quarta-feira, 25 de abril de 2012



A  CLÍNICA PRODUZIDA  
                                                                         



A  clínica psicopatológica tornou-se a clínica psicofarmacológica. Isso não é um mal em si, mas um fato da cultura médica  que incide sobre o  trabalho com o paciente. Em termos  empíricos, o próprio  paciente torna-se  um produto de forças institucionais; elas  fabricam a clínica e por extensão o paciente.  Tais forças  se explicitam na  psiquiatria,  são  a  psiquiatria [1].  No espaço do atendimento, do exame, do encontro com o paciente, elas   se concretizam  como rostidade  farmacológica.  É  um regime de aparência corporal,  semiótica,   que traça uma  linha terapêutica antes mesmo de começar o tratamento. As psicoses,  por excelência,    são  objeto   desse processo  de  rostificação. A cena extremada,  o paciente  impregnado  por   neurolépticos  (alterações  extra-piramidais)  e outros  signos  menos perceptíveis, compõem a visibilidade do espaço clínico. Assim, fazer  psiquiatria nos dias atuais tem  a opção farmacológica como  palavra de ordem: prescreva mais  e mais  remédios químicos. Isso não  vale apenas   para os que estão científico  e   juridicamente   autorizados a  fazê-lo, mas para todos os  que lidam com a loucura. Nosso foco pode ser a  chamada “equipe técnica” em saúde mental. Todos medicam,  todos estão medicados,   medicalizados   numa  produção subjetiva  inconsciente e incessante. Isso é de uma  tal obviedade que se esconde em cotidianos naturalizados. Uma espécie de ordem  programada se impõe como desejo psiquiátrico  único e  totalizante. Ora, o desejo não é individual, não é uma essência ou um atributo exclusivo  de alguém.  Ao contrário,  é coletivo  e só  se mostra   individual   como  produto de um segmento dominante. A  forma-psiquiatria é  este   segmento dominante no funcionamento da equipe.  Não importa que os psiquiatras se sintam desconfortáveis com o avanço  da luta antimanicomial [2] . Afinal,   a psiquiatria mantém um  status   baseado  na medicina,   o  que   opera   efeitos concretos,   entre eles, o da farmacologização  subjetiva. Há uma fabricação do rosto do paciente que    funciona em oposição ao rosto   normal [3].  Quem o fabrica? O autor    não  é   identificável.   Uma máquina binária sem forma  (médico-paciente)   é  implantada no seio  da clínica.  Até   fins  dos anos 80  (século XX),  apenas o  louco  dito  psicótico era tornado  “rosto”  pelo uso de  fármacos. Hoje essa manobra atinge  a todos, incluindo os não psicóticos   e   até os  normais.  As pesquisas neuro-científicas  produziram um cérebro-mente, o que  se reflete no uso continuado  de  remédios  e   associações medicamentosas. É óbvio  que o  fármaco atua no sintoma, não mais que no sintoma. Contudo,  isso não significa  obter uma cura ou  sequer uma melhora. A somatória dos  sintomas leva o médico à conexão simples sintoma-fármaco. Daí    o ato de medicar percorrer   um roteiro implícito. Ora,  é muito raro  que o paciente apresente apenas um sintoma. Então  valeria   a  equação “vários sintomas = vários fármacos”?    Não faltam  psicofármacos  para  embasá-la, ao contrário. O paciente vai sendo  rostificado  como um “ser-que-demanda-remédio”,  produzindo  a psiquiatria  e  o psiquiatra num circuito de re-alimentação continua.  A máquina se fecha: uma   produção/produto/produção     tecnicamente monitorada é o  trabalho do psiquiatra   clínico,   o qual     pode   até ser valorizado como ação    visando   o bem do paciente. Isso não impede  que se considere o circuito do fármaco    danoso  à pesquisa sobre a loucura. É que esta não se restringe a nenhuma patologia específica. Ela  é  o despedaçamento do eu e da consciência  enquanto  entidades reguladoras   dos códigos sociais. É também, sob  o olhar biomédico, um  cérebro   funcionando errado.  Mas  não   existe  definição possível nem   semiologia psicopatológica  que esgote  a descrição do seu perfil.   Trata-se  do  caos das significações dominantes, sem que isso implique em designações pejorativas e/ou niilistas.   Assim,  não só o louco é  convertido à categoria de doente  e  o não doente  convertido à categoria de louco,  mas  a psiquiatria   converte-se à   ciência e faz um  trabalho de rescaldo social.  O     que está em jogo    não é o psiquiatra-pessoa. Este obedece, só obedece  (mesmo  sem    saber). A questão  é outra.   São    as relações institucionais,   a   materialidade do ato clínico. O   eu-consciência  sustenta   a psicopatologia. Hoje, a   equação se  alarga.  Temos eu=consciência=cérebro,   base  ontológica    para se passar remédios.   Na ausência  de   uma teoria  psiquiátrica  da subjetividade,  quem responde ao psiquiatra é o “eu-consciência-cérebro”. Este  é  o  “sujeito”.    Eu-consciência para o manejo psicoterápico cognitivista. Cérebro para o  farmacológico, não necessariamente  nesta ordem.   
