Este blog busca problematizar a Realidade mediante a expressão de linhas múltiplas e signos dispersos.
terça-feira, 31 de julho de 2012
QUESTÕES DIAGNÓSTICAS EM PSICOPATOLOGIA
(...) (...) Consideramos histórias clínicas em que as hipóteses diagnósticas esgotam as categorias da CID-10, exceto uma. Desse modo, é freqüente se recorrer ao chamado “transtorno da personalidade” (TP) ou mesmo ao que era antes chamado de “personalidade psicopática” ( termo criado por Kraepelin em 1904 ) como uma saída aos impasses da clínica psicopatológica. Isso advém da dúvida: será uma psicose?. A psiquiatria, enquanto sistema nosológico-conceitual , não sabe definir com precisão uma psicose. Tomemos o exame de um paciente: de acordo com a semiologia , não há delírios, alucinações, nem ruptura com a realidade; por outro lado, desvios de conduta, às vezes graves, atestam algum signo necessário para se poder dizer afinal do que se trata. Descrevendo uma personalidade em seus padrões anormais, incluímos o que ele, o portador, faz no mundo: atos, atitudes, interações com pessoas, desempenho de papéis sociais, capacidade laboral e outros parâmetros.O paciente, excluídas informações de terceiros, se acha e se mostra mentalmente são. Em certos casos, é pessoa de conversa fácil e discurso que flui espontâneo. O pensamento se expressa em frases conexas. No mais, segue o percurso das conversações amenas, ditas normais. Em outros casos até poderá ficar tenso, a depender do contexto institucional, como, por exemplo, ser entrevistado numa prisão. O essencial a reter desses dados clínicos é que o TP tende a escapar do molde psiquiátrico. A psiquiatria lhe é estranha, exceto talvez por um ato de força executado por ordem do juiz. Diferentemente da psicose, tal personalidade não vacila diante de pressões sociais: confesse! Ora, uma Personalidade funciona num mundo social cujas linhas de conduta estão longe de serem retas e programáveis. Desse modo, o diagnóstico deve compor um dispositivo para avaliação contingencial. O contrário seria um enquadre apenas técnico , o que equivale a prática do estigma social disfarçado de ciência pura.
(...)
A.M. - do livro Trair a psiquiatria
"SÓ EXISTE O DESEJO E O SOCIAL E NADA MAIS"
A medicalização da vida social produziu uma espécie de "ser" da doença. Isso é facilmente constatável no caso das depressões de etiologia "psicogênica". A família, ou os que estão mais próximos ao paciente, referem-se a ele com "a depressão".E ele próprio, se vê desse modo.Um trabalho psicoterápico torna-se difícil, senão inviabilizado.O fármaco comparece como esparadrapo...
A.M.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
POESIA
A linguagem poética fere de morte o princípio de identidade do discurso inteligível da técnica. É isso mesmo. Uma experiência-limite não precisa de palavras. Isso desconcerta a clínica do cérebro. Esta, busca neuro-lugares e pontos fixos. Cortem aqui. Cortem ali. A representação do Mesmo é batata. Abram alguns cérebros e lá estará o rigor mortis. Enfim, um método infalível. Ele gargalha sobre a última fronteira. Que se passa? Ainda bem: há poesia injetada em agulhas finas. A linguagem desliza: criança, poeta, louco, vidente, artista, a tralha dos sem-eu, todos descem pelo conta-gotas da resposta aos sintomas. Não há como se explicar aos cientistas. O tecido poético cria muito antes da medição dos contornos da hipófise. É matriz e argamassa das construções exatas sobre o funcionamento dos neurônios do baixo clero. Precisamos de mais poesia, mais, até saturar os átomos da cabeça pensante. No entanto, o pesquisador acadêmico enuncia o veredicto das horas perdidas em conversas tolas. A condenação dirige o condenado às labaredas do inferno das psicoses, dos retardos e das demências irreversíveis. Toca o horror da patologia, limpa a mesa cirúrgica com estabilizadores do humor.Assim fica fácil destruir subjetividades em nome da ciência. Sem metáfora.
(...)
A.M.
TRATAR A EXISTÊNCIA?
(...) (...) Desde 1952 nos acostumamos a ver o paciente mental sob o efeito de algum remédio químico. Este se tornou peça indispensável, não só para o tratamento, mas na constituição de uma "subjetividade enferma". Na década de 90 os fármacos avançam e substituem a psicopatologia.Torna-se um hábito ver o paciente mental como expressão-efeito da química. A indústria produz o pensar medicamentoso como campo por excelência do desejo. O objetivo maior é o de manejar os sintomas. Como tudo é sintoma, ou passou a sê-lo, incluindo o paciente, o objetivo de passar remédio tornou-se o de excluir o pensamento e a existência.
