sexta-feira, 27 de abril de 2012

Auto-entrevista - nº  1    sobre  a  Clínica  da  diferença -  30/08/2007 

Pergunta- O que  é  a Clínica  da  diferença?

Resposta –É  um pensamento  imediatamente  prático,  voltado  ao  paciente  e  à  sua realidade. Há, aqui,  um   paradoxo  intencional; uso   o  termo “pensamento”  pois considero  as abstrações  teóricas  perfeitamente  inseridas na  afirmação  de práticas clínicas  e  mais que  isso, em práticas  de vida. A clínica  é  tão  só  um recorte  num campo muito  mais  vasto  do que  os aparelhos  teóricos  das  ciências   biológicas,  ou   mesmo humanas  querem nos fazer acreditar.  Para se   chegar  ao  paciente, muitos  instrumentos  conceituais podem servir. O critério passa  a ser  ético-estético e político. A  técnica  vem “depois”.

P- Você  poderia detalhar   um pouco  mais  as  ações  práticas?
R- Sim.  Esquematicamente, posso  dizer  que um trabalho  prático   em saúde  mental   se  baseia na   concepção do  paciente a  partir  da   vivência  no  lugar     do sintoma.  Do  encontro  no  lugar     do  exame. E do  diagnóstico-função no lugar  do diagnóstico-essência. Esses três  conceitos  interagem entre  si  na  construção de  territórios de vida, ou  seja, onde  e por onde o paciente  constrói   a  si  mesmo  e  seu  mundo de forma  singular.

P- É possível  detalhar   melhor  esses  conceitos?
R- De forma  resumida, posso   dizer  que  a Vivência  prioriza  o sentimento  que  o paciente  experimenta  em relação a si, ao  mundo e  até  sobre   sua  suposta  doença. Aí   se  produz    o  desejo. O Encontro  seria a ligação que  se estabelece  entre  o paciente   e o técnico, na  medida em que  este último  de fato    deseje    ajudá-lo. Por  último, o Diagnóstico-função é  uma  “leitura”, sempre parcial, do que  acontece  ao  paciente, voltada  para  objetivos  funcionais do  concreto  imediato.  Sendo assim, ele  poderá  mudar,     a  depender  das circunstâncias.
P- Você   citaria    outros  elementos  teóricos  importantes?
R- Há  muitos  elementos   que    deverão  ser  criados  à  medida  em que  se   produza  uma  prática. Posso  citar , por  exemplo,  ainda no interior  de  um certo  dualismo, que ao  invés   do  cérebro,  coloco   a subjetividade. No lugar  dos  fármacos, a psicoterapia  (ou as  psicoterapias).  Contudo , é  bom  registrar  que  nem o cérebro   nem   a farmacologia são  negados  ou  recusados, mas, ao  contrário, inseridos numa  proposta mais ampla na  qual a  transdisciplinaridade é  o fio condutor do  método, ou  o próprio  método.
P- A  partir   de  que  autores  você   estrutura  essas  idéias?
R- Haveria   que  citar  muitos  nomes. Contudo, destaco os  que  são, sem  dúvida, essenciais  para  construção    da  base  teórica:  Michel Foucault, Gilles  Deleuze  e Félix  Guattari. Acrescento também  a  contribuição  da  Análise  Institucional (Gregório Baremblitt, entre outros) e o pensamento  de  Jacob  Levi  Moreno, criador  do  psicodrama.
P-O seu  discurso  é contra  a psiquiatria?
R-  De modo  algum. A  psiquiatria  jamais  é  recusada   em sua  contribuição  científica  e tecnológica.  Trata-se de  outra  coisa. Ela é, isto sim, interpelada e  posta  no seu  “devido  lugar”,  submetida  às  injunções sócio-histórico- político-econômicas. Buscamos  retirar  o caráter de essência  intocável do  saber  psiquiátrico e    conectá-lo  com  saberes múltiplos vindo de áreas  heterogêneas. Assim, talvez  seja   possível “oxigenar” as concepções e  as  práticas   psiquiátricas  sobre os  transtornos mentais. Essa  é  a idéia.

P- Como  você    vê  o  uso  dos  psicofármacos  em patologia  mental?
R-Considero uma opção  terapêutica  muito  útil  na  medida  que sejam observados  critérios  clínicos como a ética,  o diagnóstico, as  circunstâncias  do  atendimento, a relação de poder  médico-paciente, entre  outros.

P-  Na sua  proposta,  há um uso insistente  do termo “subjetividade”. Por  quê?
R- Na verdade, a  subjetividade  em Saúde  Mental costuma  ser  considerada a  partir do que  a psiquiatria, enquanto  instituição hegemônica, estabeleceu. Ou seja, haveria   uma “subjetividade-doente mental”   vista   como  fato    natural. Tudo  gira  em torno desta  premissa, inclusive  os  que  lidam  com o paciente e  o próprio  paciente.  Eles   passam a ser  psiquiatrizados.  No entanto, outras  subjetividades  existem, pelo  menos  virtualmente, esperando apenas condições para se afirmarem. E tal  afirmação  só  virá   com  práticas  sociais concretas.