Voltemos à rostidade. O paciente  é vestido  pela moral (o eu-consciência) e pela química (o  cérebro). Passa a ser   um produto-organismo   disponível para  ser tratado, consertado, adaptado, normalizado. É o   trabalho (duro)  do psiquiatra na linha de frente.  Há,  porém,  outras  linhas   que  chamamos de devires. Elas não  fabricam  o paciente, mas as condições para alguém deixar de ser paciente. Tal perspectiva inclui o   psiquiatra  em    outra   concepção de  doença. Destacamos: 1-O paciente não  é um individuo, e sim uma multiplicidade;    é  irredutível  ao  eu e    à  consciência,  mas    plugado  no   coletivo. É   do  mundo,  é  o mundo.    2- Na entrevista, a sua fala chega misturada a   falas  não verbais  (semióticas);  mil   falas    estão    presentes   em   uma  fala.  3- A  inteligibilidade  do  discurso  está inscrita na  Vivência, e não  o contrário; 4- O uso    prévio  e  exclusivo   de  fármacos  -  por  aparelhos  de medicar  -   produz um rosto-clichê  que  enevoa  a percepção  clínica; 5- Antes de “ser”  um diagnóstico, o paciente é um processo afetivo; pode estar abortado, mas  é um processo;  6- O delírio (se  houver) e o  comportamento   estão   submetidos ao  contexto  onde ele  vive.  Como então, funcionam essas  linhas?  
De início,  assinalamos  que  o   psiquiatra  não   é (ou  não  deveria)    ser  um  passador  de remédios,  um  remedeiro. Ao  contrário, pela  via  do  Encontro, ele busca percutir  linhas  de  vida,  mesmo  que  elas não  se mostrem  de  pronto. Existe  a escuta   expectante   das multiplicidades.  São  falas   que  podem  ser decompostas  em  territórios  existenciais  delicados.  Dobras   subjetivas  para  além     do  olhar-clichê. Por  isso, é preciso  ver  ao  invés de enxergar.  Ver o paciente   como “não paciente”   sem que  isso  seja  uma negação  da realidade. A relação é, pois,   não  hierárquica. A  suposta  ajuda  construída  na  linha  dos devires   torna-se desejo de  ser   o  outro  sem  sê-lo. Não  uma  pessoa  à  frente, mas  linhas  entrelaçadas,  umas  se expressando, outras não. Explorar  os paradoxos na  cena  do  Encontro  implica  em jogar papéis  sociais,  coletivos,  inumanos.   A  questão  passa a ser buscar formas  de expressão. Pode  ser  pela  fala, pelo silêncio, pelo  corpo, pelas  atitudes,  etc.  Importa   a expressão e  a potência de criar que  lhe  é correlata.O paciente cria?   O  que?  Como?  Para que?  Onde?Os devires  invadem o  viver  sem que  os  especialistas  imponham uma ordem. O que se passa? O psiquiatra enlouquece  sem estar louco ou  ser um  doente,  nada  disso. O ponto de  subjetivação é o desejo  como expressão  de modos  de  viver  fora das  coordenadas  estáveis da  razão.  Isso   costuma incomodar as  estruturas   do  eu.  Devir é  expandir-se,    diferenciar-se.  Não  há,  contudo,  um suporte  institucional    para tais  ações.  Elas  arriscam  no  vácuo  o recado   de  uma    novidade  incerta. O   paciente   sem   rosto,   a   vida subjetiva    se  mostrando    às  micro-sensibilidades   que  circulam    entre o  paciente  e  o psiquiatra.  Escutar,  escutar    não  sob     uma  grade   edipiano-cerebral,   mas  à    espreita   do  novo,  do inesperado,  do  indeterminado, do  bizarro.  O  acontecimento  é  uma   linha  de perigo  e   também  a passagem.  Examinar  um  paciente  é  encontrá-lo  no seu  mundo, por mais  longínquo   que  seja.  Isso   exige    tempo,  paciência  e acima  de tudo,  ótimas  condições  de trabalho [4].  Uma  ética do  Encontro  precede   toda  técnica. A  desnaturalização  do  paciente  é  correlata ao  desaparecimento  do  eu-psiquiatra [5].  Este se torna  outra  coisa à  serviço  da  diferença,  uma  dobra existencial  que  se  desdobra  em  outra,  em outras,  em  outros.  
                                                                                                                                                                            