(...)
A.M.
O CORPO NÃO É O ORGANISMO
(...) (...) Na lógica do Encontro não buscamos um saber, mas um não-saber, já que a loucura é a “essência” do não-saber, fundo sem fundo da condição humana. Então, a pesquisa das crenças segue o itinerário do acaso, do indeterminado e do desconhecido. É uma manobra difícil, já que destrói códigos inscritos no construto médico do louco. Louco=paciente da mesma forma que tuberculoso=paciente? Claro que não. Então, no âmbito biomédico não há chance do paciente ser escutado. Este modelo não está errado. Ao contrário, foi concebido para isso, feito para isso: trata-se de um monólogo recitado na presença do paciente.Uma distância se instaura como lugar fixo de quem manda e de quem é mandado. Para escutar o paciente o que então será preciso? Ora, a escuta médica é “filha” do olhar técnico, imobilizador. Propomos a antiescuta como uma atitude de escuta para além da fala padronizada; “estou mal”; isto se dá como expressão de um corpo-produção, sobretudo um corpo invisível que é preciso achar. Novas semiologias serão possíveis.
(...)
A.M.
domingo, 29 de julho de 2012
DISSOLVER OS CÓDIGOS
(...) (...) Saúde, no contexto estabelecido pelo Estado moderno, vem ligada “naturalmente” a mental, operando um conceito que não é o da saúde nem é o de mental. Trata-se de uma composição de forças. Saúde-mental é uma forma de relação social, uma instituição. Não consta que exista, na acepção aqui expressa, saúde renal, saúde hepática, saúde intestinal, entre outras.
(...)
A.M. - do livro Trair a psiquiatria
RELATO DO ACASO - n° 19
Quem sofre mais? - Aula de Psicologia Médica e Psicopatologia no curso de Medicina da UFBa ; discussão de casos clínicos. A professora era uma psiquiatra. Seu método: entrevistar um paciente da enfermaria psiquiátrica na presença dos alunos. Depois, na ausência do paciente, lia a história do prontuário e fazia comentários clínicos. Os estudantes, de um modo geral, apenas a escutavam. Uma pergunta aqui, outra ali. Certa vez a professora comentou sobre um caso que, segundo ela, era de esquizofrenia. Explicou, então, o que era a esquizofrenia. Daí, surgiu a questão do sofrimento psíquico, já que o paciente denotava certo desinteresse para com o mundo à volta. A professora comparou o esquizofrênico ao neurótico, afirmando que este último sofria muito mais devido à angústia. No caso do esquizofrênico,por estar fora da realidade, sofria menos. Como estudante submetido à linha vertical do ensino autoritário,aceitei o comentário como uma verdade. Só alguns anos mais tarde descobri que o sofrimento esquizofrênico é opaco à razão médica.
(...)
A.M. - do livro Trair a psiquiatria
A RIMA INCRIMINA
(...) (...) deve ter sido às 4 e meia da tarde. a campanhia da porta tocou. era Dan. como sempre, toda vez que eu andava sentindo náuseas ou precisava dormir. Dan, uma espécie de comuna intelectual que dirigia um laboratório de poesia e entendia de música clássica, tinha um fiapo de barba e a todo instante queria bancar o espirituoso, quando não passava de um chato de galochas e, pior do que isso - escrevia versos com rima.
(...)
C. Bukowski - do livro Fabulário geral do delírio cotidiano
sábado, 28 de julho de 2012
A ARTE NA CLÍNICA DAS MULTIPLICIDADES
Em saúde mental, ao trabalharmos com o paciente, usamos a Arte como 1-processo (devir); 2-potência (força ativa); 3-expressão-no-mundo (capacidade de autonomia) 4- estilo (singularidade); 5-metacomunicação ( para além da linguagem verbal ); 6-intensidade (contra a moral do juizo); 7-estética da existência (contra o paradigma tecno-científico); 8-política do corpo (contra o organismo físico-químico); 8-alegria de criar a si mesmo e ao mundo (contra a repetição do Mesmo); 9-máquina abstrata, ou seja, como uma realidade sem forma definida; 10-obra não-monumental, não-mercadológica e iconoclasta.
A.M.
