terça-feira, 15 de maio de 2012


REIFICAÇÃO DOS SINTOMAS

(...) (...)Entretanto, o afeto  não  é uma  coisa  nem  é algo  natural. Abstrato,como vimos, ele  é  feito, produzido,fabricado como sentimento humano à condição de  portador  de  um transtorno: sobressai-se a figura do doente que se torna componente  de  um papel  social  cristalizado.A larga utilização de psicofármacos  em associações variadas  borra a linha abstrata que divide os doentes dos  não-doentes.Para a psiquiatria atual tudo é psiquiatrizável. Esta sentença diagnóstica ocupa o lugar de poder respectivo ao enunciado.Importa que o  paciente seja medicado e adaptado. O  afeto é secundário à tal  manobra  terapêutica porque  ele   foi   posto como consciência do  sentimento no pacote nosológico. Se  todos  são  julgados de   antemão  doentes, não interessa saber o que efetivamente  sentem (qual o afeto?) e  sim o que  fazem...É um regime paranóico guiado pela  razão: desconfiar da afetividade. Esta  não  é mensurável; um  modelo de  pensar desconsidera até mesmo condições evidentes de sofrimento  como  as  da depressão e  da angústia. Esses  afetos  têm  formas  de  expressão  extremamente  variadas, nuances clínicas  finas, imperceptíveis  a um  olhar normatizador. Eles resistem  a um  cadastramento semiológico. Por  isso, muitas  vezes  ficam excluidos da  avaliação ou  incluidos numa  espécie  de  “rostidade  clínica” [1].Transtorno do humor ou de ansiedade? Uma reificação dos sintomas, um  endurecimento  dos  signos da doença,uma  forma  de trabalho  do pensamento da  representação.  Não importa  pesquisar  as  singularidades  de  cada  caso. O que    está  em jogo   é  o  conceito de  doente  como  ser  improdutivo  e não o de loucura.  Isso   nos  remete à  questão  do  louco e à   sua  conduta social. O conceito  de  louco  está na  base  da  construção  histórica  do  conceito  de  doente  mental, o que  implica  na negação enviesada  do  da  loucura como  conceito  não  médico  e por isso   irrelevante  para  a  clínica  psicopatológica [2]. A figura  do louco, substituida  na  atualidade  pela  do  portador  de  transtorno mental, cumpre, entre  outras, a função de  desviar  o foco  de  pesquisa  da  loucura (portanto, do pensamento) para a clínica moral (a  técnica  pura).  É uma  maquinaria institucional lastreada  em  rituais  acadêmicos e  inscrita    num corporativismo  profissional.[3]
(...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria

[1] Regime  semiótico  ou  de  signos  que  compõe a  expressão  reificada   do  “ser-da-depressão” ou  do “ser-da-ansiedade”. Tais  regimes são mantidos numa  espécie de encaixotamento nosológico como referência de verdade  ao  diagnóstico  psiquiátrico.
[2] “A palavra  “loucura”, tão presente na  fala e na literatura  de todos os  tipos, evidentemente não tem o sentido que  a psiquiatria dá a  doença mental. Quem fala de loucura não se importa com o que  o médico entende por  doença mental, ou não sabe”, Sonenreich, C., Estevão, G. e Filho, Luis de  Morais, Psiquiatria:propostas,notas,comentários, S. Paulo, Lemos  editorial, 1999, p.10.
[3] O Movimento  da Luta  Anti-manicomial,, por  exemplo, é visto em alguns meios  psiquiátricos como objeto  persecutório. Um pensamento malévolo faz  do  nome Luta Anti-manicomial a sigla  LAMA. Diz-se  “o pessoal da  lama”...

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