P- Qual   o papel  do  psicólogo  na  equipe  técnica em Saúde  Mental?
R- Acrescento ao “papel”,    a  “função”  e o    “ lugar” de psicólogo.   O papel remete a sua  inserção no  universo  social (simbólico).  A função é o  lado   propriamente  técnico. Quanto ao  lugar, diz respeito  à   sua   inserção  nas   relações de poder.  O psicólogo trabalha com esses 3  níveis interligados. Penso  que devido às condições institucionais  psiquiátricas,  o  “lugar”  do  psicólogo é  crucial para  a  prática.  Assim, para que   a  sua  fala seja  levada  em conta  e portanto o papel e a função se dêem em  benefício do  paciente, o psicólogo terá  que conquistar  um  espaço onde o saber sobre  a  loucura  lhe  autentique  verdades não psiquiátricas.

P-O que  causa  os transtornos  mentais?
R- A  etiologia  é  sempre  multifatorial, mesmo que  pareça se  referir  a um só  fator, como por  exemplo  o orgânico. Este é  mais  visível e até  certo ponto mais  “fácil” de   ser  detectado.  Contudo, há  muito mais a ser  pesquisado.   Os  múltiplos   fatores  são subdivididos neles  mesmos,    em arranjos transdisciplinares. Isso   quer  dizer  que  não  há  fronteiras  nítidas entre  as   disciplinas, nem sequer existem disciplinas,  se  pensarmos e trabalharmos  segundo   numa  ótica   verdadeiramente  transdisciplinar. Entramos   num universo  sub-representativo.Tudo  passa a   ser   mistura. Desabam  as  especialidades e  os  especialismos.

P- Poderia  explicar melhor  o que você  chama  de  universo   “sub-representativo”?
R-  Trata-se    do mundo   que     escapa   à  Identidade  do conceito,  (sustentada  pelo  verbo   Ser),   como quando    se diz  “ser-doente-mental”  ou  “ ser-psiquiatra”. Ele  está   aquém da  “representação da  Realidade”,  ou seja, fora  das  coordenadas   estáveis  da   razão, para  além   da  relação  do  conceito  com a  coisa. O  grande  desafio seria  descolar  o conceito  da  coisa, fazer  o conceito  delirar.  É um mundo  constituído por  processos, movimentos, devires, singularidades. Enfim, temos   o  campo   das multiplicidades, um campo    que se opõe  aos dualismos  estabelecidos, como  doente/sadio,  corpo/mente, racional/irracional, etc.
P- Este  seria  propriamente o  universo  da  diferença?
R-Sim, sem  dúvida. Mas, pela própria  natureza do  seu  funcionamento, é um mundo a  se  fazer, a  se  construir. Nada está  dado  de uma  vez  por  todas. Neste sentido,  a  Saúde  Mental, vista como  uma   instituição, passa a ser questionada  em suas  bases histórico-sociais. Pergunta-se-ia :a  quem   efetivamente  serve   a clínica?  Para  que  serve?  São questões  que  se desdobram em  muitas  outras.  Elas  se  unem  na  busca  de  uma   ética  pela   Vida.

P- Como  o   você  avalia   o ensino  da  psicopatologia   para  não-psiquiatras?
R- Ora, sabemos que   uma  longa  tradição   estabeleceu a  psicopatologia como a  base conceitual   da  psiquiatria. Sendo assim, no contexto  presente    é fabricado e   entregue (como   uma  Verdade)   o pacote da psiquiatria biológica, esperando-se  que os    neófitos  da  mente  respondam  amém.  Proponho  outra  coisa: um pensamento  que  brote diretamente  das  características   de  cada  área. Assim, a  psicopatologia  serviria   à   psicologia, à  enfermagem,  à  terapia  ocupacional,  etc, e  não o contrário.

P- Você  se  referiu  várias  vezes  ao conceito  de  ”vida”.  Por  quê?
R- É claro  que nessa  ênfase  filosófica, trago  a influência  de pensadores  como Espinosa, Nietsche e  Deleuze. Ora,  no contexto  da clínica, mais  que  nunca  estão  em jogo  questões  como:  que  tipo  de  vida  é  essa?  O que  é,  como e   para  que  viver? Qual a função do  técnico sobre  isso?  Promover a  vida? Como  promovê-la,  se  tudo  em volta   faz  por  negá-la?  Então, falar  em vida  significa  ir  além  dos  reducionismos que  assolam as práticas  em saúde mental. Biologicismo, farmacologismo, cognitivismo,  edipianismo e  tantos  outros...

P- Vamos encerrar  por  aqui  esperando  revê-lo  em outra  oportunidade. Gostaria  de  acrescentar  algo?
R-Apenas  agradecer  pela  oportunidade e  desejar ao  jovem  estudante que  antes de  tudo  busque  pensar  por  si  mesmo, ainda  que  precise    pensar  contra  si  e  contra  tudo  que o senso  comum e o  bom senso das  instituições  ensinaram. Não  é  fácil. 

Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

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