UMA ESTÉTICA GENERALIZADA
(...) (...) A estética é autorizada a se dizer generalizada assim que deixa de ter um local próprio e fixo a ocupar.Assim, ela precisa agir em uma infinidade de ocasiões, todas precárias, momentâneas, imperceptíveis por vezes, infinitesimais. No lugar e no momento em que o microfascismo se anuncia ou mesmo se enuncia, a saber, logo que uma potência significa o império do gregário sobre um indivíduo desta forma correndo perigo, a resistência pode e deve fazer seu trabalho.Em seguida, é preciso contar com as graduações de forças reativas e defensivas. até o esgotamento da violência surgida, até sua pulverização, seu aniquilamento. Longe da hipotética estetização da política ou da sinistra politização da arte, a cultura elabora uma rebelião incessantemente erguida contra toda agressão de tipo microfascista dirigida contra esse ou aquele indivíduo.
(...)
M. Onfray - do livro A política do rebelde - tratado de resistência e insubmissão
FUNÇÃO DA ARTE
A verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (i. e., dos que a estabeleceram) para definir o que é o real. Nesta ruptura, que é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade.
(...)
H. Marcuse - do livro A dimensão estética
O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA
(...) (...) O sistema do rizoma é um louco. Ele ultrapassou a fronteira da divisão normais/anormais, aquilo que os psiquiatras não entendem (nem querem) e segue a direção do processo homem-natureza. Seu objeto é incerto, mas seus objetivos são claros: a afirmação da criatividade e do novo, mesmo que ao preço dos mal-entendidos e contra os fascismos à mão. O rizoma não é um método. Ele é um anti-método que se insinua como método de viver para além dos paradigmas estáveis. A psiquiatria não o capta. Trata-se de um rumor de outros tempos. O século XXI. A neurociência expõe os seus limites. O que é o cérebro? O rizoma compõe-se de muitos cérebros, ou o mesmo cérebro numa plasticidade neuronal que traduz o fora (o mundo, a natureza, o cosmos...) que está dentro. O cérebro cede à mente seu arquivo de neurônios. A subjetividade se expressa no limite das condições orgânicas/não orgânicas.Um rizoma se expande e diz: “ estou aqui”. São as contradições humanas que se conjugam em singularidades. Talvez o paciente não esteja nem aí para o que dizem sobre ele. Quem sabe? Outros afetos, alguma coisa que pulsa não detectada pelos instrumentos científicos. Uma alma. Não há como medi-la nem ela é trocável. Excluido todo ranço religioso, a alma é o desejo. Este precede a consciência e o eu...Por fim, uma psicopatologia da diferença funciona como condição de possibilidade para o trabalho com o paciente numa equipe técnica multidisciplinar. O objetivo primordial é o de atuar num regime não hierarquizado entre os saberes que investigam e atuam sobre a loucura e o chamado portador de transtorno mental.
(...)
A.M.
DA CLÍNICA
Em psicopatologia, um erro diagnóstico é bastante comum nos dias atuais. As linhas histéricas, misturadas a outras linhas (psicóticas, por exemplo) acabam lavando o paciente a ser medicado de forma inadequada. Entre os vários danos causados, está o de fabricar o fármaco-rosto, o que o desvia dos "verdadeiros" problemas.
A.M.
sexta-feira, 27 de julho de 2012
DEVIRES, DEVIRES
O
paciente vive entristecido pela Grande
Máquina. Sua alegria foi aniquilada em plena vigília.
Do nada. Ninguém assume a autoria dos pequenos crimes. Eles são administrados em nome da paz de
espírito. Ora, o espírito
também caga. Avise aos últimos palhaços que a arte foi solapada em nome do ideal dos homens de branco. Ao que me consta, nada mudou no sulco das bocas. Elas falam rachando dentes. Mastigam auroras nati-mortas. Mas o Rosto carrega uma expressão justa, como negar? A bondade natural dos humanos. Ó Lovecraft,
socorrei! Apenas uma cidade respirando um arco-íris, manda por favor...
Não falo por mim. Por mim, ó... Falo pelo que não sou, falo por devires. Escutai a canção do mundo... Você dança? O paciente sucumbe à Ordem. Por favor,
o senhor pode me dizer as
horas? Já vai tarde o tempo
dos mestres, com todo o respeito.
