RELATOS DA CLÍNICA - 4

Não é esquizofrenia

Era um atendimento que eu fazia com uma paciente do Caps. Ela trazia uma história muito psiquiatrizada. Ou seja, passara por vários psiquiatras e um deles (ou todos) dissera-lhe que ela tinha esquizofrenia. Íris, (nome fictício) com 48 anos, era atendida a cada 30 dias. As consultas duravam de 30 a 50 minutos. Falava muito, era teatral, contava histórias da sua vida, vicissitudes, desventuras, violências, dramas, traumas, mudanças, mortes, enfim, um percurso louco. A tragédia humana me chegava na voz-expressão daquela mulher forte. Na sua fala o diagnóstico de esquizofrenia sempre voltava à cena, a reafirmar que ela "tinha esquizofrenia". Certa vez, ao dizê-lo quis a minha confirmação: "Dr. o sr. também  não acha que eu tenho esquizofrenia?". Disse que não sabia, não tinha ainda um diagnóstico firmado, mas que um dia era provável que sim, eu teria. Na verdade, eu já achava que ela "não tinha esquizofrenia", mas em face da subjetivação violenta que a máquina psiquiátrica lhe colara na alma ("eu tenho esquizofrenia") preferi inventar uma estratégia clínica. Usei um certo tempo para trabalhar a relação psiquiatra/paciente no sentido de criar condições técnicas para enunciar a Resposta. Esta seria contrária ao diagnóstico-sentença longamente cronificado. Como Íris voltava frequentemente ao tema ("porque sei que tenho esquizofrenia"), certa feita, achei que o momento, enfim, chegara. "Olha, Íris, quero lhe dizer uma coisa: é sobre esse diagnóstico que você tanto fala. Hoje eu lhe respondo ao que me perguntou: não, não, você não tem esquizofrenia". Ela fez uma cara de espanto e perplexidade. "O sr. tem certeza, dr?".respondi que sim, que tinha certeza. E repeti: "Você não tem esquizofrenia!". Ela ficou alguns segundos em silêncio, assentiu com a cabeça e disse: "Tá bom, doutor, eu vou acreditar por que é o sr que está me dizendo. Mas, o que posso dizer é que sei que tem alguma coisa errada comigo".

A.M.