Impressões à prova
O
psiquiatra viaja em mundos distantes. Arrisca saltos no abismo em patologias vistas de
perto. Quem é você? Que se passa? Mete-se no tempo das noites loucas do Santa
Mônica [1]
. Tão longe estão, quanto intactas e livres. Houve um tempo que não passou e passou. Nutre-se de
paradoxos. Faz rir. O psiquiatra
lembra que não há mais tempo. A hora esgotou-se
como seringa descartável. O tempo deixou de ser um espaço , mesmo que de dança.
Não mais que ontem, o tempo-passagem embriaga e dissolve espaços. As palavras soam bobas.
Situações densas se quebram. O
psiquiatra se desloca pelos campos
verdes do pensamento, aspira blocos de
manhãs. Elas ardem na pele dos seres que
ficavam. Café da manhã com luz queimando os olhos. O dia se avizinha.
Prontuários entre canções de
ninar. Manhãs insistem. Plantões voltam sempre, deitam no plantonista
que se esvai em sofrimentos deliciosos.
É hora de dormir com a manhã. Antes, a insônia compunha os insanos. O círculo da velha juventude e a gargalhada dos pacientes seguiu os passos de um tempo a se fazer. Agora. Nenhuma crença move o passado. Não há falta. Um corpo
muda e permanece na pele do sol que
queima o filme de remédios na
veia. Dois dois. O psiquiatra
trabalha sem saber de si. Os olhos da loucura arregalam a manhã para além dos muros. Ele sabe que não sabe o instante seguinte, ou onde
estará o companheiro Marx. Marx! Marx! Suas pesquisas incluem a dor de existir
tão profunda quando a aparência dos que
vivem das batidas incertas do mundo. Alguma
coisa empurra o humor não psiquiátrico para uma alegria suspensa no ar. Sem garantias. Companheiros de textos constroem em sua carne espiritual, infinitos à
mão. Entre si olham retinas ainda não cansadas pelos ardis da
miséria. Uma máquina de fazer o cosmos
no mais rente ao chão, se esboça.
O psiquiatra fala do passado para construir pedaços dispersos de memória vã. Sem retorno.
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
[1]
Hospital psiquiátrico particular situado
em Salvador, Bahia. Nos anos 70 ,
a equipe técnica atuava sob a influência das idéias que questionavam a própria existência do hospital como modelo de tratamento.
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