Sonâmbulos da própria dor,como falar aos
que não falam? A Grande Máquina é uma pequena dose de benefícios a curto e médio prazo. Ela se insinua na febre dos
corredores infectos. Um susto, um sus. Tudo é
contágio. Resistir à morte, querida, e fazer dessa vibração algo novo, será possível? Talvez um devir-amante imerso em trepadas millerianas. Bicho, perdoa o jeito canino:o que é necessário para viver por viver?Pacientes são pacientes demais. Armaduras químicas, lições de casa, manuais de sobrevivência,
coisas simples, eles são normais. Eu queria um gosto de sol em
você, em suas dores mais intensas e irremediáveis. Pena que a
sombra dos quintais do passado anuncie
sessões de tortura regadas à dinheiro. A
entrega é às oito.Todos estarão lá, até o
chefe da Facção Sinistra, aquele mesmo que começou a seduzir a multidão com truques de falar
macio. Não tem jeito. Somos inocentes radicais.
A.M.
DA EXPERIÊNCIA POÉTICA
(...) (...) Ao sondar o verso, o poeta entra nesse tempo de desamparo que é o da ausência dos deuses. Fala surpreendente. Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável dela, assume-lhe o risco e sustenta-lhe o favor.Quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.
(...)
M. Blanchot - do livro O espaço literário
PENSAMENTO SEM IMAGEM
(...) (...) Propomos, então, avaliar o “pensar” ao invés do pensamento; este, um depósito de sanções conceituais dualísticas, seja como o puro espírito, seja como secreção oriunda de um cérebro apassivado. Nem uma coisa nem outra, o pensamento é o fluxo dos devires que traça suas linhas tortuosas na busca de expressões do mundo. Uma clínica voltada apenas à visibilidade das coisas não mostra isso. Ademais, fabrica outro corpo e o chama de organismo. Onde estaria o pensamento? Nas alturas do espírito? Na “outra cena” ? Ele é o que viaja, ainda que possa estar no mesmo lugar. Seus vôos têm a marca do invisível e da velocidade.
(...)
A.M.
NÃO EXISTE UMA TEORIA PSIQUIÁTRICA DA AFETIVIDADE
(...) (...)A larga utilização de psicofármacos em associações variadas borra a linha abstrata que divide os doentes dos não-doentes. Para a psiquiatria atual tudo é psiquiatrizável. Esta sentença diagnóstica ocupa o lugar de poder respectivo ao enunciado. Importa que o paciente seja medicado e adaptado. O afeto é secundário à tal manobra terapêutica porque ele foi posto como consciência do sentimento no pacote nosológico. Se todos são julgados de antemão doentes, não interessa saber o que efetivamente sentem (qual o afeto?) e sim o que fazem... É um regime paranóico guiado pela razão: desconfiar da afetividade.
(...)
A.M.
NA CONTRA-CORRENTE
O uso crônico de psicofármacos produz um sentimento de "incapacidade" existencial ao paciente, mesmo, e, principalmente se o remédio químico produzir uma melhora dos sintomas. Casos com bom prognóstico (os chamados transtornos "leves") vão sendo rostificados como patologias forever. Remover tal crosta vivencial, ou melhor, auto-vivencial, implica em criar linhas de multiplicidades.O paciente não mais será considerado "pessoa doente" ao modo biomédico, mas como uma conjunção de linhas do desejo, onde o próprio transtorno cidológico é uma delas. Todo um rizoma se desenha.
A.M.
SEM CULPA
(...) (...) Considerando por partes, o psiquiatra sofre o efeito de várias máquinas. Primeiro, claro, da própria psiquiatria.Depois, formando uma teia ou uma trama de contornos imprecisos da medicina, do estado, da academia, da ciência, da pesquisa, do emprego, do mercado, do dinheiro, da produção, da escola, do direito, da polícia, da moral e do eu. Esta não é uma lista exaustiva. Serve apenas para pontuar o fato de que a pessoa do psiquiatra não está presente na clínica como “razão individual” ou “consciência”, mas como peça constitutiva de um agenciamento coletivo. Daí, a ênfase no seu “sofrimento” não como um afeto necessariamente ruim, mas como pathos. O psiquiatra sente e não precisa dizê-lo (está implícito) mas é preciso torná-lo real mediante o ato clínico. E o faz com a força motriz das suas capacidades técnicas aplicáveis a cada situação. Não se trata, pois, de interpelá-lo como pessoa, indivíduo, pois ele apenas repete o script da palavra de ordem que aciona a psiquiatria desde o seu nascedouro:“este homem é louco? caso seja, controle-o!” Assim, sente o efeito das produções desejantes que se conjugam num eu pronto a sacar o remédio químico. Não sofre por isso (nenhuma culpa) e não sofre ao receber ordens implícitas para fazer isso.Nada a ver com os escrúpulos da consciência.
