sábado, 24 de fevereiro de 2018

POTÊNCIA DA LITERATURA

Vamos partir de uma situação que grande parte de nós já vivenciou. Estamos saindo do cinema, depois de termos visto uma adaptação de um livro do qual gostamos muito. Na verdade, até que gostamos do filme também: o sentido foi mantido, a escolha do elenco foi adequada, e a trilha sonora reforçou a camada afetiva da narrativa. Por que então sentimos que algo está fora do lugar? Eu penso logo em Fim de Caso, do inglês Graham Greene, levado às telas por Neil Jordan. Mas você pode pensar em Harry Potter, em Alice no País das Maravilhas, em qualquer um dos filmes baseados em romances do Cormac McCarthy. No meu caso, eu tinha a Julianne Moore no papel feminino principal, e com ela nada pode dar muito errado, né? Então, por que me senti um pouco traída e com uma sensação de que havia faltado alguma coisa?

O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.

Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. É sempre bom ver Julianne Moore na tela... O problema é que ela, ali, toma o espaço que, de alguma forma, eu havia preenchido na narrativa quando a li.

Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.
(...)

Ligia G. Diniz,El País, 22/02/2018, 18:44 hs

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