cérebro é a própria instabilidade".mas que acontece quando se passa do estado de sono para o de vigília? (..) (..) Não sou neurofisiólogo, mas fiquei fascinado ao encontrar no cérebro uma atividade de base altamente instável, como no caso do clima. O mundo exterior permite polarizar esta atividade de base numa direção ou noutra e chegar às atividades cognitivas.


Ilya Prigogine - do livro O nascimento do tempo

PESSOA

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.


Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma
(...)
Fernando Pessoa - Ficções do interlúdio -poemas de A. Caieiro

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fui internado ontem...

                                           
                                                       Luiz. Melodia  canta  Sérgio  Sampaio

Pensamento da diferença

O pensamento da diferença é um pensamento-corpo. Ele  fabrica   a realidade do corpo, preparando-o  para o   combate das  intensidades semi-ocultas. Não é, claro,   a realidade do  organismo, do qual a medicina retira mais valia, mas sim  a do  corpo das vibrações insanas.  Uma página em branco é um corpo onde regurgitam  palavras, mesmo antes de serem escritas.  Um blog  pode criar campos super-aquecidos como se  o sol fosse  visto  bem  de perto. Como sabemos, o sol é infinitamente generoso na  doação de energia à terra. Essa é a linha nômade que nos carregará  para além do cais.  

Antonio Moura

NOMES DE DEUSES

Se você aceita que as leis fundamentais da natureza são reversíveis, então certamente a vida, o homem ficam de fora. Enquanto se você pensar que o Tempo, a direção do Tempo, é o que torna nosso universo coerente porque uma rocha envelhece, um planeta envelhece, nós envelhecemos, você envelhece, eu envelheço - e envelhecemos todos na mesma direção - então a flecha do Tempo é a propriedade comum  a tudo o que existe no universo. Sem isso, há a cisão, tão pungente em Jacques Monod.  Monod que aliás, não compreendeu a importância que Bergson  atribuía à duração.

Ilya Prigogine - do livro Do ser ao devir

É PRECISO ACABAR COM AS OBRAS PRIMAS

Uma das razões da atmosfera asfixiante na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio - e pela qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentre nós - é o respeito pelo que é escrito, formulado ou pintado e que assumiu uma certa forma, mesmo se toda expressão já não estivesse exaurida e não tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas estourem para que se recomeçasse tudo de novo. 
É preciso acabar com essa idéia das obras primas reservadas a uma auto-intitulada elite e que a massa não entende, e reconhecer que não existe, no espírito, uma zona exclusiva como aquela reservada para as ligações sexuais clandestinas.

A. Artaud - do livro O teatro e seu duplo

A existência nômade tem por "afetos" as armas de uma máquina de guerra

As armas são afetos, e os afetos, armas. Desse ponto de vista, a imobilidade a mais absoluta, a pura catatonia, fazem parte do vetor velocidade, apóiam-se nesse vetor que reúne a petrificação do gesto à precipitação do movimento.O cavaleiro dorme sobre sua montaria, e parte como uma flecha.

Deleuze-Guattari , do livro Mil platôs

domingo, 17 de julho de 2011

MARISA MONTE

Sobre o tempo e a vida

Outro livro que me influenciou, poderá talvez espantar, é o de Jacques Monod,  O acaso e a necessidade.  De fato, não estava de acordo com Monod, porque colocava a vida fora da matéria, como um epifenômeno devido ao acaso, mas de qualquer modo estranho às grandes leis.
Aquilo que aprendi da termodinâmica permitia-me ter uma concepção completamente diferente. De acordo com o meu ponto de vista, a vida exprime melhor do que qualquer outro fenômeno físicos algumas leis essenciais da natureza. A vida é o reino do não-linear, a vida é o reino da autonomia do tempo, é o reino da multiplicidade das estruturas. E isso não se vê facilmente no universo não vivo. No universo não vivo existem sim estruturas, existe o não-linear, mas os tempos da evolução são muitos mais   longos, enquanto a vida se caracteriza por esta instabilidade que faz que vejamos nascer e desaparecer estruturas em tempos geológicos.

I. Prigogine - O nascimento do tempo

GAL

CONVERSA ENTRE PSIQUIATRAS

Psiquiatra 1- A psiquiatria mudou após os avanços da neurociência.
Psiquiatra 2- Concordo.


P1- E por que você fala tão mal da psiquiatria atual?
P2-Eu não falo mal. Ela é que se expõe... 


P1-Como assim?
P2-A psiquiatria se expõe num discurso neuro-simplório.


P1-Mas você admitiu que são avanços.
P2-Sim, avanços, mas não respostas.


P1- Mais uma vez, peço que você se explique.
P2-Simples, eu explico pra você  que nada tem explicação.


P1- Não entendi.
P2-Pois é. Nada a entender. Tudo a criar.

O TEMPO EM QUESTÃO

O tempo hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais de solidão e sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve. Chegou o tempo de novas alianças, que sempre existiram, por muito tempo desconhecidas, entre a história dos homens, de sua sociedade, de seu saber, e a abertura exploradora da natureza.

Isabelle  Stengers

A literatura e a vida

Todo delírio é histórico-mundial, "deslocamento de raças e continentes". A literatura é delírio e, a esse título, seu destino se decide entre dois polos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência a cada vez que erige uma raça pretensamente pura e dominante.Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda  oprimida que não pára de agitar-se sob as denominações de resistir a tudo o que  esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um sulco para si na literatura.

G. Deleuze - do livro Crítica e clínica