(...)
A.M.
POR QUE?
(...) (...) Por que não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? (...) (...) A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos.
(...)
G. Deleuze - do livro Conversações
quinta-feira, 26 de julho de 2012
PRODUÇÃO-CONSUMO DA CLÍNICA
(...) (...) A forma-Saúde e por extensão, a Saúde Mental, secretam produtos que compõem a subjetividade e se materializam na clínica. Ou melhor, na psiquiatria clínica. Há até pacientes que chegam com um diagnóstico firmado por eles próprios. Desse modo, antes da vivência da queixa, o diagnóstico torna-se uma identidade. Produção de consumo. Ao mesmo tempo, a miséria social (não só econômica) se alimenta de reflexões sobre o dito comportamento patológico. Pesquise, por exemplo, distúrbios do humor. Ou sobre o pânico diante da violência urbana. Qualquer coisa. A forma-saúde mental é invisível, mas o técnico exibe a sua marca no mercado dos especialismos.
(...)
A.M.
SOLIDÃO POVOADA
(...) (...) Eu procurava uma alma que se assemelhasse a mim e não conseguia encontrá-la. Revolvi todos os cantos da terra; minha perseverança foi inútil. No entanto não podia continuar só.Era de manhã; o sol ergueu-se no horizonte em toda a sua magnificência e eis que, diante dos meus olhos, ergue-se também um jovem cuja presença fazia brotar flores à sua passagem.
(...)
Lautrèmont - do livro Cantos de Maldoror
quarta-feira, 25 de julho de 2012
GRUPISMOS EM SÉRIE
A maior parte dos grupos humanos está assujeitada a instâncias transcendentes. Pode ser o eu do líder, o nome da família, a imagem do rei, as palavras do mestre, certa filosofia, as coerções de uma organização, a competitividade, a palavra da mídia, a ciência, o consumo automático, a arte, a revolução, Deus,o partido, etc. A lista é praticamente infinita.O que esses dados heterogêneos tem em comum é a função de conduzir o grupo em direção a objetivos fora dele mesmo. Ou seja, o grupo só existiria a partir de algo que o ultrapassasse como vivência concreta de si. Tal vivência recolhe o que vem de fora (pois nenhum grupo surge do nada ) e ergue uma crença no imaginário, o qual se torna parte de um senso comum grupal. “Todos pensam assim”. Uma crença coletiva faz do grupo a natureza que o “autoriza” a assumir uma espécie de essência, forma e status. Irão aí medrar as futuras burocracias e os micro-fascismos, de onde a instituição da Grupalidade fabrica um refúgio bem sucedido das forças do tempo e do caos. “Você não é dos nossos”. “Morte ao estrangeiro”, “só entra aqui sendo...” são palavras de ordem que passam a ressoar na vida do grupo como formações inconscientes.
(...)
A.M.
GLOSSÁRIO
CIDOLOGIA, s.f., 1- estudo dos comportamentos patológicos, segundo a ótica da psiquiatria; 2-saber inserido nas relações de poder do psiquiatra com o seu paciente; 3-sistematização de uma pseudo-nosologia obedecendo aos cânones do pensamento organicista, mecanicista e positivista;4- manobra político-institucional da psiquiatria biológica, visando manter vantagens pecuniárias no mercado internacional dos psicofármacos; 5-espécie de conhecimento ilusório sobre a loucura, mas referendado por agências de poder interessadas em lucrar com o sofrimento do louco.
A.M.
DEVIR-PENSAMENTO
(...) (...) Devir-pensamento é seguir e construir linhas de criação de si mesmo em meio às padronizações e formalizações da razão técnica. Desse modo, os pensamentos “alterados” serão tributários de um universo de sentido só captável por métodos fora do alcance da visão biomédica. O obsessivo vive e se “alimenta” de um universo (ou um plano) que coexiste com a sua “doença”. O mesmo ocorre com o maníaco, o depressivo, etc. Qual é esse universo? Onde está? Como funciona? Não há um, mas vários universos em lugares distintos, a depender das forças que compõem o Contexto onde o paciente se insere. Se este se acha envolvido pela crosta das subjetivações psi (psiquiatria e cia), nada a fazer senão observar, intuir, ouvir, captar, capturar, perceber, conectar, implicar-se no fluxo dos devires.
(...)
A.M.