Antonio Moura

[1] O  caráter  técnico-científico  da  psiquiatria é  tributário dessas  forças.
[2] Observa-se no  Brasil  atual  uma  oposição  (não  sem  certa animosidade)  entre  psiquiatras  e  “defensores” da  luta  anti-manicomial.
[3] O  rosto  normal  é  o   do  organismo  cognitivo e funcionalmente  correto,  tal  como  busca   a  terapia  cognitivo-comportamental.
[4] Referimo-nos às organizações capsianas,  tanto  à  nível das  condições  materiais  quanto às  salariais.
[5] O  que  não  significa   o desaparecimento  da  psiquiatria...  ao contrário,  falamos de  “outra”  psiquiatria.

2 comentários:

  1. Para finalizar a questão do Estado - finalizar, entenda-se: abrir o problema, sem fechá-lo -, é preciso colocá-lo como fruto de um pensamento, uma gestão, uma maneira de pensar, que, de certa maneira, conecta várias outras maneiras de pensar. O que seria esse fator elementar comum? O Capitalismo. E, no caso, sua maneira de gestão é o devir burguês. É porque a relação com o pensamento, mais do que abstrata, ainda que seja assim, é material. Não devemos cair no pretexto cristão de que a riqueza é efetivamente um "mau negócio". A questão é que o sujeito estável, que tem seu carro, constitui família, pensa em prol do coletivo - veja, estou hipotetizando o "melhor dos sujeitos" -, professor universitário, crítico do Sistema Capitalista etc., ora, ele polui o meio ambiente, ele "pensa em prol do coletivo" de dentro da sua casa ou com os conceitos da Academia, isola-se socialmente em função da sua família, ou seja, ELE CONTRIBUI COM O CAPITALISMO, ELE APOIA O CAPITALISMO. É essa a questão: MATERIALMENTE, ELE AFIRMA O CAPITALISMO. Utilizei um exemplo hipótetico para dizer que todos se encontram interligados por este elemento cultural e, de alguma maneira, essa forma de Estado se encontra presente em função de nossas ações. Seria uma tarefa ingrata, porém gloriosa da Psicologia, incidir, individualmente, nessa questão. Observe o termo "individualmente", pois, na verdade, estou criticando a Psicologia. A crítica fica mais pesada quando ela não chega nem a isso.

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  2. Usei o termo devir burguês equivocadamente. Corrija-se: "pensamento burguês".

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