REIFICAÇÃO DOS SINTOMAS
(...) (...)Entretanto, o afeto não é uma coisa
nem é algo
natural. Abstrato,como vimos, ele
é feito, produzido,fabricado
como sentimento humano à condição de
portador de um transtorno: sobressai-se a figura do doente que se torna componente
de um papel social
cristalizado.A larga utilização de psicofármacos em
associações variadas borra a linha abstrata que divide os doentes dos
não-doentes.Para a psiquiatria atual tudo é
psiquiatrizável. Esta sentença diagnóstica ocupa o lugar de poder respectivo
ao enunciado.Importa que o paciente seja medicado e adaptado. O afeto é secundário à tal manobra terapêutica porque
ele foi posto como consciência do sentimento no pacote nosológico.
Se todos
são julgados de antemão doentes, não interessa saber o que efetivamente sentem (qual o afeto?) e sim o que
fazem...É um regime paranóico guiado pela razão:
desconfiar da afetividade. Esta não é mensurável; um modelo de pensar desconsidera até mesmo condições evidentes de sofrimento como
as da depressão e da angústia. Esses afetos
têm formas de
expressão extremamente variadas, nuances clínicas finas, imperceptíveis a um
olhar normatizador. Eles resistem a um cadastramento semiológico. Por isso, muitas
vezes ficam excluidos da avaliação ou
incluidos numa espécie de
“rostidade clínica” [1].Transtorno do humor ou de ansiedade? Uma reificação dos sintomas, um endurecimento dos
signos da doença,uma forma de trabalho
do pensamento da
representação. Não importa pesquisar
as singularidades de
cada caso. O que está
em jogo é o
conceito de doente como
ser improdutivo e não o de loucura. Isso nos remete à
questão do louco e à
sua conduta social. O
conceito de louco
está na base da
construção histórica do conceito
de
doente mental, o que implica
na negação enviesada do da loucura como conceito não médico e por isso
irrelevante para a clínica psicopatológica [2]. A
figura do louco, substituida
na atualidade pela
do portador de
transtorno mental, cumpre, entre
outras, a função de desviar
o foco de pesquisa
da loucura (portanto, do
pensamento) para a clínica moral (a
técnica pura). É uma
maquinaria institucional lastreada
em rituais acadêmicos e
inscrita num corporativismo profissional.[3]
(...)
Antonio Moura - do livro Trair a psiquiatria
[1]
Regime semiótico ou
de signos que
compõe a expressão reificada
do “ser-da-depressão” ou do “ser-da-ansiedade”. Tais regimes são mantidos numa espécie de encaixotamento nosológico como
referência de verdade ao diagnóstico
psiquiátrico.
[2] “A
palavra “loucura”, tão presente na fala e na literatura de todos os
tipos, evidentemente não tem o sentido que a psiquiatria dá a doença mental. Quem fala de loucura não se
importa com o que o médico entende por doença mental, ou não sabe”, Sonenreich, C.,
Estevão, G. e Filho, Luis de Morais, Psiquiatria:propostas,notas,comentários, S.
Paulo, Lemos editorial, 1999, p.10.
[3] O
Movimento da Luta Anti-manicomial,, por exemplo, é visto em alguns meios psiquiátricos como objeto persecutório. Um pensamento malévolo faz do
nome Luta Anti-manicomial a sigla
LAMA. Diz-se “o pessoal da lama”...
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