CÓDIGOS A-SIGNIFICANTES
Proceder uma dissolução dos códigos nosológicos, diagnósticos, cidológicos é um dos objetivos da clínica das multiplicidades em psiquiatria. Esta é usada tão só como peça de uma máquina de produção de sentido. A questão é prática, pois. Diante do caos da semiologia psicopatológica (há delírio? qual? há hipotimia? angústia? etc...), qual atitude precederá a técnica?
A.M.
PSIQUIATRIA BIOLÓGICA: A SANHA DO CONTROLE
(...) (...) A psiquiatria, como nunca antes, tem “necessidade” de controlar com competência técnica. Usa dispositivos práticos em casos e situações clínicas pontuais. Em oligofrênicos, por exemplo, a expressão da fala em geral está comprometida, seja por uma dislalia ou pela atividade cognitiva reduzida a nível das relações conceptuais na formação e execução de juízos. O diagnóstico chega rápido...É essencial registrar que o exame do paciente acaba ficando mediado pela fala no sentido mais comum e operatório do contato social. Digamos: uma máquina não está funcionando a contento e é preciso consertá-la. Esse modo de ver não constitui uma acusação à semiologia psicopatológica atual. Bem mais, trata-se de demonstrar sua insuficiência técnica “essencial”com repercussões por vezes danosas sobre a conduta terapêutica.
(...)
A.M.
terça-feira, 24 de julho de 2012
MULTIPLICIDADES NA CLÍNICA
(...) (...) Então, o nosso Contexto é tudo que implica ser atual. Nada abstrato; pelo contrário: o Concreto se expressa no corpo que se arrasta, vacila, bem como se ergue, flutua e dança. Não consideramos uma ordem serial de vetores etiológicos que caberiam numa lógica dura para “explicar”o quadro psicopatológico ou até o diagnóstico nosológico. Ao contrário, a própria etiologia é uma multiplicidade como no caso das síndromes orgânicas acima de qualquer suspeita (lesões cerebrais demonstráveis). É possível trabalhar num campo de possibilidades existenciais que emerge de cada contato. Isso precisa ser inventado. Pensar é criar também do lado de quem cuida e não se restringe ao imperialismo da técnica. O devir-pensamento, como todo devir, funciona em bloco, como uma “liga”entre partes dispersas e heterogêneas da subjetividade; não para juntá-las numa totalidade, mas para torná-las consistentes em si mesmas.
(...)
A.M.
PENSAMENTO DA SAÚDE MENTAL
O conceito de sáude mental é tributário de uma visão mecanicista (linearidade causa-efeito) e substancialista (mente=coisa, substância) dos modos de subjetivação. Ele serve à medicina e às suas agências de apoio teórico e operacional. Obedece a um funcionamento automatizado nas chamadas políticas de saúde mental. Por essas e outras, o cérebro MENTE.
A.M.
RELATOS DO ACASO
Relato 4 – Fugindo do hospício – Estávamos na Casa de Saúde Ana Néri, eu e cerca de 8 alunos do curso de Psicopatologia da Faculdade Ruy Barbosa. Findo o horário da nossa visita, caminhávamos em direção à saída. Eram muitas portas a serem abertas. Da enfermaria masculina para o corredor, deste para outra enfermaria, passando por um pátio, no refeitório, até alcançar a última porta que dava acesso ao saguão de entrada do sanatório. Em todas essas passagens, eu ficava atento para evitar que algum paciente “escapulisse” . É que, enquanto um auxiliar de enfermagem abria a porta com a chave mestra, invariavelmente muitos pacientes se aproximavam querendo sair, gritando para ir embora, ter alta, etc. Cena típica do hospício. Entre os pacientes havia um mais insistente que conseguiu esgueirar-se e escapou do nosso controle. Estávamos na penúltima porta antes da saída. Ele saiu correndo e quando deparou-se com a última porta, por coincidência alguém a abrira pelo lado oposto. Ele aproveitou a sorte e continuou a sua corrida. Estava a cerca de três metros entre essa porta e a recepção, e a um metro da porta da rua. Passou como uma bala pela recepção e quando todos esperavam que continuasse o pique rumo à liberdade, estancou no portal de entrada. Seu corpo ficou imóvel, impassível, (catatônico?), o rosto expressando um misto de perplexidade e medo. Foi o lapso de tempo suficiente para ser recapturado pela enfermagem.
(...)
