quarta-feira, 20 de julho de 2011

ÉTICA E CLÍNICA

Diante do  paciente, é possível  operar   uma  ética não  pronta. Nada   de   manuais ou   códigos  recitados    pela   Academia. Há  uma  não pessoa na  pessoa  à nossa  frente. Tal  paradoxo encarna  um  anti-humanismo visceral. O que  está  em jogo  não  é o   indivíduo, mas   uma   vida.  A  que isso  leva?
Isso  leva  à  busca  de um  aumento da  potência de existir, tal  como  ensinou  Espinosa.    Na prática clínica     remete a    aspectos  empíricos  e   imediatos. Quem  é  o  paciente?  Quem  sofre?  Ele  mesmo  nos  procurou?  Por  quê? Para  quê?   Ele  quer viver? O  que  é  viver?  São perguntas  elementares     para  a   formulação de uma  ética   de vida.  A  potência  de viver  ocupa um lugar de  destaque na  questão de uma  clínica  da  diferença.    Vale   para o   paciente  e  para o  psiquiatra.   Num    meio clínico   encharcado   de      psiquiatria,  reina  a  ética   médica   envelhecida.      Escapar  dela     e   propor outra  coisa...   seria   possível?  
Talvez  uma  clínica  que   trabalhe  a   produção   de  novas  maneiras de viver...  Ora,  a  psiquiatria   está morta como  pensamento [1].   Para  turbinar novas  práticas,   iniciemos   pela  ética:  o Encontro com  o paciente  traduz esse  projeto: a  materialidade   da  relação passa  a ser  constituída  por  afetos que  circulam nos  dois  sentidos. É  claro  que  pela sua  própria  definição,  há os bons e os  maus afetos.  Os  que  constroem e  os que  destroem.
Desse  modo,  antes   da   técnica  é  preciso  compor   linhas de  vida. Implica em  dizer que  o  trabalho  com o paciente  segue   a  arte  como  experimentação. Experimente,  não  interprete,  diz  Deleuze.   Os dados da  história pessoal  e  das contingências atuais estão baralhados  na  superfície  do Encontro. O  trabalho,  no caso do  psiquiatra,  será o de   destruir  formas sociais rígidas (por exemplo, o  afã  de  medicar,  o diagnóstico  cidológico,  o  corporativismo médico, etc) e  criar  dobras, saídas, mesmo  ínfimas  e imperceptíveis, para os  impasses  existenciais.
Atender o paciente é encontrar  a  loucura.  Interessa,   pois,   ao   psiquiatra,  sair de si  na   direção de  um  campo vivencial   movediço, sem  garantias  prévias,  sem  receitas  ou   protocolos   técnicos. Sob  tais  condições,  torna-se  um  feiticeiro.  Carrega  o  seu balaio  de  conceitos na  espreita de mais  um  encontro em que  possa usá-los.

Antonio Moura


[1]   Usamos  “pensamento” no  sentido  deleuziano, ou  seja, um  pensar   não    restrito  a  interioridade de um  sujeito,  mas  voltado ao  encontro  com  o  Fora,    com   as   multiplicidades  do  mundo.    Ver Deleuze, G. e Guattari, F., Mil Platôs-Capitalismo  e Esquizofrenia, S. Paulo, Ed.  34, 1997,  vol.  5, p.43 
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