A.M.- do livro Trair a psiquiatria
segunda-feira, 23 de julho de 2012
ALIANÇAS
Na cena da saúde mental, muitas instituições presentes, nem por isso identificáveis. Fala-se do espírito da medicina e do cortejo de especialidades voltado ao bem do paciente. O caso psiquiátrico é único, pois seu especialismo está à serviço da instituição. Esta se oculta. Trata-se de um dispositivo que operacionaliza um modelo abstrato de concepção do homem e por extensão da racionalidade. Tal “modelo abstrato” surgiu de situações concretas, por exemplo, ao se encarcerar um louco. Velhas histórias por demais desconhecidas, cada vez mais enterradas nos porões de um inconsciente institucional, assombram consciências puras. Assim, alianças povoam o universo psiquiátrico. Não é possível separá-las umas das outras, tais os amálgamas embutidos em confissões de atos em palavras e ordens. Ser psiquiatra é ser médico. Truísmo envolvente que põe até mesmo homens gama à serviço do controle das condutas. Fica mais fácil a propagação dos códigos que não firam o bom senso. Não há mais escolas psiquiátricas, como existiam a orgânica e a psíquica. Todos agora pregam a devastação das cadeias do cérebro em prol de um novo dualismo. Cérebro e corpo. No entanto, falamos de outras alianças. No fundo da noite, populações do inconsciente deslocam-se. São afetos sem nome, riscos nômades atravessando o deserto do organismo. Instituem o corpo sem chaga nas mãos e sem vergonha nos olhos. Um paciente egresso de armaduras químicas sai à rua em busca de parceiros. Pode ser no seu quarto o encontro que se avizinha. Ou a hora da morte que chega num parto natural. Pode ser.
(...)
A.M.
domingo, 22 de julho de 2012
A MERCADORIA
(...) (...) A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma "imensa coleção de mercadorias", e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria.
(...) K. Marx - do livro O capital (capítulo I)
PACIENTES PACIENTES
Psiquiatra-você quer um diagnóstico... é isso?
Paciente-sim, sim... por favor, doutor...
Psiquiatra- você é portador da Síndrome de dependência da psiquiatria (Sindep).
Paciente-oh, parece sigla de sindicato...
Psiquiatra- e é; Sindicato dos Pacientes Demais.
A.M.
INCONFORMISMO RADICAL
Que as causas da miséria não tenham desaparecido, isso não deixa a menor dúvida. Que essa miséria ainda seja o produto das mesmas lógicas, é evidente. Que essa causalidade funesta e maléfica se disfarce sob perpétuas metamorfoses, isso já não é mais mistério. Que esse horror seja gerado pelo antigo capitalismo enlouquecido, isso parece uma opinião ajuizada.Que uma mística de esquerda seja então necessária, útil e urgente, quem duvidará entre as vítimas cada vez mais numerosas dessa regra do jogo?
(...)
M. Onfray - do livro A política do rebelde - Tratado de resistência e insubmissão
SINTOMA
O paciente carrega sintomas. O médico conversa com eles. Todo paciente é uma multiplicidade de sintomas, inclusive ele. O eu-sintoma se expressa por signos. Envia signos, não para serem decodificados, mas para criarem um mundo. Este mundo precisa de aliados, operadores de territórios. Então, o sintoma que a farmacoterapia alcança, “deve” ser substituído por territórios existenciais. Pode ser qualquer coisa, a mais insignificante. Caso não aconteça, o paciente vira o sintoma que vira o diagnóstico que não vira mais (*) Isso fecha uma ação redundante sobre si mesmo, um sistema fechado. Como Ilya Prigogine, acreditamos nos sistemas longe do equilíbrio onde rearranjos da matéria afirmam universos virtuais. Desse modo, sintomas podem ser usados como trampolins psíquicos, disparadores de processos vitais. A psiquiatria, ela própria, é um sintoma, ou um analisador da sociedade industrial. Extingui-lo seria extingui-la. Isso não é (ainda) possível face às atuais correlações de forças. No entanto, reutilizá-la em pedaços dispersos para uma clínica a se inventar... como fazer?
(...)
A.M. - do livro Trair a psiquiatria
(...) No sentido em que se diz "Esse carro não vira"
sábado, 21 de julho de 2012
HUMANISMO: A ABSTRAÇÃO CONCRETIZADA
Falar de "humanismo" é usar como implícito o enunciado de Protágoras que faz do homem a "medida de todas as coisas". Ora, esse pensamento compõe a expressão de discursos e instituições. Por exemplo, diz a Família que quer a felicidade dos seus membros. Diz a Medicina que quer a saúde do paciente.Diz a Escola que que educar o aluno. Diz o Direito que quer a justiça social. Diz o Estado que quer a segurança do cidadâo. Diz a Religião que quer salvar os seus fiéis, etc, etc.. Será isso mesmo?
A.M.
A CONSCIÊNCIA, AINDA
(...) (...) O eu pressupõe o desejo e não o contrário. Desse modo, na esquizofrenia processos desejantes se esfacelam no instante da enunciação: “este sou eu” . Não importa a avaliação da consciência, exceto se essa avaliação considera o eu, suas expressões e produções. Isso se traduz no que a psiquiatria chama de apragmatismo social, conceito impreciso pela própria natureza. A função do eu remete ao juízo ou ao pensamento enquanto juízo da realidade. Daí porque ele se expressa como o Sujeito, sujeito individual. O nível da consciência fica encoberto, e só é dado como modificado, quando há uma causalidade física evidente: delirium. Mas na histeria dissociativa a consciência se modifica adotando formas aberrantes. Tudo passa por ondas de afetos (desejos) que se deslocam pelo organismo, tornando o cérebro um joguete nas mãos de forças poderosas. Neste sentido, o conceito de consciência, preso a uma ambiguidade de origem, se revela inadequado a uma semiótica psicopatológica da diferença.
(...)
A.M.
MENTE OU CORPO?
(..) (...) Correlata à consciência, a questão mente-corpo atravessa o pensamento clínico-psiquiátrico. Ela está ligada à pesquisa etiológica dos transtornos mentais. As teorias se fizeram a partir de um dado primário que é o da clínica, ou seja, da observação do paciente. Mas o conceito de alienação, vindo da filosofia, abstrai para a consciência o que se constata na prática. O paciente, em maior ou menor grau, está fora de si mesmo, padecendo de uma espécie de consciência alienada. Torna-se estrangeiro de si. Cabe a psiquiatria recolocá-lo no lugar dele, desaliená-lo. Esse fato percorre o século XIX sob o nome de alienismo.Num tempo pré-freudiano, a consciência abarcava todo o campo do que se chama “mente” ou “eu”, termos que acabam sendo sinônimos, pois atuam de modo idêntico. São requisitos nominais para ações médicas de examinar, tratar, reabilitar, julgar, etc...
(...)
A.M.
DA ROSTIFICAÇÃO DO MUNDO
(...) (...) O significante é sempre rostificado. A rostidade reina materialmente sobre todo esse conjunto de significância e de interpretações (os psicólogos escreveram bastante acerca das relações do bebê com o rosto da mãe; os sociólogos, acerca do papel do rosto nos mass-media ou na publicidade). O deus-déspota nunca escondeu seu rosto, ao contrário: criou para si um e mesmo vários. A máscara não esconde o rosto, ela o é. O sacerdote manipula o rosto de deus.Tudo é público no rosto do déspota, e tudo que é público o é pelo rosto. A mentira, a trapaça pertencem fundamentalmente ao regime significante, mas não o segredo.
(...)
G. Deleuze e F. Guattari - do livro Mil platôs
sexta-feira, 20 de julho de 2012
VIAGENS DE MIGUEL
Miguel se expande por devires indecifráveis. Ele nem sabe, nem é preciso. Tento ir no encalço. Ele responde: "pai, que está fazendo aqui?". Me encolho numa insignificância real, como se diz, para em seguida voltar à vida. Pois Miguel é um desafio incessante sobre o que é viver. Não quero me repetir acerca da criança metafísica. Isso é coisa de um passado recente apagado no fogo do presente. Ouça: Miguel é um presente do Abstrato. Me vejo perguntando coisas simples, como por exemplo "o que é viver?".As respostas chegam enfileiradas num caos ativo e alegre. Contra a ameaça do sem-sentido, Miguel afirma: é a aposta no indeterminado. Então, acordo com gosto de cereja na língua. Alguns não se submetem, eu bem sei, à agonia do Nada. No entanto, em algum lugar Miguel se torna personagem conceitual de um mundo a se fazer, a se tecer, a se criar... um artista,enfim.
A.M.
CRU E CRUEL
Falamos de instituições como formas abstratas de relações sociais que se materializam em práticas. A subjetividade é uma instituição. Nenhuma instituição funciona só. Sempre em tramas, sempre em rede, elas se aliam ou combatem umas às outras. Consistem de relações de forças, poderes. (Foucault vive). Há que se despir, portanto, de todo e qualquer humanismo ao analisá-las, e principalmente, vivê-las.
A.M.
Assinar:
Postagens (Atom)